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Lendo a Bíblia: o Livro do Gênesis

Lendo a Bíblia: o Livro do Gênesis

Leitura em 20 min
Fonte: O Zigurate

Nos textos anteriores da nossa série Lendo a Bíblia, eu dei um contexto geral sobre o assunto e falei da questão da formação do monoteísmo, mas ainda não comecei a tratar de nenhum livro específico, porque tem coisas que são importantes saber antes de sequer começar a folhear o seu exemplar bíblico. Via de regra, as pessoas tendem a começar pelo livro do Gênesis – afinal é o primeiríssimo livro da Bíblia. Parece meio lógico começar por aí, né? Mas também tem algumas coisas que é útil ter em mente enquanto você senta e lê a história de Deus, Seu tempo e Sua obra.

Antes de mais nada, algumas informações sobre o nome do livro: “Gênesis” é como o conhecemos em português por ser o título que o livro assumiu na Septuaginta, sua tradução para o grego koiné do período helenístico. Gênesis, em grego (γένεσις), quer dizer “nascimento, origem, princípio”, um substantivo verbal derivado de gígnomai, “passar a ser/existir” de uma raiz protoindo-europeia associada a nascimentos e gerações, que também dá genos e genus, “raça”, que por sua vez resulta em vários termos em português como gênero, gente, germinar, gônada, primogênito, progenitor, genocida, etc. Em hebraico, os nomes dos livros da Torá são diferentes, pois o que se usa como título é a primeira palavra do primeiro versículo. A Bíblica começa com “No princípio criou Deus o céu e a terra”, Bereshit bara’a Elohim et-haaretz v’et hashamayim e por esse motivo Bereshit, literalmente “no princípio”, é o nome do livro. Depois Êxodo é Shemot (literalmente “nomes”), Levítico é Wayqra (“e disse”), Números é B’midbar (“no deserto”) e Deuteronômio é Devarim (“palavras”). No caso do Gênesis, fica meio elas por elas, mas é muito engraçado, pensando por uma visão moderna[1], que o Êxodo vira o famoso caso da história com um spoiler no título, no melhor estilo daquela lenda que, em Portugal, Psicose teria sido traduzido como “O Filho Que Era a Mãe”. Mas, enfim, é isso.

Outra coisa importante é que, em termos de estrutura, podemos pensar no Gênesis como sendo, em essência, dois livros (ou talvez três, depende de como você divide). A primeira parte é a história da infância do mundo, em que vemos a narrativa da criação do cosmos, dos primeiros seres humanos (Adão e Eva, Caim e Abel), temos um olhar de relance do mundo antediluviano, então o Dilúvio e como Noé salvou os animais, até a história da torre de Babel. Isso vai dos capítulos 1 ao 11. A segunda parte do Gênesis é mais centrada na vida familiar dos primeiros patriarcas – então vemos a história de Abraão, com quem Deus firma uma aliança, que gera Isaac, que gera Jacó, cujos descendentes constituem as 12 tribos de Israel. Abraão (ainda chamado Abrão) aparece no final do capítulo 11 e ocupa o papel de protagonista da narrativa até o capítulo 25. Então, Jacó ocupa o palco do capítulo 25 até o 37, e do 37 ao 50 nós vemos os seus filhos e as confusões que eles aprontam.

Caos: Criação do Mundo (1841), de Ivan Aivazóvski

Tudo isso, como dito, serve de prólogo para a história de Moisés, que ocupa quatro dos cinco livros do Pentateuco. Como sabe qualquer um que tenha visto O Príncipe do Egito, no começo do Êxodo nós vemos Moisés como filho adotivo do Faraó, enquanto seu povo, os hebreus, sofre com a escravidão. Assim o livro do Gênesis oferece todo o pano de fundo para sabermos o que aconteceu antes disso e como esse pessoal todo foi parar lá, para começo de conversa. E, para chegar lá, os autores decidiram começar do começo mais primordial possível, que é o começo do próprio mundo.

A terceira coisa importante, talvez uma das mais importantes, é a questão do estilo do narrador bíblico neste livro[2]: ele é extremamente lacônico. O filólogo Erich Auerbach oferece um estudo famoso disso logo no primeiro capítulo do seu Mímesis (1946). Intitulado “A Cicatriz de Ulisses”, nesse ensaio Auerbach contrasta o estilo do livro do Gênesis com as narrativas homéricas, apontando para o fato de que, em Homero, tudo está o tempo todo em primeiro plano: quando somos apresentados a um novo personagem, o narrador se esforça para nos oferecer a história de fundo daquela figura, o porquê de ele ser importante, sua linhagem e narrativas relevantes. Tudo é descrito em detalhes – e famosamente, mais de 100 versos são dedicados a comentar só as imagens gravadas no escudo de Aquiles no canto XVIII da Ilíada, por exemplo. A cena de reconhecimento de Odisseu/Ulisses na Odisseia, que entra em Ítaca disfarçado e é reconhecido por Euricleia, sua antiga ama, por conta de uma cicatriz na coxa também não poupa esforços em nos oferecer o flashback de como ele conseguiu essa marca ao caçar um javali. Quando contrastamos esse estilo com o do Gênesis – Auerbach fala em específico do relato do sacrifício de Isaac –, a interação entre Deus e Abraão nos “deixa perplexos”. Diz o autor:

Onde estão os dois interlocutores? Isto não é dito. Mas o leitor sabe muito bem que normalmente não se acham no mesmo lugar terreno, que um deles, Deus, deve vir de algum lugar, deve irromper de alguma altura ou profundeza no terreno, para falar com Abraão. De onde ele vem, de onde se dirige a Abraão? Nada disto é dito. Ele não vem, como Zeus ou Poseidon, das Etiópias, onde se regozijara com um holocausto. Nada se diz, também, da casa que o movera a tentar Abraão tão terrivelmente. Ele não a discutira, como Zeus, com outros deuses, numa assembleia, em ordenado discurso; também não nos é comunicado o que ponderara no seu próprio coração; inesperada e enigmaticamente penetra na cena, chegado da altura ou profundeza desconhecidas e chama: “Abraão!”.

Apenas o mínimo necessário para se entender o que está acontecendo é dito no texto. Descrições são esparsas, motivações são resumidas, o pano de fundo não tem maiores detalhes. Não por acaso, esse silêncio é o que fomenta as infindáveis discussões da literatura rabínica: afinal, se todos os detalhes fossem dados, não haveria o que discutir ou especular. Isso vai ser relevante daqui a pouco.

Outro ponto crucial e que as pessoas desconhecem ou esquecem é que o Gênesis tem MUITO trocadilho em hebraico. Em dado momento, como eu comentei num texto anterior, Esaú faminto vende os seus direitos como primogênito a seu irmão Jacó em troca de um mingau vermelho, por isso passa a se chamar Edom. Para um leitor que lê a história em português, trata-se de um non sequitur. Para um leitor do hebraico, porém, faz todo sentido, pois Edom é um condimento vermelho, aparentado do verbo adom que significa “ser vermelho”. É a lógica da piada cretina do óculos vermelho para ver melhor. Mas é relevante, porque, como dito, Edom é umas nações vizinhas e rivais de Israel (que são os descendentes de Jacó), possivelmente a origem do culto ao deus YHWH – e assim essa rivalidade religiosa e geopolítica é tratada como um equivalente, a nível nacional, de uma briga entre irmãos. Não por acaso também, os filhos das filhas de Lot, que embebedam o próprio pai para transarem com ele, se chamam Moab e Ammon… outras duas nações vizinhas e rivais.

Os nomes também são carregados de sentido. “Adão”, adam em hebraico, significa simplesmente “ser humano” e a coisa toda de ele trabalhar a terra e enfim voltar a ela é enfatizada pelo fato de que um dos termos para “terra” em hebraico é adamah. Abraão vem de Ab rab ‘am, “pai de uma multidão de povos”. Seu filho Isaac, Yitzchaq, vem da frase “ele ri” (verbo shachaq), que é a reação de Abraão quando Deus anuncia que sua esposa, Sara, até então infértil, vai ter um filho. Quando o narrador nos apresenta Noé, Noach em hebraico, logo antes ele diz que Deus se arrependeu de ter feito os homens – e arrepender-se, sentir remorso, é o verbo nacham. São as mesmas consoantes. E por aí vai. Isso acontece o tempo inteiro.

Ufa. E acho que isso serve como um aviso básico, então. Via de regra, quando algo parecer bizarro demais, se você pressupor que tem algum trocadilho aí, tem altas chances de você ter razão. A partir disso, podemos pensar em algumas questões mais individuais.

É muito provável, ao ler o Gênesis, que você sinta a tentação de elaborar interpretações das mais diversas, especialmente com os primeiros capítulos. Eu vou frisar que é muito importante resistir a essa tentação. Muita gente não resistiu, e é por isso que temos tantos hot takes por aí do tipo “a história de Adão e Eva é uma proibição ao sexo“, “eu fiz uma análise psicanalítica/psiquiátrica de Deus e concluí que ele é um narcisista” ou coisas assim. Lembre-se que você tem diante de si um texto com muitas camadas, sendo uma compilação de histórias populares de um povo do começo da idade do ferro cujo pensamento e cuja forma de enxergar a realidade seriam completamente estranhos a nós, tendo sido influenciada ainda pelo meio intelectual e cultural prévio que remete a outros habitantes do Levante, à Mesopotâmia e, em algum grau, também ao Egito. Aí tem a compreensão de que essas histórias foram compiladas e com frequência reinterpretadas já no processo de compilação, a fim de não contrastar demais com a teologia sacerdotal que emerge no período pós-exílico. E então temos a camada das leituras do judaísmo rabínico, posterior, e do cristianismo, que vai ser responsável por muitos dos clichês que as pessoas associam à história de Adão e Eva, por exemplo, como a ideia do pecado original, que não é um conceito nativo do judaísmo.

Litros de tinta já correram sobre o assunto e tentar chegar a qualquer conclusão nova aí sem esse repertório só vai fazer você passar vergonha. Em vez disso, eu recomendo anotar esses insights e possíveis interpretações e depois pesquisar a fim de ver quem ao longo da história da exegese bíblica já chegou a conclusões parecidas (e também a conclusões opostas). Eu fiz chacota no parágrafo anterior com quem chega à conclusão genial de que sexo era o fruto proibido, porque é uma das ideias mais comuns que você encontra por aí… e então você lê o Paraíso Perdido, de Milton, e vê que tem uma cena de sexo antes da Queda e fica com cara de tacho. Uma obra de mais de 300 anos já tem uma leitura mais interessante do que isso. Mas espera que melhora: segundo o Talmude, o grande compilado das discussões da literatura rabínica, Adão teria feito sexo com todos os animais antes de Eva ser criada, mas só ela pôde satisfazê-lo. E Eva também teria trepado com a serpente (fonte). Pois é.

De novo, boa parte da culpa por tudo isso repousa no estilo do narrador bíblico. Ele só descreve o mínimo do mínimo, ao mesmo tempo em que alude a diversas coisas intrigantes que estão no pano de fundo, sem jamais elaborá-las com mais detalhes. E o que é pior, com frequência a lógica que amarra uma frase a outra é a pura livre associação dos jogos de palavras. Vamos ver alguns exemplos disso e suas consequências.

A primeira e mais marcante é a confusão em torno dos dois relatos da criação. Em Gênesis 1, Deus cria o ser humano no 6º dia, “E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”. Em Gênesis 2, porém, vemos Deus criando o primeiro homem, Adão a partir do barro. Na sequência ele cria uma mulher, Eva (chavvah, “coisa viva” ou “mãe dos vivos”). Muita gente já estranhou o fato de que o ser humano parece ter sido criado duas vezes e, claro, várias explicações surgiram para isso. Uma explicação simples, de autoridade rabínica, interpreta esse trecho todo como um texto coeso e deriva daí o entendimento de que são aspectos diferentes do ser humano que são criados aqui: primeiro, em Gênesis 1, é criado o bicho homem, por assim dizer, o ser humano como todos os outros animais. Em Gênesis 2, é criada a humana divina do homem, acima e além do restante da criação. Algumas leituras cabalísticas, de fato, vão além ainda, como aponta Aryeh Kaplan em seu comentário ao Sefer Yetzirah, e afirmam que Adão e Eva não foram os primeiros humanos, mas os primeiros humanos dotados de uma alma. Complexo.

Num outro nível, mais filológico, entende-se que a discrepância das duas histórias se dá por serem de fontes diferentes. A narrativa do jardim do Éden – mais dramática, em que observamos um Deus claramente antropomórfico interagir com o casal primordial, proibi-lo de comer da fruta da Árvore do Bem e do Mal e depois se escandalizar por ser desobedecido – é provavelmente a mais antiga e demonstra aquela estranheza com a qual todo material mitopoético nos confronta. Nos termos da chamada Hipótese Documental, essas são as características da fonte Iavista ou J. O famoso (ou infame) crítico literário Harold Bloom chegou a dedicar um livro a esse ilustre anônimo, The Book of J, nos anos 1990. Como qualquer livro do autor, com frequência há alguns problemas sérios em sua argumentação (a começar pelo fato de que Bloom lê pouquíssimo hebraico), mas de vez em quando brilham algumas ideias interessantes, como a possibilidade, segundo Bloom, de que J fosse uma mulher – o que Moacyr Scliar aproveitou de mote para compor o seu romance A mulher que escreveu a Bíblia, que eu recomendo imensamente.

Gênesis 1 (mais especificamente o trecho entre 1:1 e 2:3), segundo essa linha de pensamento, seria obra da fonte P ou sacerdotal. Nela, há pouquíssimo de humano em Deus, e observamos uma figura inteiramente transcendente, um espírito que paira, sem corpo, criando um mundo à parte de si mesmo, sem recorrer ao mote do Chaoskampf que é a norma do Oriente Próximo, mas por meio de enunciações. Não há drama ou tensão nesse trecho, apenas a enumeração do que Deus criou a cada um dos sete dias da criação, reservando o sétimo para o descanso, o que é a base divina para a etiologia da prática de guardar o shabbath. O conflito conceitual entre essas duas noções de Deus, o Deus puramente supremo transcendente e inapreensível e o Deus que volta e meia interage com sua criação e demonstra sentimentos de contentamento, arrependimento e raiva, é um assunto recorrente entre as preocupações dos intelectuais judeus do período medieval, como comenta Justin Sledge em sua série de vídeos do canal Esoterica sobre o desenvolvimento da religião judaica e seu misticismo. Esse problema é resolvido por Maimônides com a vitória do Deus transcendental e a racionalização de todo o resto como metáforas. Já a Cabala vai encontrar um método um pouco mais… complexo para tratar dessa questão (a parte VI dos vídeos do Dr. Sledge, “Early Kabbalah” é especialmente instrutiva aqui).

Assim, partindo dessa perspectiva, o motivo da repetição da história da criação é que temos dois autores diferentes que escreveram em períodos diferentes com intuitos diferentes. J é criativo, dramático, brincalhão e enigmático – há autores, inclusive, como Ziony Zevit, que postulam que a história de que Eva teria sido criada a partir da costela de Adão, um belo exemplo de nonsense bíblico, seria um mal-entendido. Na verdade, para Zevit, o termo tselem seria melhor entendido como um eufemismo para o báculo, o osso peniano que se encontra em vários animais, incluindo macacos, mas não no ser humano, e logo essa parte da história do Éden seria um tipo de explicação lúdica para a ausência desse osso no ser humano. A fonte P, por outro lado, não tem tanto senso de humor e ironia, contribuindo com trechos com maior utilidade religiosa (incluindo as partes mais insípidas cheias de leis). O cabalista, no entanto, vai encontrar até mesmo nas leis mais incompreensíveis elementos de uma cosmovisão mágica que lhes confere legitimidade, e também o Gênesis 1 vai servir para sustentar a doutrina das dez sefiroth, as emanações de Deus que fazem a ponte entre a divindade inefável (Ein Sof) e a criação de fato. Não por acaso, eles entendem que quando o texto diz que “homem e mulher os criou”, ele se refere a um tipo de ser humano primordial anterior, chamado de Adam Kadmon, que seria andrógino e cujo corpo constitui uma das primeiras formas do mundo. Esse nome o distingue do Adão de fato, o da folhinha tapando as partes, que é chamado de Adam Rishon (Adão Primeiro).

Uma outra possibilidade de leitura, que convém chamarmos talvez de conspiracionista, é que a vai entender que esse duplo relato da criação está escondendo alguma coisa – no caso, a ideia de que Adão teria uma primeira mulher antes de Eva, o que dá margem para a história de Lilith (de que já tratamos em outro momento). E assim por diante.

William Blake – A queda de Satã

Outro ponto provocativo acontece pouco depois. Em Gênesis 5 temos um dos vários trechos que são chamados de toledot (gerações), basicamente grandes listas genealógicas que indicam que fulano viveu não sei quantos anos e gerou beltrano, que gerou sicrano, e assim por diante. Essa primeira das toledot é muito alucinada, porque 1) pessoal vive durante muitos e muitos anos[3] e 2) tem uma figura, chamada Hanok, Enoch ou Enoque, que não morre. Em vez disso, o texto diz “E andou Enoque com Deus; e não apareceu mais, porquanto Deus para si o tomou.” (Gen. 5:24). A partir daí o pessoal interpretou que Enoque foi levado vivo por Deus, arrebatado para os céus. Segundo uma tradição que se desenvolve bem mais tarde, ele teria se transformado num anjo, Metatron, uma figura tão poderosa que chega a ser chamada, quase blasfemamente, de “pequeno YHWH”. E piora: seu nome é usado para assinar os textos pseudepigráficos conhecidos como o Livro de Enoque, mais uma obra muitíssimo controversa.

Enoque é um dos chamados apócrifos, porque é uma obra que, apesar de sua popularidade na época da viradinha entre a era antes e depois de Cristo, nunca chegou a ser admitida pela ortodoxia judaica como dotada de inspiração divina. Isso não significa que não fosse importante para vários grupos de judeus da Antiguidade, como indica a presença de seus fragmentos nos Manuscritos do Mar Morto, mas o desenvolvimento do judaísmo rabínico o deixou de lado, provavelmente por considerar as coisas escandalosas que ele diz como bobagens. Mas, de novo, o mote para esse livro é um trechinho enigmático de Gênesis, cap. 6, vers. 4:”Havia naqueles dias gigantes na terra; e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens e delas geraram filhos; estes eram os valentes que houve na antiguidade, os homens de fama.”. O termo em hebraico traduzido como “gigantes” é Nephilim, o que ninguém na verdade sabe muito bem o que quer dizer. O texto é claro em afirmar que os “filhos de Deus” (b’nei Elohim) visitaram as filhas dos homens e geraram filhos, que seriam esses homens de renome. A leitura mais ortodoxa interpreta que “filhos de Deus” aqui se refere a aristocratas e seu comportamento corrupto, mas os autores de Enoque, subscrevendo a uma visão de mundo apocalíptica [4], entendem que seriam anjos e a partir daí surge a narrativa de que esses anjos, liderados pela dupla Shemhazai (ou Semyazah) e Azael, teriam caído pelo pecado da luxúria, por desejarem as belas mulheres humanas[5], com quem concebem filhos monstruosos. Eles também ensinam conhecimentos proibidos, como astrologia, magia e herbalismo – o que eu não consigo não ver como uma perversão da narrativa dos apkallu mesopotâmicos, os sábios antediluvianos que ensinaram esses saberes ao ser humano, com a diferença de que nas narrativas babilônicas esses ensinamentos são considerados positivos para a civilização.

O judaísmo mais ortodoxo vai rejeitar o conceito de anjos caídos (afinal, anjos tradicionalmente não têm vontade própria, sua vontade coincide sempre com a de Deus, por isso não faria sentido eles se rebelarem), mas isso e todo o conceito do apocaliptismo vão ter um impacto tremendo no desenvolvimento do cristianismo. E pensar que tudo surge por causa de um único versículo obscuro!

Para encerrar e evitar que este texto fique muito longo e cansativo, vou dar mais um exemplo – agora realmente bizarro. Vamos pular para Gênesis 9:20-29. Nesse trecho, Noé enche a cara com o vinho da parreira que ele plantou, após o dilúvio, e tira a roupa (quem nunca?). Seu filho Ham (também transliterado como Cham ou Cão) o vê nu. Como resultado, Noé roga-lhe uma maldição que diz que, por conta do que ele fez, seus descendentes (que serão o povo do Canaã) serão escravizados pelos descendentes dos seus irmãos. É um trecho bizarro, em múltiplos níveis. Primeiro, porque é uma maldição desproporcional ao que está escrito e segundo porque houve todo um processo de telefone-sem-fio que fez surgir a ideia de que Ham seria negro, por isso seus descendentes seriam africanos[6], o que forneceu para escravagistas um respaldo teológico, cretino ao extremo, para tentar justificar a escravidão com base na Bíblia (ainda hoje em certos círculos evangélicos é capaz de você ouvir essa história, aliás).

Ham Zombando de Noé, de Bernardindo Luini (séc. XVI). A expressão do Ham é pra morrer.

Bem, alguns rabinos também acharam meio desproporcional o castigo de Ham, e o Talmude (Sanhedrin 70a) registra uma discussão entre os sábios Rav e Samuel, do séc. III d.C., que chegam à conclusão de que Ham teria feito alguma coisa contra o seu pai que não foi registrado por escrito. Rav entende que ele castrou o pai, ao passo que Samuel diz que ele o sodomizou. Parece absurdo e até mesmo perverso, mas há uma lógica aí e a quem quiser compreender melhor como os autores derivaram esse entendimento desse trecho do Gênesis, eu recomendo o artigo de David Goldenberg, “What Did Ham do to Noah?”, onde ele entra em maiores detalhes.

Enfim, é uma tarefa muito ingrata comentar o livro do Gênesis, porque eu não quero me demorar demais por aqui e ao mesmo tempo, embora o texto já esteja longo, eu estou ainda apenas começando a arranhar a superfície. Temos muito mais coisas divertidas que valeria a pena apontar, como as estranhezas da história de Caim; a Torre de Babel (mais um cutucão contra os babilônicos); a questão do sacrifício de Isaac (e o pesquisador que propôs a hipótese de que teria uma versão em que Isaac de fato é morto); as concepções equivocadas sobre Sodoma e Gomorra; a importância da mudança dos nomes de Abraão e Sara; a ideia do livro de Jubileus de que Adão falava hebraico no Éden (e que os animais também falavam); a luta entre Jacó e um anjo (ou o próprio Deus) que o leva a assumir o nome Israel; os números que não fecham entre a edição massorética, samaritana e da Septuaginta, e por aí vai. Mas acredito que o que vimos aqui, com os exemplos dados, já cumpra a sua função de aviso ao leitor que estiver enfrentando esse material pela primeira vez para 1) evitar cair em algumas das armadilhas de leitura mais comuns e 2) derivar o máximo de entretenimento daqui, porque, quanto mais a fundo a gente entra nisso, mais divertido o livro fica. Tanta coisa aqui é uma piada pronta já (Adão com os animais…..), sem, no entanto, ser piada de fato que, para mim, é muito difícil não encarar tudo com um grande maravilhamento. E é aí que está a magia da coisa.

***

[1] Óbvio que eu falo em spoiler como piada. Não existia a noção de ler/ouvir uma história esperando uma surpresa no final. Isso parece ser uma invenção do séc. XIX, mas eu acho anacronismos são divertidos.

[2] Eu digo “neste livro” em específico, porque as características que Auerbach comenta aqui na sequência não se aplicam para todo o Antigo Testamento.

[3] A questão da idade das pessoas na Bíblia é complexa. Abraão já tinha mais de 70 anos quando Deus o encontra e vive mais cem anos. Há quem diga que seja um tipo de contagem em que a idade real é a metade do número dado, ou seja, Abraão teria uns 30 e poucos, na verdade. Mas mesmo assim a idade do povo da era antediluviana é absurda, o que faz sentido quando se lembra da narrativa do dilúvio da mitologia mesopotâmica. Segundo consta, um dos acordos feitos com os deuses após o dilúvio é que o tempo de vida dos humanos será reduzido, uma noção que parece sobreviver na cultura hebraica.

[4] O Livro de Enoque faz parte do gênero da literatura apocalíptica, de que trataremos num texto futuro, se tudo der certo. Enquanto isso, vale a pena assistir ao vídeo do Dr. Justin Sledge sobre o assunto.

[5] Uma outra versão, a do Midrash de Shemhazai e Azazel, entende que os dois anjos quiseram descer ao mundo dos humanos com um propósito mais nobre, o de arrumar a bagunça que a gente fez e santificar o nome do Senhor. Deus lhe diz que não é uma boa ideia, mas não os impede e aí quando eles descem, acabam se tornando suscetíveis à Inclinação ao Mal (yetzer hara, de que falei no texto sobre sombras) e então dá a merda que dá.

[6] Dicas de leitura sobre esse assunto incluem Stephen R. Haynes, Noah’s Curse: The Biblical Justification of American Slavery, e David M. Goldenberg, The Curse of Ham: Race and Slavery in Early Judaism, Christianity, and Islam.

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