Um roteiro para invocação da deusa Ishtar
De todas as deidades do panteão babilônico, Ishtar, conhecida também como Inana em sumério, é aquela com quem eu tenho maior proximidade. Já falei dela algumas vezes aqui no site – temos um texto só dedicado a tratar de quem ela é e outro com um de seus hinos, além do texto introdutório sobre o panteão em si. E, como eu falei, recentemente tenho observado um número de pessoas que vieram me procurar atrás de material para trabalhar com Ishtar. Pois eu interpretei isso com um sinal e, com a vênia do meu pessoal lá do outro lado, decidi que era hora de fazer algo que eu não costumo fazer, que é compartilhar, em aberto, um passo a passo para quem tem interesse em invocá-la ritualisticamente.
Antes de mais nada, é importante que todo mundo que estiver me lendo tenha se familiarizado com os outros textos que eu publiquei anteriormente. Este não é um texto introdutório e eu vou presumir que você já sabe quem é Ishtar, suas características, seu lugar no panteão e tudo o mais. É bom frisar ainda que o meu trabalho com o panteão mesopotâmico não é reconstrucionista. No ano passado, o nosso caríssimo Petter Hübner escreveu um guest post para O Zigurate tratando dos dilemas do politeísmo contemporâneo, e eu levo essas considerações bastante a sério. O que eu pretendo não é fingir que sou um sacerdote babilônico de 1500 a.C. praticando as coisas tais como elas eram praticadas naquela época, mas sim reconhecer a minha condição na modernidade e por isso deixar claro que esse é um trabalho radicado na minha experiência pessoal, que também incluiu um contato com outras correntes esotéricas. Ao mesmo tempo, eu acho que um elo com a antiguidade é desejável, e assim eu sempre busco utilizar os símbolos e material textual genuíno.

O propósito deste ritual é estabelecer um contato inicial com a deusa de um modo seguro, para garantir que você vai de fato se conectar com ela e não com alguma coisa suspeita (o que pode acontecer quando a gente não cuida da purificação e faz as coisas no freestyle). Geralmente, é um trabalho bastante intenso, por isso eu acho importante preparar-se antes. Em termos de trabalho devocional, não é preciso repeti-lo sempre, e uma forma simplificada de culto para prática diária pode ser feita depois desse primeiro contato. Mas quem quiser pode praticar esse ritual sempre que se sentir confortável, pois esse contato intenso é bastante condutivo às transformações internas que acompanham o trabalho devocional. Eu entendo, afinal, que é para isso que a gente invoca seres divinos, como anjos ou deidades. Dá, sim, para invocá-los com objetivos mais mundanos e pontuais, mas esse, a meu ver, não é o uso mais produtivo dessa energia – e, em todo caso, para esse uso pontual também ajuda você ter estabelecido uma relação prévia com a entidade. Quando comungamos com esses seres, nós deixamos que a sua energia permeie a nossa, num tipo de alquimia sutil que pode, sim, também trazer mudanças em nossa condição material, mas é uma fonte de transformações internas que, pouco a pouco, nos aproximam do divino. Entendo que essa é a ideia por trás do conceito de teurgia e quem quiser saber mais pode ler sobre o assunto na obra de Jâmblico (como em De Mysteriis).
O ritual em si é bastante simples, como vocês vão poder ver. Antes disso, no entanto, eu recomendo algumas etapas preparatórias. Como dito já anteriormente em meu texto sobre invocação de deuses antigos, o primeiro passo é se familiarizar com a divindade a nível intelectual. Para isso servem os textos que eu indiquei daqui, que aí vocês também podem usar como referência para procurar uma bibliografia mais especializada. Recomendo ainda familiarizar-se com as palavras do hino a Ishtar, cantado por Stefi Conner e o Lyre Ensemble.
Feito isso, vamos aos preparativos no nível material. Você vai precisar de um castiçal ou porta-velas (ou mais, se for usar mais de uma vela), um incensário e um sino, além de um altar ou uma mesa que possa servir temporariamente de altar. Se você tiver um robe ou túnica que usa para rituais, pode usá-lo, senão qualquer roupa limpa já serve. Eu também tenho um par de anéis, de cornalina e lápis-lazúli, duas pedras com um papel importante nos rituais religiosos mesopotâmicos, que me acompanham, um em cada mão, em todos os trabalhos desse tipo. Não acho que sejam obrigatórios, mas são úteis caso você pretenda fazer esse trabalho mais vezes.

E aí chegamos na parte do símbolo da deusa. O símbolo de Ishtar é a estrela de oito pontas, que vocês podem ver acima. Se essa é a primeira vez que você vai fazer essa invocação, recomendo desenhá-lo, com cuidado, num papel de qualidade, como Canson ou algo do tipo. Esse desenho acima é colorido, mas você pode fazer em preto e branco mesmo. Imprimir também é uma opção, mas eu não gosto tanto, porque acho importante esse envolvimento pessoal no processo de criação. Depois, se der liga, você pode desenhá-lo em algum material mais permanente, como argila, ou fazer ou mandar fazer o símbolo em metal, num medalhão ou pingente. Usar imagens da deusa, tais como ela aparece em relevos clássicos, impressas em papel de fotografia de boa qualidade, também é uma opção, mas sai mais caro. O que eu não recomendo para um primeiro contato é ter uma estátua, porque estátuas requerem um cuidado maior e tem toda uma burocracia envolvida no trabalho de animá-las (vide os rituais chamados de mis pî pit pî).
Depois, temos as oferendas. Recomendo fortemente fazer boas oferendas, especialmente nesse primeiro momento de contato. Boas opções são incenso de qualidade (olíbano, mirra, sândalo, benjoim, rosas, etc.), pão, frutas e cerveja – nada de Itaipava, por favor, recomendo algo com uma qualidade melhorzinha.
Antes do ritual, claro, é importante cuidar da sua energia. Realize uma boa limpeza energética no seu próprio campo e no seu espaço, segundo os métodos que você utiliza normalmente. Pelas informações que temos, era comum os sacerdotes se banharem antes de rituais e cuidarem do hálito (o que se traduz hoje em termos de escovar os dentes!), então tem isso também.
Sem mais delongas, então, vamos ao passo a passo.
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Uma invocação de Ishtar
Prece preliminar: recomendo começar os trabalhos acendendo a vela branca e recitando a prece preliminar para trabalhos mesopotâmicos que está aqui no site. A gravação com a pronúncia está no canal do Telegram. Não se preocupe demais com essa parte da pronúncia, porque, sendo uma língua morta, os detalhes de prosódia, etc, não são bem conhecidos. Faça o melhor que conseguir, que já está valendo.
Dedicação das oferendas: levar as mãos sobre as oferendas, visualizar uma chama branca cobrindo-as. Recitar: “Pela graça e esplendor de Bel, eu purifico, multiplico e abençoo estas oferendas, com o nome ENBILULU-HEGAL” (entoar este nome divino três vezes).
Agora você vai acender as outras velas e o incenso, com uma fórmula simples: “À deusa Ishtar eu dedico humildemente estas oferendas de vela/incenso/etc. Que elas alegrem teu coração”. Enquanto o incenso queima, cantar as palavras em babilônico: lišib qutrēnu / liqriam ilī rabûtim (literalmente, “que paire a fumaça do incenso. / Que ela me convoque diante dos grandes deuses”).
Feito isso, com tudo aceso e o símbolo da deusa à sua frente, apanhe o sino com a sua mão hábil. Toque-o 15 vezes. Recomendo olhar fixo para o símbolo enquanto toca o sino.
Invocação propriamente
Recitar: “Paz a ti, Ó poderosa deusa, Inana dos sumérios, Ishtar dos babilônios, mas sempre e em toda parte a eterna Rainha dos Céus. Senhora de todos os dons, a herdeira de Anu, que deténs os destinos de tudo em tuas mãos, que és homem e mulher, sexo e guerra, morte e geração, nós humildemente agora nos refugiamos em ti e, trazendo estas oferendas como demonstração de nossa boa vontade, invocamos o teu grande nome.
“Tu és a senhora de todo desejo, cujos lábios vertem mel, em cuja boca habita a força vital. Tu, que domas os leões, ao mesmo tempo amável e terrível em tua fúria. Tu, que visitaste o mundo dos mortos, domínio de tua irmã, e retornaste ao mundo dos vivos. Tua vitalidade, nem mesmo a morte é capaz de eclipsar. Peço que nos abençoes agora, Ó grande deusa, com tua presença, e escutes a nossa voz”.
Não é preciso seguir essa prece à risca. Caso ache que o texto é muito brega (e, bem, você está no seu direito), você pode compor a sua própria prece de invocação, ou então improvisar ou ir no feeling. Mas para os iniciantes eu acho importante oferecer tudo bem mastigadinho. Por fim, recomendo ajoelhar-se para então cantar o hino à deusa, que eu disponibilizei anteriormente, e concluir com uma prostração durante alguns segundos.
A partir daqui, você pode fazer como quiser. Provavelmente já vai sentir a presença da deusa desde antes, aí pode cantar e dançar, ou sentar para meditar nessa energia, fazer preces pessoais, scrying, pathworking e o que mais for. Eu gosto de trabalhar com trechos de hinos e nomes divinos repetidos como mantras, mas esse é um trabalho um pouco mais avançado.
Se você sentir o seu chakra da coroa abrir e pulsar, um formigamento nas mãos ou no corpo, um arrepio na base da espinha, a cabeça ficar pesada ou meio tonta, sentir uma pressão que vem de cima, ou outras coisas do tipo, é um bom sinal. Se não souber o que fazer, eu recomendo sentar e meditar durante alguns minutos, visualizando o símbolo da deusa em sua testa e intencionando que você deseja comungar com ela. O que eu não recomendo logo de cara, como dito, é usar esse momento para pedir coisas materiais. Aqui estamos lidando com um ritual de contato para estabelecer essa conexão inicial a fim de se desenvolver um trabalho de devoção. Depois que esse contato estiver bem fixado, você pode aproveitar a relação construída para algo nesse sentido.
Caso não sinta absolutamente nada, você pode tentar cantar o hino mais uma vez ou entoar o nome da deusa um número de vezes (15 vezes, por exemplo, pois este é o número de Ishtar). Se ainda assim não acontecer nada, pode prosseguir para o encerramento e depois conferir num oráculo o que foi que aconteceu. Mas, a não ser que haja algum bloqueio (afinal, não é com todo panteão que a gente tem afinidade), essas etapas devem bastar para estabelecer uma conexão.
Prece de conclusão: Ao término do ritual, você vai agradecer e encerrar com mais uma prostração e a seguinte prece: “Obrigado, minha deusa Ishtar. Que Ilu e todos os deuses te abençoem e alegrem teu coração. Que tu sejas louvada e teu nome conhecido por toda terra. He-am. Doce é louvar-te”. Então, fique em pé, toque o sino mais 15 vezes e realize um aterramento. Deixe as velas e incenso queimarem até o fim e então guarde o símbolo dela numa pasta, caixa ou outro lugar seguro. As oferendas de alimento podem ser consumidas, mas a cerveja eu prefiro despejar no chão.
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E é isso. Em termos de timing, essa invocação pode ser feita em qualquer dia, mas eu prefiro deixar esse tipo de prática para perto da Lua cheia. Ishtar também tem um mês dedicado a ela, chamado de Ululu em babilônico, equivalente a Elul no calendário judaico, que corresponde mais ou menos ao período durante o qual o Sol passa pelo signo de Virgem, o que faz com que a Lua cheia desse período, no signo de Peixes, seja o momento ideal do ano para isso (neste ano de 2024, a Lua cheia em Peixes vai acontecer em 17/9). Também é possível trabalhar com Ishtar como a deusa do planeta Vênus (que se diz dilbat em babilônico) e aí invocá-la como parte de um ritual venusiano, no qual podem ser usadas as correspondências herméticas do planeta, incluindo seus sigilos, o timing astrológico, etc. Mas isso é um pouco mais avançado e eu recomendo não confundir as coisas. No mais, se você fez o ritual e rolou essa conexão, você pode considerar a ideia de conduzir uma prática devocional com a deusa, no estilo bhakti yoga, incluindo uma devoçãozinha diária e a construção do símbolo dela em um material mais permanente.
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