Os 72 anjos cabalísticos
Os 72 anjos do Shem HaMephorash, também conhecidos como os “anjos cabalísticos”, constam entre as figuras angelicais mais populares no ocultismo, perdendo apenas para o Big 4 celestial (Rafael, Miguel, Gabriel e Uriel) e talvez os anjos das 10 sefiroth. O primeiro deles se chama Vehuiah, o segundo Yeliel, o terceiro Sitael, e assim por diante até o último que é Mumiah. Meu contato inicial com o conceito desses anjos foi quando eu era pequeno e foi bastante ridículo. Minha vó tinha um livretinho com todos eles elencados, e era para eu ver qual seria o anjo que rege o meu aniversário. Eu acabei nunca esquecendo que era o Rochel, porque era o anjo número 69…. Bem, eu avisei que era ridículo. Mais recentemente eles se tornaram um objeto de uma leve obsessão para mim, por motivos que ficarão claros neste texto. Eu não posso ver um conceito que eu não sei de onde veio, que eu preciso ir atrás e puxar o fio todo.
No Brasil, a grande popularizadora do trabalho com esses anjos é a Mônica Buonfiglio, autora de Anjos Cabalísticos, que representa um grande catálogo dos nomes de anjos, suas funções e tudo o mais, e Magia dos Anjos Cabalísticos, que é uma obra mais prática para trabalhar com essas entidades. Os dois livrinhos, que foram bem pesquisados (as referências bibliográficas que a autora fornece são sólidas), podem ser facilmente encontrados em sebos por valores módicos. Lidos com um grão de sal, filtrando algumas bobagens New Age que acabaram entrando no meio, dá para usar tranquilamente como uma introdução à magia angelical (não por acaso, muitas pessoas desde os anos 90 chegaram ao ocultismo assim).

Mas de onde vêm esses anjos? Bem, se segurem aí que a história é complicada.
O Shem HaMephorash
Tudo começa, para variar, nas fontes judaicas… mas não totalmente (e é essa a parte que deixa a gente perplexo). É bem conhecido que, entre os místicos judeus, Deus tem muitos nomes. A lógica para isso é a de que cada nome de Deus se refere a um aspecto do divino. Como explica o rabbi Zev Reichman. em sua palestra introdutória ao pensamento chassídico, Flames of Faith:
Os místicos explicam que cada nome hebraico de Deus denota uma forma diferente por meio da qual o homem percebe o Onipotente. Por vezes, eu sinto o amor do Todo-Poderoso, por vezes testemunho Sua força e poder assombrosos, e em outros momentos vejo Sua força na natureza. Cada um dos diferentes atributos de Deus que o homem reconhece é caracterizado por um nome em particular. O nome YHWH reflete o sentir do Seu amor, Adonai é o nome que descreve o fato de que Ele é o mestre de tudo, e Shadai reflete Seu poder e domínio, Seu ato de estabelecer limites para o mundo.
Quando nos vemos diante da misericórdia e bondade divinas, características incorporadas cabalisticamente pela Sua emanação (sefirah) chamada Chesed, Seu nome é El, o nome divino de Chesed. Diante do seu lado mais assombroso, que inspira temor (Pachad/Geburah), seu nome é Elohim ou Elohim Gibbor. E assim por diante. Alguns dos nomes mais tradicionais incluem os 13 nomes ligados aos 13 atributos de misericórdia de Deus, os nomes das 10 sefiroth, os 42 nomes na prece Ana Bekoach e os 72 nomes do Shem HaMephorash, que veremos mais a fundo neste texto.
Shem HaMephorash é uma expressão que significa mais ou menos algo como “o nome proeminente”, sendo um antigo termo para se referir ao tetragrama YHWH. Às vezes o termo aparece corrompido como Shemhamphorash ou Semiforas. Porém, em algum momento, surgiu o conceito de um nome maior, composto, cuja presença não é óbvia como a dos outros nomes conhecidos, mas oculta. Para derivá-los, é preciso aplicar uma técnica de permutação das letras em um dado trecho bíblico.
Os versículos em questão são os seguintes, em Êxodo 14:19-21, na cena do milagre em que Moisés, com o poder de Deus, parte o Mar Vermelho:
E o anjo de Deus, que ia diante do exército de Israel, se retirou, e ia atrás deles; também a coluna de nuvem se retirou de diante deles, e se pôs atrás deles.
E ia entre o campo dos egípcios e o campo de Israel; e a nuvem era trevas para aqueles, e para estes clareava a noite; de maneira que em toda a noite não se aproximou um do outro.
Então Moisés estendeu a sua mão sobre o mar, e o Senhor fez retirar o mar por um forte vento oriental toda aquela noite; e o mar tornou-se em seco, e as águas foram partidas.
Cada um desses versículos, em hebraico, soma um total de exatas 72 letras. Como dito, o termo Shem HaMephorash a princípio descrevia o tetragrama YHWH, o nome mais sagrado de Deus, mas há uma relação entre os nomes derivados destes versículos e o tetragrama, pois 72 é o valor que resulta de uma das várias formas de se somar as letras do nome divino. Além disso, 72 também é o valor numerológico do nome Chesed, a sefirah da misericórdia (chet + samekh + dalet, 8 + 60 + 4 = 72).
O Shem HaMephorash é, portanto, não um nome único, mas um nome composto, formado por 72 agrupamentos de 3 letras cada (triplicidades). Cada três letras desses versículos, quando dispostas da forma que eu explicarei agora, constitui um nome divino, que pode ser objeto de meditação, além de ter aplicações mágicas. Para gerá-los, você deve fazer o seguinte:
- Transcreva os três versículos, em hebraico, removendo todos os espaços e toda pontuação;
- Deixe os versículos 19 e 21 na ordem correta (como é hebraico, isto significa sua ordem natural, da direita para a esquerda), mas inverta o versículo 20, do meio;
- Disponha os três versículos um sobre o outro e leia-os verticalmente. Os nomes divinos são as 72 sequências de 3 letras cada formadas assim.
O primeiro versículo começa, em hebraico dizendo wayisa‘ malakh ha-elohim haholekh lifney maẖaneh yisrael (“E o anjo de Deus, que ia adiante do exército de Israel…”). As primeiras letras desse versículo são vav (V), yud (Y), samekh (S) e ayin (‘), que formam a palavra wayisa (a conjunção “e” com o verbo “ir”). Guardem essas letras. O segundo versículo – lembre que ele é invertido – termina com a palavra “noite” (Laiylah), por isso suas primeiras letras são as letras de Laiylah ao contrário, heh (H), lamed (L), yud (Y), lamed (L). A primeira letra do primeiro versículo (V) fica em cima da última do segundo (H), a segunda do primeiro (Y) fica em cima da penúltima do segundo (L) e assim por diante.
Por fim o último versículo começa com as palavras wayet Moshe (“E então Moisés estendeu…”), letras vav, yud, tet, mem, shin, he. A primeira letra ali é, de novo, o vav (V) e assim formamos o primeiro nome vav-he-vav (VHV). A segunda letra é yud (Y), que forma, na segunda coluna, o nome yud, lamed, yud (YLY). Desse modo:

E o restante dos nomes segue por essa lógica. Pode parecer um pouco difícil se você não tiver nenhuma familiaridade com o hebraico, pois temos esses nomes esquisitos das letras e suas formas desconhecidas, mas é bastante simples. Os nomes dos 72 anjos, por sua vez, são constituídos a partir da soma dessas sequências de letras com os sufixos teofóricos -iah e -el, daí que os três primeiros anjos se chamem Vehuiah (VHV +iah), Yeliel ou Jeliel (YLY + -el) e Sitael (SYT + -el).
A grande pegadinha aqui é que, até onde eu pude sondar, eu não encontrei nas fontes judaicas mais tradicionais qualquer referência a esses anjos (se alguém encontrar, peço que me enviem, por favor). Na verdade, eles parecem ter um papel maior é no ocultismo ocidental, e eu acredito que tenha sido mais um caso de um conceito judaico que chegou aos cabalistas cristãos e deve ter tomado forma aí. O modo como eles surgiram é o assunto da segunda metade deste texto agora.
Porém, o que nós encontramos sim nos meios judaicos são meditações e outras técnicas que envolvem estes nomes triliterais. Um exemplo bastante notável é encontrado nas obras do célebre Abraham Abulafia, místico do séc. XIII e o grande proponente da chamada Cabala profética ou Cabala extática, que fundia o aristotelismo de Maimônides com o conhecimento das tradições místicas, usando meditações sobre as letras hebraicas para atingir estados elevados de consciência. Aryeh Kaplan, em seu Meditation and Kabbalah (publicado no Brasil como Meditação e Cabalá pela Editora Sêfer), tem um trecho em que ele traduz as instruções de Abulafia para meditar sobre o Shem HaMephorash. Diz Kaplan, citando Abulafia:
Ao tentar este método, prepare-se segundo a maneira discutida anteriormente. Esvazie sua mente por completo.
Então, com completa concentração e uma melodia adequada, agradável e suave, pronuncia o Nome [de 72].
Usando as vogais naturais de cada letra, [comece pronunciando estas seis triplicidades]
VaHeVa YoLaYo SaYoTe
EaLaMe MeHeShi LaLaHe
Pronuncie estas três triplicidades do Santo Nome com dezoito respirações.
Se o influxo divino não lhe forçar a parar, continue pronunciando o Nome deste modo até chegar à triplicidade MVM [a última dos 72]
Temos a tradição que diz que o influxo divino descerá ao indivíduo aperfeiçoado após ele completar o [número de letras do] primeiro versículo, isto é, após pronunciar 24 triplicidades.
Outra aplicação comum das triplicidades é usando-as em talismãs. Tzipi Cohen, neste site, lista alguns poderes associados às letras:
ילי (yud lamed yud): Restaura a esperança e aumenta a energia;
ללה (lamed lamed heh): Liberdade, rompe cadeias espirituais e fornece direcionamento à alma em tempos confusos;
אלד (álef lamed dalet): Proteção contra o mau olhado;
מצר (mem tsade resh): Traz sucesso, fortalece a intuição e a conexão entre os reinos divino e terreno.
O site também inclui a imagem de um talismã impressionante contendo TODOS os 72 nomes, obra da Ha’ari Kabbalah Jewelry:

Infelizmente eu ainda não localizei uma fonte precisa onde podemos conferir os poderes dos 72 nomes. A fonte mais citada nesse sentido é a obra de Yehuda Berg, mas… dado o fato de que ele é o infame líder do tal Kabbalah Centre, associado a pilantragens e outras coisas mais perversas, eu não o considero uma fonte das mais confiáveis. Vou procurar os livros dele com a esperança de que ele talvez cite suas referências, mas não estou muito esperançoso. Essa busca vai longe.
Para quem tem interesse em se aprofundar mais nas questões em torno dos 72 nomes, o grande Jacobus G. Swart, autor dos livros preciosos sobre Cabala prática da “Shadow Tree series”, em seu blog Practical Kabbalah and Self Creation, dedicou uma série de oito posts sobre o assunto (mais uma última parte só com bibliografia). Como Swart aponta, essa sequência de nomes é chamada também de Shem Vayisa Vayet, em referência à primeira palavra dos versículos do Êxodo dos quais ela deriva. No segundo texto da série, Swart oferece algumas possibilidades de pronúncia desses nomes, além da que vemos em Abulafia. Na obra de Moses Zacutto, por exemplo, a sequência seria V’hu, Y’li, S’yat, Alam, etc., mas Swart também utiliza uma pronúncia que é muito próxima da que observamos no nome dos 72 anjos: Vehu, Yeli, Sit, Elem, e assim por diante. Recomendo imensamente a leitura dos textos dele para quem pretende praticar de fato as técnicas cabalísticas meditativas com o uso desses nomes.
Do judaísmo para o ocultismo ocidental
Vamos falar agora dos anjos em si. A primeira triplicidade do Shem HaMephorash ou Shem Vayisa Vayet, como vimos, é a sequência vav-heh-vav (VHV), VaHeVa, V’hu ou Vehu, que dá no anjo Vehuiah, o primeiro de todos. Temos vários autores que falam dos 72 anjos, mas, tirando um ou outro desalinhamento, geralmente eles concordam entre si quanto a suas características e poderes. Vehuiah, pelo visto, tem muito a ver com o poder de conferir auxílio para lidar com desafios e empreitadas difíceis.
Para cada anjo temos um salmo que serve para sua invocação e algumas outras coisinhas. O número 72, vocês hão de notar, é o dobro de 36, que é o número de decanos na astrologia. Os decanos são uma doutrina bastante antiga , remetendo às práticas do Egito que foram incorporadas na astrologia posterior como as divisões de 10 em 10 graus do zodíaco (que, sendo um círculo, soma 360º, óbvio). Na magia da Golden Dawn, os 36 decanos são associados aos arcanos menores do tarô, pois quando se exclui o ás e as cartas de corte, você tem 9 cartas para cada naipe, o que dá 36. Assim, entende-se que, para cada arcano menor, existe um anjo diurno e um anjo noturno do Shem HaMephorash.
Sobre este primeiro anjo, Vehuiah, diz Damien Echols em Angels and Archangels, que ele ajuda “a desenvolver sabedoria, sobretudo sabedoria que diz respeito às artes e ciências. Ajuda a se envolver e completar qualquer tarefa difícil”. Echols aqui distribui Vehuiah dentre os 6 anjos dos 30 primeiros graus, obedientes, portanto, ao arcanjo de Áries, Melchiadel.
Damon Brand, em 72 Angels of Magick, atribui a Vehuiah os poderes de “executar tarefas difíceis”, “fortalecer sua vontade” e “obter estima”. Ele também fornece o versículo de um salmo para sua evocação: “Mas tu, Senhor, és o escudo que me protege; és a minha glória e me fazes andar de cabeça erguida” (3:3). Não há nenhuma associação astrológica dada. Mônica Buonfiglio não diz nada sobre sua relação com o signo de Áries, mas o associa ao planeta Marte (o regente de Áries) e a um dos arcanos maiores do tarô, A Justiça (eu não sei bem qual é o cálculo que ela faz para isso, mas chuto que seja numerológico, pois diz que seu número da sorte é o 8). Diz ela, em consonância com os outros autores: “Invoca-se este anjo para empreender e executar as coisas mais difíceis”. Ela também diz qual é o salmo deste anjo, mas não dá um único versículo e sim inclui o salmo 3 inteiro.
Já o casal Chic e Sandra Tabatha Cicero, em Tarot Talismans, se orienta pela ordenação dos decanos mais típica da Golden Dawn, que começa com Leão, em vez de Áries, por isso o associa ao primeiro decanato de Leão, sendo obedientes por isso ao arcanjo Verkhiel ou Verachiel, o arcanjo leonino. O nome divino associado a Vehuiah, porém, é Elohim Gibbor, o nome divino de Geburah, a sefirah de Marte, o que eu achei curioso. Eles também transliteram seu nome de um outro jeito, como Vahaviah, que é sim uma outra transliteração possível do hebraico. Cito os autores:
Vahaviah (grafias alternativas: Vehuiah, Vahuiah): O primeiro anjo do Shem ha-Mephoresh é Vahaviah, cujos títulos incluem “Deus, o exaltador” e “Deus excelso e exaltado acima de todas as coisas”. Associado ao primeiro decanato e os primeiros 5 graus de de Leão (1º-5º), Vahaviah é o anjo diurno do cinco de paus.
(Para os curiosos, o anjo noturno do cinco de paus é Yeliel, o segundo anjo.)
Diz Echols que as origens desses anjos são misteriosas… e eu sou obrigado a concordar. Como dito, apesar de termos indícios de origens bastante antigas dos 72 nomes do Shem HeMephorash em si no misticismo judaico – Abulafia sendo uma prova de o conceito estar bem estabelecido lá no século XIII –, a ideia de que eles teriam anjos me parece surgir num contexto mais cristão europeu. Não é difícil, no entanto, partirmos de uma ideia para chegarmos à outra. Os anjos podem ser entendidos, sob uma noção que é bem ortodoxa no judaísmo, como partes de Deus, suas manifestações, por isso sua vontade sempre corresponde à vontade divina – não há livre arbítrio para essas entidades. Deriva daí que a ideia de anjos rebeldes não faça parte das doutrinas judaicas, exceto dentre grupos marginais, como os autores antigos do livro de Enoque e a comunidade de Qumram. Não é raro observarmos anjos com nomes que são apenas a soma de um termo em hebraico qualquer com o final -el. O anjo zodiacal de Escorpião, por exemplo, no Sefer Raziel, é Akrabel, akrab sendo… “escorpião” em hebraico. Partir, então, de um nome divino, representando uma das muitas manifestações de Deus, e chegar a um anjo como personificação desse aspecto, não é um salto de lógica muito grande.
Curiosamente, a ideia dos 72 nomes de Deus também aparece numa obra não judaica que é bastante antiga, o grimório conhecido como o Livro Jurado de Honório (Liber Iuratus Honorii), do século XIII. Só que os 72 nomes que aparecem nesse volume não são nenhum dos 72 nomes judaicos, mas um outro conjunto de nomes totalmente diferente. Em vez de VHV, YLY, SYT, etc, eles são Theos (literalmente, “Deus” em grego), Onay, El, Christos, On, Raby, Alfa, Baruch, e por aí vai. Não tem nada a ver… o que é muito frustrante para a gente que procura algo mais passadinho a limpo. Isso, no entanto, não impediu que escribas posteriores realizassem uma fusão das duas coisas. Um manuscrito do Livro Jurado do século XVI, categorizado como Royal MS 17 A XLII, inclui essas figuras, como vemos na imagem abaixo:

Um outro nome importante para rastrearmos a presença dessas entidades na tradição ocultista ocidental é o cabalista cristão Johann Reuchlin (1455 – 1522). Temos uma citação interessantíssima no capítulo 3 de sua obra De Verbo Mirifico (O Nome Milagroso, 1494), na p. 273 de sua tradução para o inglês, na edição On the art of Kabbalah. Diz Reuchlin:
Os romanos chamam a seu deus no Capitólio como “o Melhor” e o “Maior”, sendo o “Melhor” por conta de sua bondade e “Maior” por sua força (Cícero é quem o diz, em seu discurso aos sacerdotes em De Domo Sua). Do mesmo modo, a nação judaica chama a seu deus de Yah por conta de sua benevolência e El por conta de sua força e virtude. Os cabalistas comentam as palavras do Rei David, quando ele diz: “Se tu vires nossas iniquidades, Ó Yah, Ó Senhor, quem há de nos dar sustento?”: “‘Yah’ demonstra que ele é o mundo da misericórdia, ‘Adonai’ (‘Ó Senhor’), que ele é o mundo da aspereza”, como consta em Portais de Luz, Capítulo 8.
Sobre El, é possível ler em Números 16, “Ó El, Deus dos espíritos de toda a carne, pecará um só homem, e indignar-te-ás tu contra toda esta congregação?”. Por isso, para nós, Deus é o melhor por ser misericordioso e o maior por ser forte, o que é representado por esses dois nomes divinos, Yah e El. E se você unir estes nomes a qualquer um dos 72 nomes, será formada uma palavra impressionante e poderosa. Você deve sempre pronunciá-la com três sílabas e com o som aspirado, escrito com o alfabeto latino usando a designação “h”. O som deve partir do fundo do seu peito, mesmo se houver uma dupla aspiração da letra “h”. Em todos os casos, Yah deve ser pronunciado usando apenas o “y” consonantal. Com El é a mesma coisa. Ambos são pronunciados como monossílabos mesmo quando compostos, e em ambos os casos a tônica cai no mesmo lugar.
Assim, há 72 nomes sagrados. Eles são (em uma única palavra) o Semhamaphores que explica o santo Tetragrama. Devem ser enunciados apenas por homens dedicados e devotos a Deus e pronunciados, portanto, em medo e temor por meio da invocação dos anjos: Vehuiah, Ieliel, Sitael, Elemiah, Mahasiah, Ielahel, Achaiah, Cahethel, etc.
Agora sim! Reuchlin talvez nos dê uma pista aqui ao citar a obra Portais de Luz. Seu título em hebraico é Sha’are Orah, tendo sido composta pelo cabalista espanhol Joseph ben Abraham Gikatilla, do séc. XIII. Há uma tradução desse livro para o inglês, Gates of Light, pelo valor módico de 7.000 reais. Por sorte, aqueles anjos que tocam o site Sefaria oferecem o texto integral, bilíngue, gratuitamente, neste link aqui. Eu ainda não pude ler a obra inteira, mas me parece um bom ponto de partida para investigar essa questão, além de ser uma leitura profundamente importante para qualquer um com interesse em Cabala.
Depois de Reuchlin, encontramos esses anjos na obra de ninguém menos que Agrippa (1486–1535), um pouco mais jovem que Reuchlin, tendo bebido dele ao escrever seu influente De Occulta Philosophia. No livro 3 dessa obra, capítulo XXV, temos uma explicação desses 72 anjos também (aqui). Agrippa vai um pouco mais fundo e inclui uma série de tabelas, permutações e reflexões sobre nomes divinos, gênios bons e maus, sua relação com a astrologia, e assim por diante. Alguns autores por vezes falam ainda que Athanasius Kircher, o autor do célebre Oedipus Aegyptiacus, do século XVII, cujo modelo da Árvore da Vida ainda é usado na Cabala hermética, pode ter tido um papel na formulação do sistema dos 72 anjos. Mas isso eu não posso confirmar ainda porque precisaria conferir o Oedipus Aegyptiacus (que é um vasto volume, ainda sem tradução) e porque também temos o problema de que a ilustração de Kircher, que eu usei para decorar este texto, contém nomes que não parecem ser os 72 nomes clássicos. Só confusão.
Por fim, vale comentarmos mais duas obras dignas de nota. Uma delas é um manuscrito francês do século XVIII catalogado como Ms Arsenal 2495, Table des 72 anges, disponível sob esse título pela Editions Du Monolithe. Os nomes de todos os anjos constam lá, junto com seus sigilos para evocação e os salmos usados. Essa não é a obra mais antiga sobre o assunto, mas talvez seja a primeira em que vemos os sigilos desses anjos, que são os símbolos que servem como assinatura e “número de telefone” para contatá-los. Um trecho desse livro consta na imagem abaixo:

E, para encerrar, eu não poderia deixar de falar dos 72 anjos do Shem HaMephorash sem tratar dos 72 demônios da Goécia. Um dos grimórios mágicos mais famosos de todos, a Ars Goetia, ou Goécia, é um dos 5 livros que formam o Lemegeton, ou Clavicula Salomonis Regis, traduzida em inglês geralmente como Lesser Key of Solomon (para distingui-la da Key of Solomon que é o volume de magia planetária onde temos o pantáculos e tudo o mais). Há muito debate sobre a origem desses 72 demônios, muitos dos quais fazem uma aparição anterior em obras como a Pseudomonarchia Daemonum, de Johann Weyer, o apêndice de uma obra maior chamada De praestigiis daemonum (1577), e a Discoverie of Witchcraft (1584), de Reginald Scot. É possível que eles não fossem 72 a princípio, e os nomes Vassago, Seere, Dantalion e Andromalius não aparecem nessas obras anteriores… porém, o formato com 72 se cristalizou logo no século XVII e não demorou para que eles fossem associados aos 72 anjos.
Famosamente, a obra goética que traça essa relação é a chamada Goetia of Dr. Rudd. Há uma belíssima edição inglesa do Dr. Stephen Skinner e David Rankine que vale muito a consulta. Como eles comentam na introdução (p. 14):
O manuscrito Harley MS 6483 evidencia o gênio de Rudd, pois o 72 selos duplos que ele oferece para se trabalhar com os 72 demônios goéticos contêm os 72 anjos correspondentes do Shem ha-Mephorash, e seus versos bíblicos associados, derivados dos Salmos. Os anjos do Shem ha-Mephorash são, como demonstraremos, usados para controlar os demônios goéticos, transformando a natureza da magia goética em uma forma de prática muito mais acessível e um tanto mais segura.
Um exemplo de um desses tais “selos duplos” é o seguinte:

Já que falamos do anjo Vehuiah, eu achei que valia a pena mostrar o demônio que é equivalente, Bael, o primeiro dos demônios da Goécia. Ali observamos, de um lado do selo, o sigilo de Bael, na interpretação de Rudd, junto com seu nome transliterado para o hebraico; do outro lado, vemos o nome Vehuiah (ou Vehujah), sua transliteração hebraica e o seu versículo em latim. Notem que o sigilo do anjo, que aparece no manuscrito francês posterior, ainda não consta em Rudd.
A identidade exata do tal Dr. Rudd ainda é desconhecida, mas o suspeito mais provável é um certo Thomas Rudd (1583 – 1656), matemático inglês com fama de ocultista. São datas um pouco posteriores às de Reuchlin e Agrippa, o que pode talvez demonstrar uma gradual consolidação desse sistema angelical. Há algumas polêmicas entre os praticantes da Goécia, porque alguns entendem essa relação entre os anjos e os demônios como uma inovação de Rudd, ao passo que eu já vi também trazerem à tona a suspeita de que Rudd estivesse bebendo de uma fonte mais antiga… mas aí já é difícil de verificar.
Quanto às associações com os arcanos do tarô, é claro que ela só acontece depois que o tarô desperta o interesse dos ocultistas do século XIX como Lévi, Papus e a turminha da Golden Dawn. É divertido observar como aos poucos a coisa toda se constitui: temos os 72 nomes divinos da tradição judaica, a partir dos quais surgem os nomes dos anjos, aos quais são somados os salmos, sigilos e, por fim, sua associação aos demônios e aos arcanos do tarô. Assim, para o praticante moderno, existe um rico repertório simbólico ao qual se pode recorrer, o que permite uma prática mais encorpada, por assim dizer.
Agora que já sabemos de onde esses anjos vieram e quais são as principais obras a serem consultadas, eu falo um pouco sobre formas possíveis de se trabalhar com essas entidades nos textos seguintes desta série: Conjurando os 72 anjos cabalísticos e A tabela dos 72 anjos.
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