Lendo a Bíblia
Talvez este texto pegue algumas pessoas de surpresa: como assim falar de Bíblia num site sobre ocultismo? Será que, como aconteceu com muitos já, o Frater desistiu da magia e virou crente? Bem, calma, gente, eu sigo firme nas capirotagens, mas quem me conhece sabe que, desde antes de eu entrar para esse mundo, eu tinha um interesse imenso em estudos acadêmicos sobre o livro mais vendido do Ocidente. Infelizmente, por motivos práticos, nunca pude levar esses estudos mais adiante como uma possibilidade séria de carreira acadêmica, mas o que eu li me serviu muito bem para ter uma ideia de até onde vai a toca de coelho que é este assunto.
Nós temos uma relação esquisitíssima com a Bíblia. Se você tiver qualquer contato com o chamado cânone literário ocidental que, querendo ou não, moldou uma boa parte de nossa cultura, nosso imaginário e forma de pensar, você vai perceber, como aponta Northrop Frye, que ele consiste, em resumo, em uma mescla dos imaginários grego e bíblico. Pense em Dante, Shakespeare, Camões, Goethe. Porém o que eu mais vejo são: 1) pessoas que têm um contato com a Bíblia mediado por figuras de autoridade religiosa que forçam uma leitura enviesada (e muitas vezes alucinada e meio analfabeta), e 2) pessoas que têm tamanho desgosto por esse fenômeno (um desgosto muitíssimo justificado) que nunca nem pegaram um texto bíblico para ler. E isso é uma pena, porque quanto menos pessoas inteligentes tiverem contato com a Bíblia, mais elas acabam deixando esse material como playground de gente ignorante e perversa, disposta a utilizá-la politicamente para justificar de tudo, desde a escravidão e a perseguição à população LGBT até a opressão da Palestina. Como eu quero deixar claro neste texto (e, talvez, em mais alguns textos futuros), a Bíblia é uma obra muito mais complexa do que isso e mais interessante, tanto num sentido literário, quanto em sua dimensão sapiencial, mística e, como já vimos, também mágica. Mas, para se ter acesso a essas dimensões, é preciso um pouquinho de estudo, especialmente no que diz respeito ao contexto.
O que eu pretendo fazer aqui não é pegar e dizer: “olha só, essa aqui é a minha forma de ler a Bíblia e a única possível”. Evidente que não, até mesmo porque eu não tenho uma opinião fechada sobre muita coisa. Meu plano é oferecer um apoio para quem tiver interesse no assunto chegar munido do aparato crítico necessário para não fazer leituras muito ingênuas (como a de que Lilith teria sido a primeira mulher de Adão, por exemplo, e que esse fato teria sido escondido pela Igreja).

Para começo de conversa, vamos definir o que é a Bíblia. É, parece óbvio, mas muita gente se atrapalha aqui, e a resposta é um pouco mais complicada do que parece. Diferente da lógica editorial a que estamos acostumados – segundo a qual uma pessoa (ou um grupo de pessoas) redige um texto e o publica, por via de uma editora, num momento histórico, atribuído a seu(s) nome(s) – a história da redação bíblica é bastante conturbada.
O que é a Bíblia?
Se você for em qualquer livraria e adquirir um exemplar da Bíblia Sagrada, o que você vai adquirir são na verdade duas unidades textuais chamadas de Antigo e Novo Testamento. Dependendo, pode ter ainda alguns bônus que são os textos deuterocanônicos. Vamos falar deles mais detidamente na sequência agora.
O Antigo ou Velho Testamento, também chamado de Tanakh, entre os judeus, ou academicamente de Bíblia Hebraica, é uma obra heterogênea. Uma forma bastante produtiva de entendê-la é como um tipo de épico nacional latu sensu. Épicos clássicos como a Ilíada e a Eneida são obras que fundamentam uma identidade grega e romana, respectivamente, com base em mitos como a Guerra de Troia, em que teriam participado diversos povos helênicos que nem sempre se enxergaram como um mesmo povo. A Bíblia Hebraica funciona numa linha semelhante, e sua principal ocupação é com a fundação do antigo Israel, sua relação com seu deus, YHWH ou Iavé, e as muitas guerras com os povos vizinhos, que culminam na destruição de Israel e seu subsequente reestabelecimento. O motivo pelo qual eu digo que é um épico latu sensu é porque os épicos gregos e latinos são obras poéticas mais homogêneas, ao passo que a Bíblia Hebraica é um imenso compêndio de textos variados, em prosa e verso, escritos em momentos diversos entre os séculos X e II a.C., mais ou menos, por vários autores (por vezes dotados de visões políticas concorrentes!) e constituindo vários gêneros textuais. O idioma em que essas obras foram compostas é principalmente o hebraico, mas há trechos em aramaico, a língua franca usada pelos babilônicos e depois pelos persas[1].
Essa variedade de gêneros é um dos aspectos que eu pessoalmente considero mais fascinante (e que as traduções às vezes acabam achatando, porque existe uma noção bem equivocada e estereotipada do que é um texto bíblico). Se você ler um livro como Juízes ou Samuel, o que você vai encontrar são narrativas de guerra, bem em molde épico, numa prosa que evidencia a dimensão humana de seus personagens. Há um grande grau de complexidade na história de Saul, por exemplo, o primeiro rei de Israel, mas que é rejeitado por Deus porque desobedece às suas ordens de matar toda a população de Amalek. É um drama de altíssima qualidade, ressaltado pelo fato de que seu filho, Jônatas, se envolve num relacionamento (possivelmente amoroso) com o substituto real de seu pai, o rei David. Os livros de Rute, Ester e Jonas, datados do período persa, apresentam uma prosa mais intrincada e complexa, possível resultado da influência de um estilo persa, ao passo que as narrativas etiológicas do Gênesis, por exemplo, são mais simples, esquemáticas, e buscam explicar como certas coisas passaram a ser como são, com frequência recorrendo a trocadilhos e jogos de palavras que se perdem nas traduções. Os infames livros de Levítico e Números, porém, são mais tediosos porque consistem, em sua maior parte, em grandes listas de leis e códigos de conduta, ao passo que o Êxodo é uma mescla de narrativa heroica com trechos tediosos de leis e instruções para a construção do Tabernáculo, incluindo até os detalhes das cortinas. E aí tem o Daniel, um livro mais tardio, que é absolutamente psicodélico.

De quebra, tem muita poesia também na Bíblia Hebraica. O livro poético mais óbvio é o do Salmos, onde vemos composições de louvor que parecem seguir um modelo bem estabelecido da poética do Antigo Oriente Próximo, que operava por linhas distintas da grega e latina. Mas também temos a poesia de Lamentações, que chora a destruição do Primeiro Templo; Provérbios, com sua gravidade sapiencial; Jó, um livro composto para explicar o problema do mal; e o Cântico dos Cânticos, em essência um poema erótico na forma de um diálogo entre Salomão e sua mais nova esposa. E ainda vários dos livros proféticos foram compostos em verso, mas trataremos melhor disso em algum momento futuro. É uma literatura imensamente rica, como se pode ver.
Já o Novo Testamento é um tanto mais simples e direto – é mais próximo daquilo que entendemos como um “livro sagrado”, uma obra de base para uma religião nascente. Seus livros foram compostos depois de Cristo, obviamente, em grego koiné, ou “comum”, uma variedade do grego que se torna língua franca em toda a região durante o período helenístico (concorrendo, assim, com o aramaico). O cristianismo, como se sabe, começa como um secto judaico, e seus autores foram provavelmente, em sua maior parte, judeus pertencentes a esse secto. A principal ênfase do Novo Testamento é a vida, bem como os ensinamentos, de Jesus, contada por via de um recurso narrativo ousado que é apresentá-la em quatro perspectivas diferentes — a de Mateus, Marcos Lucas e João. Esses textos são chamados de Evangelhos, do grego euangélion, “boas novas”. Depois temos os Atos dos Apóstolos, que trata da fundação da Igreja, e uma série de epístolas (cartas) oferecendo instruções sobre questões teológicas e morais. Boa parte delas teria sido redigida pelo apóstolo Paulo de Tarso e seus títulos refletem os indivíduos ou congregações às quais seriam destinadas (a Timóteo, aos romanos, aos coríntios, aos efésios, que eram os habitantes da cidade de Éfeso, hoje localizada na Turquia, etc.), já outras trazem o nome daquele que as assina (Tiago, Pedro 1 e 2, João 1, 2 e 3 e Judas). Por fim, encerrando a obra, temos o livro do Apocalipse, uma visão de João de Patmos que descreve o que vai acontecer nos dias finais da humanidade.
E quanto aos livros deuterocanônicos? Bem, essa parte é divertida, mas um pouco complexa de explicar, por isso peço um pouco de paciência.

Cânone é uma palavra usada, no campo da religião, para determinar quais livros seriam inspirados divinamente ou não (ela significa literalmente “mesa”, em grego). Existe uma ideia muito estereotipada de como isso se deu, como se houvesse um grupo sombrio de figuras de autoridade que excluiu certos livros para esconder “a Verdade” dos fiéis. Geralmente quando alguém fala de um livro como Enoque, é com esse tom de voz (e que é meio ridículo, tipo, calma aí, ô Dan Brown).
No caso do cristianismo, de fato houve alguns conselhos em que as autoridades da Igreja nascente se reuniram, no século III, para estabelecer quais livros eram sagrados e quais não eram – uma decisão importante a se tomar quando havia tanto material circulando, incluindo obras complicadas como os evangelhos gnósticos. Quanto ao Antigo Testamento, se nos orientarmos pelos estudos de Karel van der Toorn, a Torá (os primeiros cinco livros, como veremos abaixo) teria sido a primeira obra canonizada, pois foi usada como lei durante o período persa, e a canonização dos outros livros teria ocorrido em meio aos círculos de escribas num momento posterior, com a declaração do fim do período profético em Israel no século IV a.C., o que limitaria a lista de possíveis obras canônicas aos autores anteriores a esse período. O livro de Daniel, datado do século II a.C., conseguiu convencer o público de que teria sido escrito por um profeta do século V a.C., mas livros como Enoque e Jubileus no geral não obtiveram sucesso nessa proeza, exceto em meio a grupos mais fechados como a comunidade de Qumram, que redigiu os Manuscritos do Mar Morto[2]. Como resultado, apesar de nunca ter havido um conselho oficial, no começo da era cristã, em obras como a do historiador Flávio Josefo, um judeu que escrevia para um público romano, já existia uma noção mais ou menos clara de quais eram os principais livros da Bíblia Hebraica.
No entanto, havia vários textos que circulavam[3] ainda assim entre o público – obras que, apesar de contarem com a reverência de seus leitores, não passaram nessa nota de corte. Via de regra, são obras também que sobreviveram apenas em idiomas que não o hebraico, seja por terem sido compostas já em grego ou aramaico, seja por não terem sido preservadas em seu idioma original. Os livros de Tobias, Judite, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico (ou Sabedoria de Ben Sirá), Baruch e Macabeus são alguns desses livros que, no entanto, foram interpretados pelos primeiros cristãos como parte do Antigo Testamento, por isso integram as Bíblias católicas e do Oriente – mas foram excluídas do cânone protestante, por não terem um original em hebraico quando Lutero fez a sua tradução. Esses textos são chamados de deuterocanônicos. Os outros livros que não foram considerados canônicos, exceto por grupos bastante minoritários, são os apócrifos, o que inclui o livro de Enoque, que trata da queda dos anjos caídos, e Jubileus, um livro das revelações feitas a Moisés que teriam permitido que ele escrevesse a Torá. Essas obras acabaram se perdendo tão completamente que durante muito tempo tínhamos delas apenas fragmentos citados por outros autores, e o texto integral de Enoque sobrevive apenas em etiópico, redescoberto pelo ocidente no século XIX.
A ordem dos textos bíblicos e o enredo principal
Um fato curioso quando você folheia uma edição cristã do Antigo Testamento e uma edição judaica é que a ordem dos livros é diferente. Os judeus trabalham com uma divisão tripartida[4]:
- A primeira divisão é a chamada Torá (Lei ou Instrução), atribuída a Moisés e constituída pelos livros do Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. A Torá também é chamada de Pentateuco (do grego, significando cinco livros).
- A segunda divisão é chamada de Nevi’im (Profetas) que, por sua vez é separada entre os primeiros profetas (Josué, Juízes, Samuel e Reis) e os últimos profetas (Isaías, Jeremias, Ezequiel e um grupo de profetas menores chamados de Os Doze).
- A terceira e última divisão é a dos Ketuvim (Escritos), também dividida em três: primeiro com os livros chamados de poéticos (Salmos, Provérbios e Jó); depois com os Cinco Rolos (Lamentações, Rute, Ester, Cântico dos Cânticos e Eclesiastes) e, por fim, os livros que não se encaixam em nenhuma outra divisão que são Daniel, Ezra-Neemias e Crônicas.
Por conta dos nomes das três divisões, nessa ordem, Torá, Nevi’im e Ketuvim, a Bíblia Hebraica é chamada de TaNaKh. Ao todo entende-se que o Tanakh tem 24 livros… ou 42, se você contar Os Doze (Oseias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Micah ou Miqueias, Nahum, Habacuque, Zefanias/Sofonias, Hagai/Ageu , Zacarias e Malaquias) separadamente, mais os livros duplos Samuel, Reis, Crônicas e Ezra-Neemias.
Eu acho muito interessante essa divisão judaica, pelo fato de que ela cria uma unidade narrativa bem definida: o Gênesis serve como um prólogo, estabelecendo o cenário (tudo desde a Criação do mundo até o encontro de Deus com Abraão, sua aliança e seus descendentes Isaac, Jacó/Israel e a chegada de todos ao Egito), então o restante da Torá trata de Moisés, como ele liderou a fuga do Egito, recebeu as Tábuas da Lei no Sinai e fez com que os hebreus, por terem cometido o pecado da idolatria, errassem no deserto durante 40 anos, para que apenas a geração seguinte pudesse entrar no Canaã. Moisés morre no Deuteronômio, o livro de Josué trata da conquista do Canaã, liderada pelo seu sucessor, Juízes explora o caos do período pré-monárquico e Samuel fala do estabelecimento da monarquia, conforme Deus escolhe Saul para ser o primeiro rei, mas depois se arrepende e entrega a coroa a David. Por fim, Reis começa falando do rei Salomão, filho de David, que comete idolatria de novo e é castigado com a divisão do seu reino em dois — Israel ao norte, com a capital em Samaria, e Judá ao sul, com a capital em Jerusalém. Acompanhando as várias invasões, nós vemos então como Israel cai, destruída pelos assírios e depois seguida por Judá, invadida pelos babilônios. Com a destruição do Primeiro Templo, em Jerusalém, que teria sido construído por Salomão, começa o período do Exílio ou Cativeiro na Babilônia entre 597 e 538, durante o qual as famílias mais importantes de Judá foram levadas à Babilônia e o território dominado por Nabucodonosor II.
A fundação e queda de Israel narradas ao longo desses nove livros (uma unidade às vezes chamada de “Eneateuco”) representa o grande foco e enredo principal do Antigo Testamento, e todo o resto pode ser lido como complemento da história. Os livros proféticos costumam tratar dos oráculos que prenunciam a destruição de Israel e Judá e a promessa de seu futuro reestabelecimento; Salmos e Provérbios estão associados a David e seu filho Salomão, ao qual também são atribuídos o Cântico dos Cânticos e Eclesiastes; Lamentações trata da queda de Jerusalém; Rute é um livro, de forte motivação política, sobre a origem de David; Daniel é uma narrativa que se passa no Exílio (assim como Ezequiel) e Ezra-Neemias é um tipo de epílogo, tratando da destruição da Babilônia empreendida por Ciro, o Grande, que permite que os israelitas retornem e reconstruam o Templo. Por fim, há dois livros de histórias avulsas (Ester e Jó) e Crônicas passa tudo a limpo, vários de seus capítulos sendo apenas listas de gerações (“Adão, Set, Enosh; Cainã, Maalaleel, Jared; Enoch, Matusalém, Lameque; Noé, Shem, Ham, Jafé,…” literalmente é assim que começa).

E é isso que é fascinante na estrutura do Antigo Testamento, se pensada por um viés literário: imagine um romance com uma sequência linear, mas com um apêndice onde se encontram vários capítulos dedicados a composições dos próprios personagens e narrativas suplementares, que podem ser lidas individualmente ou como parte da narrativa principal, e dá para se ter uma ideia (eu não consigo não pensar numa comparação com uma obra como O Jogo da Amarelinha, de Cortazar).
A organização cristã, por outro lado, derivada da ordem da Septuaginta (já vou falar do que significa esse nome), eu acho um pouco menos interessante, pois compreende apenas quatro divisões, que são a Lei (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), depois livros históricos (Josué, Juízes, Rute, Samuel, Reis, Crônicas, Esdras, Neemias[5], Ester, Jó), livros poéticos/sapienciais (Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico) e termina com os livros proféticos, aos quais é adicionado Daniel [6](e Lamentações vem logo depois de Jeremias, pois é atribuído a ele). Há uma sequência linear aqui, de um modo geral, pois é relevante que ele termine com os profetas para fazer a ponte entre o Antigo e o Novo Testamento, que já começa com os quatro evangelhos. Considerando que é comum na interpretação cristã identificar versículos dos textos proféticos como alusões à vinda de Cristo (cf. Isaías 11:1 e 7:14, Jeremias 23:5-6 e 31:15, Micah 5:2, Oseias 11:1), faz bastante sentido encerrar o Antigo Testamento com esses livros e assim emendar mais facilmente o Novo, criando uma sensação de continuidade.
As traduções
A primeiríssima tradução da Bíblia foi a chamada Septuaginta, que deriva seu nome de uma lenda judaica registrada na Carta de Aristeias. Segundo consta, Ptolomeu, o general de Alexandre que ficou encarregado da região do Egito após a morte do conquistador macedônio, queria ter uma biblioteca em grego com todos os livros do mundo, mas faltava ainda uma cópia da Torá. Porque a tradução de uma obra sagrada não é uma tarefa a ser empreendida de maneira leviana, foram reunidos setenta ou setenta e dois sábios (as versões variam um pouco) que teriam se isolado durante um tempo, cada um em sua câmara, para produzirem individualmente cada um sua versão da Torá. E Ó, surpresa, quando todos foram comparar suas versões, eles teriam feito a mesma tradução — o que só poderia ser um milagre, porque é difícil já fazer dois tradutores concordarem quanto à melhor tradução de um texto pequeno, que dirá uma obra desse porte e grau de dificuldade. Por isso, essa tradução é chamada de Septuaginta, do grego para “setenta”. Na verdade, a história é um pouco menos fenomenal, e provavelmente foi um trabalho realizado por eruditos locais, para que os judeus deslocados de Israel para Alexandria, que já não sabiam hebraico, pudessem ter acesso aos textos sagrados recorrendo ao grego koiné. O trabalho começa com a Torá, mas aos poucos outros livros foram sendo acrescentados, incluindo os deuterocanônicos.
Depois, ainda no Oriente, é importante mencionar o Targum e a Peshitta. Targum é um termo do aramaico que significa algo como “versão, tradução, interpretação” — de uma raiz que também dá targumanu em acadiano, “tradutor” — e descreve traduções feitas no séc. I d.C. do texto bíblico para o aramaico (lembrando que o hebraico bíblico já era, nessa época, um tipo de “língua morta” ou, melhor dizendo, linguagem puramente literária). Essas traduções costumavam ser acompanhadas de paráfrases e comentários explicativos. Já a Peshitta é a tradução para o siríaco (outra língua aparentada do aramaico e hebraico) do Velho e do Novo Testamentos realizada no séc. II d.C. para a comunidade de cristãos do Oriente. Todas estas traduções são imensamente úteis, quando comparadas com a versão da Bíblia Hebraica que chegou até nós em hebraico, para entender a história textual da obra e suas possíveis variações nos manuscritos.
Já no séc. IV, São Jerônimo foi quem redigiu a primeira tradução integral da Bíblia inteira para o latim, chamada de Vulgata… e há muita confusão por causa disso. Várias das questões de prenúncios cristãos no Antigo Testamento (obviamente rejeitadas pelos judeus, que não reconhecem a divindade de Jesus) derivam de suas decisões tradutórias, como a história da virgem que dará a luz (Isaías 7:14) ou a menção à queda de Lúcifer (também Isaías, 14:12). Durante todo o medievo, a Vulgata serviu como a Palavra de Deus para os cristãos da Europa ocidental, de modo que os originais em hebraico e grego, que quase ninguém conseguia ler nesse período, tornaram-se desimportantes. Quem, dentre os europeus, buscou desenterrar esses textos foi Martinho Lutero, que realizou uma tradução para o alemão em 1522, com o intuito de que houvesse um texto em língua vernácula que fosse acessível a toda a população, um verdadeiro marco na história da tradução, na história da literatura de língua alemã e na reavaliação do cânone bíblico, pois dos textos atribuídos ao Velho Testamento ele rejeitou todos que não tivessem um original em hebraico — daí criando a polêmica dos textos deuterocanônicos. Lutero lançou moda e logo começaram a surgir traduções consagradas da Bíblia para línguas vernáculas, como é o caso da Bíblia King James (KJV), de 1611, que também teve um impacto tremendo sobre o inglês como idioma literário.
Quanto ao português, a primeira tradução foi obra do “homem que falava javanês”, João Ferreira de Almeida (e seu amigo Jacopus op den Akker, que continua a tradução do Antigo Testamento após a sua morte), realizada entre 1681 e 1694. Quando você visita um site como a Bíblia Online, geralmente você vai se deparar com alguma versão revista da tradução de Almeida como a Almeida Revista e Atualizada, Almeida Revista e Corrigida, Nova Almeida Atualizada e a Almeida Corrigida Fiel. Outra versão popular e muito usada é a Nova Versão Internacional, mais recente, datando da década de 1970, que buscou aproximar a linguagem da Bíblia do cotidiano. Para quem tiver um interesse em ler a Bíblia pelo viés católico e estiver em dúvida qual edição escolher, dentre as muitas edições possíveis, comentadas e anotadas, recomendo este texto do Marco Antônio, escrito para o site da Igreja São Benedito.
Na frente judaica, temos, de meu conhecimento, o trabalho recente de Meir Matzliah Melamed, que traduziu a Torá, e a tradução completa da Bíblia Hebraica realizada por Jairo Fridlin e David Gorodovits. Essas versões são obviamente indicadas para quem quiser ter acesso ao texto sem a interferência de um viés cristianizado (como o que se insinua na tradução de São Jerônimo e outras que seguem o seu rastro), mas não são versões particularmente literárias, a meu ver. Para quem quiser uma experiência mais estética, Haroldo de Campos realizou algumas traduções do Gênesis, Eclesiastes e Cântico do Cânticos. Recentemente, pensando ainda nesse viés literário, saiu também uma tradução dos Evangelhos por Marcelo Musa Cavallari, pela editora Ateliê.
Por fim, uma ótima opção de leitura, tanto pela qualidade da scholarship quanto pelo respeito à poética do texto, é a Bíblia de Jerusalém, um trabalho de tradução originalmente realizado na França em 1956, com base numa abordagem moderna de método histórico-crítico, e que depois se disseminou pelo mundo inteiro.
Se você nunca leu a Bíblia, espero que, com este texto, você se sinta encorajado a arriscar uma tentativa, munido das informações que foram expostas aqui. É preciso, sim, algum esforço para tirar a voz dos padres e pastores da sua cabeça enquanto você lê, que certamente diminuem a capacidade de aproveitar as outras perspectivas possíveis sobre essa obra, mas, depois que isso acontece, toda uma nova experiência se abre. A não ser que este texto seja um imenso fracasso de público, em textos futuros a gente pode considerar umas questões mais detidas e falar mais das dimensões místicas e mágicas da Bíblia.
Para quem tem interesse na parte mais acadêmica, eu compilei uma bibliografia que pode ser útil (infelizmente para quem não lê bem o inglês, todos os livros são gringos… mas a vantagem é que todos podem ser baixados no Libgen). Quando eu ministrei um grupo de estudos sobre o assunto, durante os meus anos de mestrado e doutorado, foram esses os livros que eu utilizei e acho que podem ser interessantes 1) para vocês não acharem que eu estou tirando as informações deste texto do buraco… da minha cartola; e 2) para quem tiver tempo livre e interesse mergulhar mais a fundo na questão. O .pdf com essa bibliografia está neste link.
Atualização: eu dei continuidade a esse assunto num texto posterior sobre a questão do monoteísmo bíblico, neste link.
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[1] Durante a maior parte da Idade do Bronze a língua usada para comércio e diplomacia no Antigo Oriente Próximo era o acadiano, cujos principais dialetos eram o assírio e o babilônico. Posteriormente, o aramaico vai substituindo o acadiano como a principal língua do império babilônico e continua sendo usado depois que os persas dominam o território. Seu papel como língua franca e língua cotidiana no Oriente Próximo começa a minguar apenas com a ascensão do islã, quando o árabe passa a cumprir esse papel.
[2] Os Manuscritos do Mar Morto são um conjunto de textos, datados dos séculos IV a.C. – I d.C., descobertos na década de 1940 nas cavernas de Qumram, às margens do Mar Morto. Uma hipótese popular afirma que esses textos foram produzidos pelos essênios, um grupo sectário de judeus com umas ideias teológicas bastante próprias, como a de que a humanidade se encontrava no meio de uma batalha entre o bem e o mal, travada entre os Filhos da Luz, liderados pelo arcanjo Miguel, e os Filhos das Trevas, liderados pelo demônio Belial.
[3] É importante ter em mente essa ideia da circulação de textos. Existe uma discussão acirradíssima entre os estudiosos quanto ao grau de alfabetização da população no antigo Israel – e algumas pesquisas recentes sugerem que essa taxa era maior do que se imaginava. Havia, claro, vários empecilhos para a divulgação de textos, o principal deles sendo o alto custo do pergaminho e do trabalho dos escribas. Karel van der Toorn, no livro que consta em nossa bibliografia, comenta que o valor de um rolo contendo o livro de Isaías custava 200 peças de prata, mais do que seis meses de salário, e que um comércio de pergaminhos começa a existir apenas a partir do período helenístico. A ideia de a Bíblia ser composta por vários livros deriva do fato de que cada “livro”, exceto os menores, ocupava um rolo, motivo pelo qual Samuel, Reis e Crônicas são livros duplos, porque cada um exigia dois rolos para caber o texto todo. Assim sendo, havia um comércio de textos entre as camadas superiores da população, dotadas de dinheiro e o nível de alfabetização necessários para isso. Ao que tudo indica, seria impossível alguém ter uma coletânea de todos os textos bíblicos em casa, pois o preço seria proibitivo. Provavelmente é essa dinâmica mais solta que permite que comunidades como a de Qumram tivessem seu próprio cânone, sua própria seleção de textos. Entre os cristãos, parece que já no século I começa a surgir uma comunidade bastante ativa em trocar cartas e copiá-las em papiro, um material mais barato do que pergaminho.
[4] É preciso lembrar, porém, que essa divisão tripartida, apesar de ser uma organização útil e engenhosa, é posterior e não reflete as etapas da canonização dos livros judaicos. Como Karel van der Toorn aponta, a questão da ordem só passa a fazer sentido depois que saímos do formato de rolos avulsos para o formato de códice, que é como entendemos a ideia de um livro. Isso acontece por volta do séc. III d.C.
[5] Em hebraico, estes dois livros são um só, chamado Ezra-Neemias (Nehemiah), mas as bíblias cristãs costumam dividi-los em duas unidades e usam o nome helenizado Esdras em vez de Ezra.
[6] Daniel, como personagem, é um profeta de fato, mas seu livro é tardio, do séc. II a.C., e não é uma obra profética, mas apocalíptica. Trataremos dessas diferenças num texto futuro.