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YHWH, IAŌ, Iavé – mistérios do Nome de Deus

YHWH, IAŌ, Iavé – mistérios do Nome de Deus

Leitura em 14 min
Fonte: O Zigurate

Confesso que a minha motivação inicial para compor este texto foi, a princípio, um acontecimento bem ridículo. Talvez vocês lembrem dos acampamentos dos golpistas sendo desmanchados no começo deste último mês interminável de janeiro, que nos rendeu a cena insólita da figura que ficou apelidada como “o patriota que mia” (para quem não viu o vídeo, é um homem que cai de joelhos enquanto grita IAU, IAU, IAU). Pois é, parece que faz décadas já, mas não faz nem um mês. Surgiram várias threads no tuíter para explicar o fenômeno, e eu achei que valia a pena dizer algumas palavrinhas, certamente indignas, sobre o Nome de Deus, mas como eu prefiro ter um pouco mais de espaço, decidi dedicar um post ao assunto. O Nome de Deus merece isso, no mínimo.

Quem tem alguma familiaridade com o judaísmo está ciente desse fato: que o Deus de Israel tem um nome próprio. Ele tem vários nomes em hebraico, na verdade (aos quais o islã vem somar muitos outros em árabe ainda), com graus variados de pronunciabilidade, mas o oficial é um nome composto por uma sequência de quatro letrinhas em hebraico, por isso é chamado de tetragrammaton ou Tetragrama, em português. Essas letras são yud (י‎), a 10ª letra do alfabeto, que geralmente representa a semivogal Y; heh (ה), a 5ª letra, que é o som de um “H” aspirado, mas também um som aberto em vogais no fim de palavra (tipo em Torá/Torah); vav (ו), a 6ª letra, geralmente transliterada como um V, ou então como a semivogal W; e um segundo heh.

Como vocês sabem, o hebraico a princípio não registrava vogais, por isso o que temos é uma sequência de consoantes, que costuma ser transliterada como YHWH, IHVH, JHWH, etc. A técnica que vinga para registrar vogais aparece bem depois, no primeiro milênio da Era Comum, com os pontinhos que chamamos nekudot no texto massorético… apesar que um Sefer Torah (o rolo da Torá preparado por um escriba treinado para uso litúrgico), para ser válido (kosher), não pode ter os pontinhos. Por esse motivo, ninguém sabe bem ao certo qual seria a pronúncia exata dessa sequência de letras. Em certo ponto, cristãos do século XV propuseram uma vocalização YeHoVah, ou Jeová, que se popularizou, apesar de muito provavelmente estar incorreta (a Jewish Encyclopedia a descreve como gramaticalmente impossível). Os pesquisadores mais recentes da área dos estudos bíblicos favorecem a leitura YaHWeH, ou Iavé.

The Four and Twenty Elders Casting their Crowns before the Divine Throne, aquarela de William Blake (fonte).

O motivo dessa confusão, como se sabe também, é o fato de que, dentre todos os nomes de Deus, este, sendo o seu nome próprio, é o seu nome inefável. Como consta na Jewish Encyclopedia também, mesmo os primeiros comentadores cristãos, como São Jerônimo, repararam que os judeus nunca pronunciavam o Tetragrama. Ao ler um texto da Bíblia hebraica em voz alta, o costume típico é substituí-lo pelo nome Adonai, “Senhor” – e em edições da Bíblia em português, essa é a solução encontrada também… apesar que algumas edições, como a da editora Sêfer, optam pelo eufemismo O ETERNO. Trata-se de um exemplo bastante clássico de um tabu, no sentido mais típico da palavra, de se evitar dizer ou fazer alguma coisa por medo das implicações espirituais que isso possa trazer. O nome de Deus é poderosíssimo e, como todas as coisas dotadas de imenso poder, não pode ser manejado de maneira descuidada, tal qual uma bomba ou um fio de alta tensão. Num texto polêmico do começo da Era Comum, o Sefer Toledot Yeshu, que satirizava Jesus e os cristãos, Jesus é representado como um feiticeiro que entra escondido no Templo, rouba um pedaço de pergaminho contendo o nome YHWH e o insere no seu corpo por via de uma incisão na perna, o que lhe confere o dom de realizar milagres – um exemplo do poder deste nome. Infelizmente, ele não teria sido capaz de fazer isso se usasse a Septuaginta, a tradução da Bíblia hebraica para o grego koiné, onde também ocorre a substituição do Tetragrama pelo nome “Senhor” (Kyrios).

A primeira aparição do Tetragrama na Bíblia se dá no livro do Gênesis… mas não em Gênesis 1. Quando Deus cria o mundo, o nome usado para se referir a ele é Elohim, uma forma gramatical bastante esquisita, pois tem a terminação plural -im (que poderia ser traduzido como “deuses”), mas conjuga verbos no singular. É na mudança de cena, da criação do mundo para o jardim do Éden, em Gênesis 2:4, que surge o nome composto YHWH Elohim, motivo pelo qual este trecho da Torá é atribuído à tal fonte Iavista (J) na chamada Hipótese Documental (já falamos disso antes, aqui), enquanto a cena anterior pertenceria à fonte sacerdotal (P).

Só que temos ainda mais uma complicação: ao longo da Torá, o narrador (que tradicionalmente seria ninguém menos que Moisés) por vezes se refere a Deus pelo nome próprio, mas não é assim que ele se apresenta a Abraão a princípio, com quem ele firma sua aliança, tornando-se o Deus de seus descendentes, os israelitas. Diante de Abraão, Deus se apresenta como El Shaddai (um nome misterioso, que ainda não sabemos o que significa ao certo). É só depois, para Moisés, que Deus revela seu nome próprio, em Êxodo 3:13-15. Nesse trecho, lê-se:

E disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU [Ehyeh Asher Ehyeh, mais literalmente, “eu serei o que serei”]. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU [Ehyeh] me enviou a vós.
E Deus disse mais a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: O Senhor Deus [
YHWH Elohei] de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó, me enviou a vós; este é meu nome eternamente, e este é meu memorial de geração em geração.1

Essa confusão toda dos vários nomes de Deus serve para dar um nó na cabeça, mas não há de ser surpreendente depois de estarmos cientes de como foi que surgiu o culto ao deus de Israel. De novo, já falamos disso antes, com a fusão do culto ao deus El, o pai dos deuses e chefe do panteão cananeu, e do deus Iavé, cultuado pelos edomitas no sul. A rivalidade entre os israelitas e edomitas é preservada na história de Esaú e Jacó. E, apesar de o deus El ter uma presença bem conhecida na religião cananeia, o que é atestado graças às tabuletas recuperadas em Ugarit, pouco se sabe sobre Iavé. Há hipóteses que apontam para um deus metalúrgico ou para um deus atmosférico, o que explicaria sua rivalidade com Baal. Mas é difícil afirmar algo de mais conclusivo.

Em contextos arqueológicos, a inscrição mais antiga confirmada do Tetragrama é a chamada Estela de Mesha, um monumento de 840 A.E.C. assinada pelo rei Mesha, de Moab, um dos territórios vizinhos e inimigos do antigo Israel. O nome também aparece em amuletos de 600 A.E.C., os famosos amuletos de Ketef Hinnom, que contêm o mais antigo registro da Bênção Sacerdotal. Nos últimos anos, tem-se prestado bastante atenção também num monumento egípcio de Soleb, onde hoje é o norte do Sudão, de 1400 A.E.C., mas nesse último caso, de longe o mais antigo, o nome Yhwʒ, ao que tudo indica, não aparece como um nome de um deus, por isso a situação é um pouco mais complicada.

Por fim, vale apontar uns últimos comentários mais cabalísticos sobre o Tetragrama. Apesar de ser um TETRAgrama, existem reduções, e em alguns contextos, o último heh é omitido, ficando apenas YHW. No comentário do Sefer Yetzirah de Aryeh Kaplan, esse trigrama é permutado, o que nos oferece 6 versões, uma para cada direção cardeal, mais uma para cima e outra para baixo (o que tem evidentes aplicações ritualísticas), como se pode ver na imagem:

Outra versão encurtada é o uso das suas primeiras letras apenas, yud e heh, o que dá o nome YAH (ou Jah, para quem tem essa referência rastafari). A palavra aleluia, ou halelu-Yah, por exemplo, que observamos nos salmos, nada mais é do que “Yah seja louvado”. Essa derivação também aparece em nomes teofóricos, como Yirmiyahu, ou Jeremias (literalmente “Yah exaltará”)… ou Netanyahu, o primeiro ministro israelense (sim, aportuguesando pela lógica da tradição bíblica, ele seria o Netanaías). Reuchlin, citando o volume Sha’are Orah, de Joseph ben Abraham Gikatilla, trabalha com uma dicotomia Yah-El, na qual Yah seria um nome equivalente ao lado da severidade da Árvore da Vida, enquanto El seria equivalente ao lado da misericórdia, pois “EL é a essência de Chesed nas alturas”. Os dois nomes, aliás, aparecem no salmo 150: Halelu-Yah, halelu-El.

E há também equivalências cabalísticas entre as letras do nome YHWH, as 10 sefiroth, os elementos, as partes da alma e os 4 mundos (se você não entende nada de Cabala, pode pular esse parágrafo, porque vai ser só um monte de palavras doidas). O movimento aqui é do mais sutil (yud) ao mais grosseiro (o segundo heh). Por isso, yud corresponde ao elemento mais leve, que é o fogo, às sefiroth de Chokhmah e Keter (Keter, na verdade, seria a pontinha da letra yud) e ao mundo de Atziluth, o mundo mais puro da Emanação, que representa o lampejo inicial da inspiração, mas onde as coisas ainda estão longe de se manifestar. A segunda letra, heh, é o ar, mais denso que o fogo, e a séfira de Binah, o Entendimento, que predomina no mundo de Briah, o mundo da Criação. Desse ponto, partimos para o vav, com a água e o mundo da Formação, Yetzirah, onde predominam as chamadas 6 sefiroth inferiores (Chesed, Geburah, Tiffereth, Hod, Netzach, Yesod), o que é muito curioso, porque 6 é justamente o número de vav, e é no mundo de Yetzirah que começa a existir o espaço (o seja, as 6 direções, como visto). Por fim, o segundo heh é o mais denso, por isso seu elemento é a terra, sua sefirah Malkut e seu mundo Assiah, o mundo da ação, no qual os planos de Deus são levados à completude e se concretizam. Partindo dessa lógica, também os níveis da alma encontram correspondência nesses agrupamentos, na medida em que Nefesh, a alma animal que move o corpo equivale a Malkut e à letra heh; Ruach, o espírito, a consciência humana e assento das emoções e da moral, às 6 sefiroth inferiores e à letra vav; Neshama, o sopro de vida e parte eterna da alma, à Binah e ao primeiro heh; e, por fim, Chayah e Yechida, vitalidade e singularidade, que representam a capacidade de se sintonizar à divindade e à fagulha divina, que só existiriam nas almas mais desenvolvidas espiritualmente, equivalem a Chokhmah e Keter, e assim à letra yud.

Sim, e eu já percebi quem é da Cabala hermética se contorcendo nesse parágrafo anterior. Na Cabala hermética, as equivalências elementais são invertidas. Yud e o segundo heh são fogo e terra, respectivamente – até aí tudo bem, – mas o primeiro heh fica com água e o vav fica com ar. Para mim, isso dá uma quebrada na lógica da sequência elemental e nos conceitos todos, sendo um dos motivos pelo qual é tão difícil também conciliar as tradições judaicas da Cabala com a Cabala hermética. E, para arrematar, Reuchlin concebeu a ideia de que a letra hebraica shin (ש) seria o equivalente ao elemento do espírito, por isso a inseriu no meio do Tetragrama, constituindo o nome YHŠWH, representando a vinda de Jesus como Messias, que “aperfeiçoaria” o Tetragrama. De fato, você pode ler a sequência YHŠWH como Yehshua ou Yehoshua… mas não é assim que é escrito de fato o nome de Jesus em hebraico (as letras são totalmente outras, na verdade). O chamado Rose Cross Ritual da Golden Dawn utiliza essa fórmula, aliás.

Beleza, tudo isso serve como uma palhinha para começar a estudar o Tetragrama. Mas ainda não explicamos o porquê de o patriota estar miando.

Como dito, a Septuaginta verte o Tetragrama pelo nome Kyrios, mas havia outras traduções anteriores que optaram por uma outra possibilidade, infinitamente mais pronunciável: a sequência de vogais iota, alfa, ômega, Ἰάω ou IAŌ2. Na verdade, é obscuro ainda se seria Kyrios ou IAŌ a preferência mais antiga, mas dois estudiosos, Stegemann e Skehan, partem da hipótese (apoiada também por Emanuel Tov) de que IAŌ reflete o estágio mais antigo na história da tradução bíblica para o grego, que sobrevive ainda em alguns documentos como QpapLXXLevb, uma cópia do Levítico encontrada em Qumran. Mas foi na literatura mágica greco-egípcia que o nome IAŌ encontrou seu lugar como um nome divino, aparecendo em inúmeros feitiços dos PGM (além de alguns textos da biblioteca de Nag Hammadi). Diferente do que ocorre no mundo judaico, aqui esse nome é pronunciado, com frequência ao lado de outros nomes bárbaros, também acompanhado do nome SABAŌTH (uma transliteração do hebraico YHWH Tzabaoth, Deus dos Exércitos) ou permutado (na forma IAŌ AŌI ŌIA AIŌ IŌA ŌAI, como aparece em PGM IV. 390-1114)3.

Seria IAŌ uma pronúncia mais fiel do nome YHWH do que Iavé? Isso não tem como saber. Em todo caso, é uma fórmula mágica poderosa e muito útil para quem trabalha com magia por um viés pautado pelo hermetismo clássico.

O patriota que mia, detalhe da capa do Le Monde Diplomatique de ontem, arte do @crisvector

Agora, voltando ao patriota que mia, é um pouco surpreendente algo assim ter chegado aos evangélicos (apesar que não é tão surpreendente, considerando a forte tendência mágica que circula nesses grupos, ainda que eles neguem), mas, seja lá como essa transmissão se deu, eu chutaria que não foi lendo os Papiros Gregos Mágicos… até mesmo porque nos PGM, o nome é pronunciado IAÓ, não IAU. E, no vídeo do Kwai que apresenta o conceito evangélico aloprado de que esse é o nome que todos os bichos pronunciam (exceto, obviamente, pelo bem-te-vi, esse apóstata diabólico), aparece YAUH. Em todo caso, a lógica é semelhante, e a letra vav pode ser transliterada não só como um V, mas também como O (como em ôr, אור, luz) ou U (como no sufixo -nu, נו). Só é difícil de encontrar maiores respaldos históricos para essa pronúncia, até onde eu sei.

Enfim, apesar de a motivação para este texto ter sido bastante imbecil, acredito que tenha aqui um tanto de informação útil para quem tem interesse sobre o assunto. Para quem tem interesse nas origens históricas do culto a Iavé, eu aponto vocês novamente para a bibliografia do meu texto Lendo a Bíblia, e também para os cursos da Angela Natel, que é especializada no tema. E, para começar a mergulhar nos mistérios cabalísticos do nome YHWH, uma bela porta de entrada são os livros do Aryeh Kaplan, incluindo sua tradução e comentário do Sefer Yetzirah e do Bahir, além do Meditação e Cabalá, em que vemos na prática como o nome divino pode ser usado num contexto meditativo para propósitos de êxtase espiritual, com a meditação de Abraham Abulafia.

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  1. Vale lembrar que outro ainda dos nomes de Deus aparece no episódio do Êxodo: o chamado Shem HaMephorash, o nome composto de 72 nomes, que são usados na tradição esotérica ocidental para derivar os chamados 72 anjos cabalísticos. Essa fórmula surge nos versículos que descrevem o milagre da abertura do mar. ↩︎
  2. Houve também um comentário de uma thread no tuíter onde aparece que IAO seria um nome de Dioniso… o que é um pouco complicado. Por mais engraçado que seja imaginar um fundamentalista cristão chamar o nome de um deus pagão do vinho e das orgias, a meu ver não é bem assim. Houve sim muita confusão no mundo antigo, na verdade. Era comum gregos e romanos identificarem deuses estrangeiros como uma versão de um deus doméstico, e isso aconteceu com YHWH, que foi por vezes identificado com Dioniso, tanto que Plutarco e Tácito estavam cientes desse conceito e apresentam argumentos a favor e contra essa identificação (como se vê na dissertação de Courtney Jade Friesen aqui). Embora um dos motivos fosse a semelhança sonora entre os nomes Iao Sabaoth e Iupiter Sabazios (um deus frígio identificado como uma forma sincrética de Zeus e Dioniso), não há motivos para se associar o nome IAO em específico a Dioniso, sendo que a associação com Zeus, enquanto chefe do panteão, seria mais evidente. No contexto dos PGM, IAO aparece em incontáveis rituais, mas é rara a presença de Dioniso especificamente… a não ser que se parta do princípio que ele foi sincretizado com Osíris e Serápis, mas aí é toda uma outra confusão. Em todo caso, a fronteira da identidade entre os deuses nesse contexto é tudo menos rígida. ↩︎
  3. E, para falarmos de novo da Golden Dawn, no ritual do hexagrama, existe a chamada “keyword analysis”, em que é feita uma leitura criativa da fórmula IAO como Ísis – Apófis – Osíris, representando a morte e renascimento do deus egípcio. É uma leitura que eu descrevo como criativa, pois não tem nenhum respaldo histórico, mas faz sentido dentro do molde do ritual, em que Osíris e Cristo aparecem como figuras solares de morte e renascimento (e os rituais do hexagrama situam-se na sefirah de Tiffereth, que tem a correspondência astrológica do Sol). ↩︎
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