Então você quer invocar deuses antigos?
O neopaganismo é uma vertente muito popular entre as formas mais lado B de religião e espiritualidade, o que pode ser compreendido pelo fato simples de que existe um apelo forte em ter uma variedade de deuses para se venerar. Lon Milo Duquette, por exemplo, nos capítulo “…And that’s what invocation is all about” e “Pop goes Ganesha” do seu Low Magick, comenta que os deuses oferecem um rosto, uma interface de ressonância emocional, para poderes cósmicos divinos que, de outro modo, podem ser abstratos demais para se trabalhar de maneira eficaz. Os seres humanos, afinal, são criaturas emotivas. Até mesmo a Cabala, que deriva de uma tradição estritamente monoteísta, como comenta Scholem, representa uma irrupção do mítico nessa tradição e caminha numa linha tênue nesse sentido1.
Por motivos históricos, a cultura ocidental deu uma guinada para o monoteísmo. Nós sabemos como ele emerge no antigo Israel, que é onde o monoteísmo religioso realmente vinga2 e, sendo o cristianismo a princípio um secto judaico, ele herda essa teologia. O islã, igualmente, se insere nessa tradição, enxergando Abraão, Moisés e Jesus como precursores de Maomé e combatendo as antigas religiões politeístas do Oriente próximo. Por via da colonização, como consequência, esse tende a ser o nosso pano de fundo religioso padrão, mas existem muitas tradições vivas que trabalham com uma grande variedade de entidades divinas ou semidivinas, como as religiões de matriz africana na própria África e nos terreiros das Américas, os cultos sobreviventes ameríndios, as religiões do Oriente, com os deuses hindus e tibetanos. Cada tradição vai ter uma definição, inclusive, do que é a divindade e, apesar de algumas ideias serem recorrentes3, é importante que essas definições autóctones sejam respeitadas. Nesses casos, como eu sempre digo, quem vai poder te ensinar a melhor forma de procurar essas divindades são suas autoridades, o babalorixá, o houngan, o xamã, o pujari e o rinpoche. É com eles e nesses termos que as divindades estabeleceram sua aliança, e tentar contornar isso é não apenas um ato de desrespeito como também potencialmente perigoso.
Porém, na maioria das vezes essa aliança entre deuses e humanos que constitui o sacerdócio acabou sendo destruída, interrompendo as linhagens de iniciações espirituais e atirando os templos ao pó da história… assim aconteceu com as tradições grega e romana, egípcia, celta, nórdica, mesopotâmica. Mas, como os neopagãos descobriram, existe aí uma fonte de poder. As alianças foram rompidas, mas os deuses ainda estão dispostos a restaurá-las se houver boa fé da nossa parte. Longe de ser apenas um delírio ou excentricidade, esse tipo de prática mágico-religiosa dá resultado e muitos são os grupos dedicados a reconstruir essas religiões antigas.
Só que também não é oba-oba. Se for se orientar pelo jovem místico, você pode acabar tendo uma ideia, muito equivocada, de que a coisa é simples, de que há um cardápio de deuses e que aí é só escolher um ou meia dúzia deles, de qualquer cultura, acender uma velinha e é isto. Se você quiser estabelecer contato com essas forças que se convencionou chamar de deuses, especialmente de culturas antigas cujo sacerdócio não existe mais, sem acabar adorando, em vez disso, um obsessor que vai ficar muito feliz com sua atenção e oferendas (e usá-las para ficar bem fortinho), tem alguns cuidados que é preciso tomar. O procedimento que eu pretendo ensinar aqui é bem básico, esquemático mesmo, e funciona para estabelecer esse primeiro contato. Por meio dele é possível começar uma boa relação que pode servir muito bem para seu desenvolvimento espiritual.
“Mas, Abstru, os antigos não precisavam de nada disso, precisavam?”
Bem, depende. O grau de exigência do ritual vai variar de cultura para cultura. Mas, em todo caso, para entender como a coisa funcionava com eles e a diferença para agora, vamos começar com um breve exercício mental. E aí vai ficar claro o porquê de uma etapa a mais ser necessária nesse processo, para nós.
Akephalos, O Deus Sem Cabeça, em arte de Jose Gabriel Alegría Sabogal
Imagine que você é um ateniense de 458 a.C.: a guerra contra os persas acabou há pouco, Péricles (o estadista, não o sambista) está no poder, a Oréstia de Ésquilo ganhou o primeiro lugar no festival a Dioniso e a Peste de Atenas ainda não se abateu sobre a cidade. Bons tempos (contanto que você seja um cidadão e não escravo ou mulher, isto é). Você certamente não precisaria estudar os deuses lendo uma enciclopédia ou dicionário de mitos. Pelo contrário, você já ouviu tanto essas histórias que você sabe tudo de cor: não existia o conceito de spoiler e, ao assistir à Oréstia, você sabe que Clitemnestra vai matar Agamêmnon na banheira, depois ser morta por Orestes, que, por sua vez, vai ser perseguido pelas Fúrias, e você sabe como a coisa vai terminar; o que te empolga é o trabalho dramático e poético dedicado. Ninguém precisou explicar para você quem são os deuses, quem é Apolo, Atenas e as Fúrias que aparecem na última peça da trilogia, As Eumênides. Você sabe que domínios eles regem, quais seus símbolos e mais ou menos como é o seu caráter segundo os mitos e poemas mais tradicionais — tudo isso lhe é tão familiar quanto o pagode dos anos 1990 para nós. Você participa dos festivais (o que inclui as tragédias) e dos rituais públicos e privados, os sacrifícios e libações. A paisagem da cidade é salpicada de templos antigos e novos sendo construídos (nesta data escolhida, o templo a Zeus Olímpico começou a ser feito, mas só será concluído daqui a 600 anos, pior que obra de metrô no Rio de Janeiro). Quaisquer que sejam os deuses aos quais você deseja dedicar sua devoção, talvez inclusive fazendo promessas, no melhor estilo santo católico, há uma tradição na qual você está inserido por default. A coisa é tão arraigada que, se você viajar para a Síria e tiver contato com os deuses deles, você provavelmente vai entendê-los como variações dos seus deuses, como o deus da tempestade Ba‘al Hadad era chamado em grego de Zeus Adados.
Voltemos agora ao século XXI. Em algum grau, algo da tradição grega permaneceu: mesmo depois do fim dos cultos, a mitologia foi preservada, porém não mais como uma via legítima de acesso ao sagrado e sim como mera afetação literária. Para um poeta dos séculos XV ao XVIII, demonstrar essa familiaridade com a tradição era sinal de erudição, mostrava que você manjava das coisas e podia fazer parte do clubinho dos poetas fodões. É só por isso que esse material foi preservado, mas é claro que, ao ouvirmos essas histórias na escola, tudo é diferente. Os templos estão em ruínas, não há sacerdotes mais como os do passado, nossos festivais religiosos são outros. Você muito provavelmente cresceu numa família católica, espírita ou protestante (se tiver sorte, umbandista). O neopagão precisa fazer um esforço para ir contra a corrente dominante, cristã no Ocidente, para retomar o contato com essas divindades. É um contexto totalmente distinto.
Em termos energéticos, por assim dizer, é como se, na Antiguidade, tivéssemos toda uma infraestrutura espiritual e psíquica representada pela tradição, pelos sacerdócios e pelos templos onde eram feitas as devoções, rituais e sacrifícios— mais ou menos como temos uma infraestrutura física que permite hoje o acesso à energia elétrica em nossas casas, ligadas a uma rede de força. Quem não tem esse acesso, porém, pode até que se virar bem se recorrer a outros métodos, como placas solares, que é o que, por enquanto, é o neopaganismo nessa minha analogia. Esse é um dos sentidos (o que eu prefiro)4 para o termo egrégora: toda essa infraestrutura que facilita o contato com os aspectos do divino codificados sob as máscaras dos deuses. A grande estrutura religiosa que temos hoje é voltada a outro culto — ao deus abraâmico, a Cristo e aos santos —, cuja força é a mais facilmente acessível a qualquer um que more por aqui. Por isso magia popular baseada em promessas e rezas bem conhecidas é tão eficaz, por sinal, mesmo que você não seja lá grande devoto e nem tenha toda uma parafernália.
De resto, a única possibilidade para nós é a nossa plaquinha solar mesmo. Mas dá para fazer muita coisa com isso.
Pontos bônus se você imaginou a Grécia antiga como se entende hoje que ela era: colorida
O que fazer antes do ritual
Certo, então, agora está bem estabelecida a diferença entre um pagão antigo e um neopagão. Ensina logo o ritual, Abstru.
Calma.
Antes de mais nada — e essa não é nem a primeira etapa, é a etapa zero, eu diria — é preciso pesquisar. Se você quer trabalhar com um deus (ou, melhor dizendo, para um deus), você precisa saber tudo que é possível saber sobre ele. “Ah, porque a minha intuição disse que…”. Não. Parou. Se a sua intuição é boa (e talvez realmente seja), as suas impressões serão confirmadas pela pesquisa. Se você tem planos de trabalhar com Inana/Ishtar, por exemplo, e um de seus símbolos, como o leão, repetidamente aparece em sonhos, visões ou no dia a dia sem que você saiba que esse é um de seus animais (bem, você sabe agora) e depois você descobre isso, então ótimo, você está no caminho. Mas vale lembrar que o leão também é um símbolo comum que se aplica para um milhão de outras coisas. Tenha bom senso e não pense que qualquer coisa é um sinal de que você é O Escolhido, o Neo, o Harry Potter. É melhor que sinais sejam repetidos e/ou improváveis para serem levados a sério. Senão, esse é o caminho para o delírio e não no bom sentido.
É importante escolher boas fontes para a sua pesquisa, se possível autores ligados a instituições acadêmicas bem renomadas. E prefira fontes recentes. No caso babilônico, por exemplo, um volume como Babylonian Magic and Sorcery, de Leonard W. King, que saiu em 1896, é melhor do que o misto de fato e ficção que Heródoto escreveu no século V a. C. sobre os mesopotâmicos, que a gente ainda está tentando separar (a questão da prostituição sagrada, por exemplo, até hoje não está bem resolvida). A obra de Samuel Noah Kramer da década de 1940 é melhor que a de King, pois Kramer teve acesso a novas descobertas arqueológicas e a mais informações derivadas delas do que King, mas Jean Bottéro, em 1990, é melhor ainda. Leia tudo que você puder que for confiável sobre a cultura que originalmente venerou aquele deus, sua sociedade, sua literatura, sua visão de mundo. Havia templos? Como eram? Como era o sacerdócio? A partir daí, inclusive, você já pode comprovar se você realmente está a fim disso. A deusa frígia Cibele, por exemplo, pode parecer o tipo de deusa mãe poderosa que seria interessante cultuar… até você descobrir, nas fontes antigas, que seus rituais envolviam autocastração.
Depois siga para os mitos — apesar de se basearem em certas estruturas que são mais ou menos universais, os mitos estão inseridos num enredo cultural a partir do qual derivam significado. É ingênuo tentar interpretá-los “no vácuo”. E lembre que os mitos circulavam oralmente, mas essa tradição oral, pelo menos no tocante às culturas antigas, não sobreviveu. O que sobreviveu foram relatos e versões literárias registradas principalmente em poemas e textos de histografia. Ao ter contato com um mito, pergunte-se: de onde ele vem? Quem transcreveu? Quando? Não acredite em qualquer um. Para a mitologia suméria, nós temos os textos direto das tabuletas, transcritos e traduzidos para o inglês, em sites como o Electronic Text Corpus of Sumerian Literature, ETCSL. Para a mitologia grega, o site Theoi faz um trabalho incrível de reunir todo o material original disponível sobre os deuses, ainda que em tradução apenas, mas com frequência os originais não são difíceis de achar.
Isso das fontes é crucial, porque há autores que não são lá de grande confiança, não apenas hoje, mas na Antiguidade também. Clemente de Alexandria, por exemplo, do século II, conta uma história segundo a qual Dioniso, o famoso deus do vinho, teria feito a promessa de satisfazer os desejos sexuais de um tal Prosimno, em troca por ele ter lhe mostrado o caminho ao Hades. Porém, ao retornar de lá, o coitado havia morrido, e Dioniso, para não quebrar a promessa, toma um galho de uma figueira que cresceu ali perto, faz um falo com ele e faz bom uso do instrumento sobre a tumba de Prosimno. É uma história bem divertida, o primeiro dildo, que legal, mas vale lembrar que o texto de Clemente é tardio e integra uma polêmica contra a religião pagã: Clemente era um presbítero cristão disposto a demonstrar o ridículo e a tosquice do paganismo, promovendo a conversão ao cristianismo. Assim, apesar de ser uma fonte interessante e render uma história divertida, é preciso lê-lo com um grão de sal. Esse problema também atormenta a mitologia nórdica, que sobrevive em sua maioria em textos de autores já cristianizados. Lembre também que mito não é teologia. Reflita sobre eles, mas não espere que o seu contato com os deuses será como se observa nos mitos — graças a Deus, inclusive… senão o trabalho com Zeus, um notório tarado mitológico, seria inviável. Ia ser invocá-lo e engravidar na hora. O mito, como eu o entendo, é um entendimento do divino filtrado pelo viés intelectual e emocional humano. Ele é um mapa para o acesso a essas forças, mas não é uma representação fiel de como as coisas são de fato.
Por fim, tendo lido o que dá para ler sobre a cultura em que o culto a um deus emerge, seus mitos, seus símbolos, suas formas de adoração, é importantíssimo tentar encontrar os textos mágicos ou litúrgicos originais. Há muito poder no ato de recitar ou cantar esses textos de centenas ou milhares de anos atrás: a tradição pode ter sido interrompida, mas demonstra que você está disposto a restaurá-la. No caso do panteão grego, é possível encontrar dezenas de hinos órficos online, em tradução para o português e no original — e não é necessário, mas aprender pelo menos um pouco da língua ajuda também e demonstra a sua seriedade e devoção. No caso de não haver textos litúrgicos, obras literárias também servem. Você também pode compor os seus próprios (o que é um outro ato possível de devoção), mas, para o primeiro contato, eu recomendo se ater ao que já existe de bem estabelecido.
Sim, é bastante coisa. Essa parte da pesquisa é trabalhosa, mas pense por esse lado: o que você quer com o deus? Se você quer apenas “usá-lo”, realmente é trabalho demais e talvez não valha a pena. Mas, se você quer desenvolver um trabalho devocional, de fato fazer com que aquelas forças divinas façam parte da sua vida, considere isso parte da devoção. Tem gente que sobe a escadaria da Igreja da Penha de joelho para pagar promessa, você fazer uma pesquisa não vai te matar. Pode soar meio severo falar isso, mas, se é para ter uma devoção preguiçosa, melhor ficar no catolicismo não praticante default mesmo. Eu não simpatizo nem um pouco com a abordagem mais leviana, de fast food, que muitos caoístas têm em relação ao trabalho com deuses.
Agora podemos começar a pensar no ritual.
Você deverá escolher uma data que seja relevante, segundo a sua pesquisa. Esse deus tem um dia, um mês, uma data específica dedicada a ele? Ele tem alguma conexão com o Sol, a Lua, algum planeta ou estrela? Via de regra, o melhor momento para o contato é quando a Lua está cheia, mas isso também pode variar. Tendo escolhido a data, vamos aos preparativos.
O trabalho com deuses costuma exigir algum grau de pureza ritual. O que isso quer dizer, em linhas gerais, é pelo menos uma limpeza física antes, mas, na letra miúda, é claro que os detalhes vão variar de cultura para cultura. Você não precisa exagerar, mas é bom reservar alguns dias anteriores ao ritual, de dois dias a uma semana, para tomar banhos de purificação, evitar contato sexual ou certos alimentos como carne, bebidas alcoólicas e tal, talvez até jejuar conforme a hora se aproxima. Dedique-se à meditação nesses dias e ao estudo das coisas ligadas ao deus. Evite se estressar, brigar, bater boca e se envolver muito profundamente com entretenimentos muito viciantes, como jogos — no geral, evite qualquer coisa que estrague a sensação de paz que dá depois de uma boa limpeza. Se você domina alguma técnica de cura energética, como Reiki ou Cura Prânica, ou se você conhece alguém que ofereça esse serviço (se você não conhece, então, recomendo que siga o Instagram ou o Twitter da Maíra), receber cura, passes, limpezas de chakras e outros benzimentos na véspera também é ideal. Tudo isso potencializa especialmente os efeitos benéficos do contato.
No mais, eu já dei dicas no meu texto sobre limpeza energética: fazer faxina, defumar, fazer rituais de limpeza e banimento. É, aprender o RmP é muito útil (apesar de não bastar sozinho!) e, não, não dá “choque de egrégora”. Você vai querer deixar a sua casa, especialmente o seu espaço ritual, o mais limpa possível: imagine que você está recebendo uma visita, e é costumeiro limpar a casa para receber visita, não? Além do mais, é bom garantir que, quando rolar a conexão, vai ser com a energia do deus mesmo e não com nenhum obsessor à espreita nos cantos.
Por fim, uma última dica é: se este for o primeiro ritual de contato com um deus que você estiver fazendo e você não tiver maiores experiências com magia ctônica/infernal/etc., tente mirar nos deuses mais “tranquilos”, por assim dizer. O jovem gosta de partir direto para deuses ligados a trevosidades5, mas as chances de dar problemas e você não segurar a barra nesses casos são reais. Cuidado. Se você sente muito forte esse contato e quer trabalhar, está tudo bem esperar um pouco mais para não chegar tão verde.
O ritual em si
No dia do ritual, prepare tudo de acordo com o que você pesquisou. Veja qual a melhor roupa para isso, suas cores e tudo o mais, quais os acessórios, qual a cor da vela e o incenso a serem acesos e quais as oferendas mais adequadas — aliás, é nessa parte que é importantíssimo fazer uma boa pesquisa. Qualquer praticante de tradições de matriz africana sabe o perigo de fazer a oferenda a uma entidade que seja algo que ela abomine, sua quizila.
Você vai precisar de, pelo menos, um símbolo do deus, que pode ser desenhado numa folha de papel mesmo, e algum material textual, na forma de um hino, se possível no original. Você também pode escolher uma palavra ligada ao deus, como o famoso “evoé” que era o grito de guerra do culto de Dioniso, ou uma frase do seu hino para usar como mantra (na falta, o próprio nome do deus serve). Prepare o altar, tome um banho e se vista. Para abrir o ritual, você pode começar com um banimento genérico como o Ritual menor do Pentagrama, o Rubi-Estrela, o Ritual Gnóstico do Pentagrama ou meu Ritual Hermético do Pentagrama ou outro ritual preliminar que seja adequado.
Na sequência, cante ou recite o hino ao deus e dirija-se a ele, em termos respeitosos, apresentando-se e apresentando as oferendas. Se quiser ou se as recomendações exigirem, entoe o hino mais de uma vez. E é então que vem a parte mais intensa do ritual: tendo o símbolo à sua frente, você vai se concentrar nele, deixando que ocupe toda a sua imaginação. Comece então a recitar a palavra ou verso escolhido como mantra. Inspire, entoe, deixe o pulmão esvaziar, então inspire de novo e repita. Você pode delimitar um número específico de repetições, de acordo com algum número relevante e contá-las utilizando um japamala ou outro instrumento, ou então simplesmente se deixar ir, até entrar em transe.
Preste atenção nos seus sentidos. Os deuses são forças divinas, óbvio, logo entrar em contato com eles é uma conexão com o divino, o que tende a abrir os chakras da testa e da coroa. É normal nessas horas ter uma sensação de coceira, pressão ou pulsação no centro da testa, nas têmporas e no topo da cabeça, ou até mesmo uma sensação como a de pele repuxando… só que não é pele. Outros sinais relevantes são arrepios na pele e na base da espinha (que, no entanto, são diferentes de arrepios de frio ou medo), formigamentos e sensações emocionais diversas, que vão da paz profunda ao êxtase, mas que podem variar de acordo com o deus específico e de pessoa para pessoa. Dependendo do deus também, você pode fazer esse trabalho de formas mais ativas, dançando e cantando, por exemplo, ou incluir práticas de visualização, imaginando, por exemplo, o deus na sua frente ou acima de você, emanando luz6.
Fique atento também para sinais negativos: sentir algo como um princípio de ataque de pânico, depressão, ansiedade, medo, pensamentos violentos, cansaço, sensações de frio intenso e súbito ou qualquer coisa do tipo. No caso de qualquer sensação dessas, encerre o ritual imediatamente e faça um banimento, pois é sinal de que deu ruim e é possível que seja alguma outra coisa que veio. Se você fez tudo direitinho, isso não deve acontecer, mas, se rolar, convém fazer todo o processo de troubleshooting para entender o que deu errado. É bom também tomar cuidado caso você comece a sentir um calor intenso, a ponto de ficar desconfortável. Diferente do frio, que é típico da chegada de um obsessor ou outro parasita, o calor intenso é mais benigno, pois é só o resultado de uma sobrecarga de energia — fazer meditação pranayama normal, mas com a língua no palato, por exemplo, é um ótimo jeito de começar a suar em bicas. Nesse caso, não precisa parar tudo e ir correr pegar a adaga para banir, mas é importante deixar o trabalho menos intenso.
Se tudo foi feito direitinho, você provavelmente estará sintonizado(a) na energia desse deus agora. A sensação costuma ser muito agradável e pode permanecer durante vários minutos depois do ritual. Se você sabe fazer respiração pelos poros (uma técnica ensinada por Bardon em Magia Prática, por Jason Miller em The Sorcerer’s Secrets e pelo Mestre Choa em A Ciência da Cura Prânica), tente aspirar essa energia e absorvê-la. Medite nela durante uns minutos, depois diga algumas palavras para firmar o seu compromisso de louvar a essa divindade, então cante o hino mais uma vez, em agradecimento, e feche o ritual. Deuses não são como espíritos chamados em rituais de evocação, por isso não precisa recitar uma fórmula como a licença para partir da Goetia7, mas é educado agradecer e se despedir. Importante frisar ainda que agora não é hora de pedir coisas materiais — bençãos genéricas, tudo bem, mas não dá para chegar e “ow, Odin, me faz ganhar na loteria aí, por favor”. Você não sai pedindo dinheiro para quem você acabou de conhecer.
É muito provável que você tenha algumas visões espontâneas enquanto medita e talvez sonhos interessantes na noite após o ritual. Imagens, ideias, palavras podem aparecer, o que é sempre muito divertido. Preste atenção em tudo, mas não se apegue a elas. O que você vai ver não significa que é literalmente uma mensagem do deus. Num trabalho de comunicação, quanto mais você se purificar e realizar seu trabalho espiritual, mais do deus estará lá e será possível receber mensagens legítimas, mas, nesse primeiro momento, especialmente se você está começando, é melhor tratar essas visões como apenas uma consequência do que acontece quando a sua consciência entra em contato com essa energia, como uma lâmpada sobre a qual foi colocado um abajur colorido. Se você tiver impressões de que o deus age de uma dada forma ou te diz certas coisas sobre você, é muito mais provável que isso reflita impressões profundamente internalizadas em você do que sejam mensagens diretas da própria divindade. O deus aparecer na sua frente dizendo que você é O Escolhido ou então ele agir como se fosse seu melhor amigo ou um companheiro animal de desenho da Disney com quem você vai ter altas aventuras diz muito sobre o que você pensa de você mesmo e de suas necessidades emocionais. Manter esse grau saudável de ceticismo é o que separa o ocultista são do fanático que vê Jesus na goiabeira e acha que Deus mandou odiar minorias.
E está feito. Você estabeleceu sua conexão inicial, parabéns!
Anote as suas impressões no diário mágico e agora comece a pensar na forma de estreitar essa relação. Pense numa rotina de oferendas e adorações, se não diárias, pelo menos regulares e, se possível, talvez em montar um altar fixo específico para essa divindade com coisas relacionadas a ela, uma estátua, etc. Com o tempo, você pode começar a fazer preces de petição e intercessão, se for o caso, e utilizar o seu contato com esse deus para se aproximar de outros deuses de energias afins do mesmo panteão8. Por fim, eu só deixaria uma última dica: tente limitar os deuses com os quais você trabalha e dedica suas devoções. É geralmente tranquilo lidar com um panteão só, com um ou dois principais deuses como foco da sua devoção e os outros sendo consultados esporadicamente, mas evite a salada mística de, por exemplo, cultuar Loki, Thoth, Kali e Kanaloa, divindades não apenas de panteões diferentes, mas de culturas bem distantes, sem nem um fio condutor em comum9. E desconfie também de quem alega ter uma prática nessas linhas, especialmente se a pessoa for jovem — o que não é nem uma crítica ao jovem pela juventude em si, mas acontece que pessoas que trabalham com muitas coisas costumam ter bastante tempo de experiência para acumular toda uma “corte espiritual”, como diz o Jason Miller, e se desenvolverem em mais de um sistema, e o jovem de 20 anos não vai ter tido nem tempo de vida para isso.
O trabalho com deuses é um compromisso e não deve ser encarado com leviandade… mas também é maravilhoso e pode fazer toda a diferença na sua vida.
* * *
[1] Scholem explica essa questão do mito no misticismo judaico em A Cabala e seu Simbolismo. As sefiroth não são deuses, mas essa associação se insinua com naturalidade, como muitos cabalistas herméticos apontam (como a Nema em Maat Magick), e é tão forte que havia um receio entre os cabalistas judaicos de que a Árvore da Vida desse margem para esse tipo de coisa (tanto que Abulafia, por exemplo, preferia não trabalhar com as sefiroth).
[2] Como dito já antes, temos alguns precedentes no henoteísmo mesopotâmico centrado em Ashur ou Marduk, elevado ao nível de Deus supremo, no experimento de Akhenathon no Egito e no dualismo entre Ahura Mazda e Angra Manyu, no zoroastrismo. Mas o monoteísmo estrito só vai passar a existir em Israel com o retorno do Exílio.
[3] Por exemplo, é uma noção comum entre religiões a ideia de uma divindade suprema e inapreensível que tem emanações ou hipóstases, manifestadas em divindades menores. Tal noção é encontrada em algumas doutrinas do hinduísmo e do culto aos Orixás, apesar de não ser necessariamente um consenso.
[4] Uma outra noção, talvez mais popular, de egrégora entende o conceito como qualquer construto mental divulgado, criado e alimentado pela atenção de diversas pessoas, de modo que se fala em egrégoras de personagens de ficção, datas comemorativas, etc. Da forma como eu entendo como funcionam formas-pensamento, no entanto, essa concepção me parece um pouco equivocada.
[5] É claro que há exceções e eu mesmo tenho uma boa amiga que naturalmente tem jeito para lidar com trevosismos sem problemas. Isso pode ser coisa de vidas passadas ou algo do tipo.
[6] Vide este texto sobre a prática de purificação com a divindade budista Vajrasattva para exemplificar.
[7] Nos PGM, a invocação dos deuses exige que ele receba uma licença para partir depois, mas, como alguns autores apontam (se não me engano, Jake Stratton-Kent é um deles), os Papiros lidam com o lado mais ctônico, demoníaco, dos deuses.
[8] Apesar de, em alguns casos, não ser viável trabalhar com divindades com disposições opostas, por mais que pertençam a um mesmo panteão (para isso, preste atenção nos mitos), com muita frequência há uma afinidade entre esses deuses. De novo, eu falo do caso babilônico, onde observamos um hino a um dado deus mencionar outros deuses afins e várias invocações que recorrem aos deuses em grupos (há inclusive um proto-RmP na invocação de Shamash, Sîn, Ninurta e Nergal num antigo ritual de exorcismo). Da forma como eu entendo a questão, é perfeitamente possível e viável estabelecer uma relação profunda com um dado deus e então aproveitar essa conexão para ampliar o contato com outras divindades do mesmo panteão.
[9] Existe também a possibilidade, um pouco mais delicada, de se trabalhar com divindades de panteões distintos, mas ligadas a energias afins, como deuses bélicos, deusas mães, tricksters, etc (aquilo que se convencionou chamar de “arquétipos”). Isso é certamente melhor e mais consistente do que a salada mística de que eu falei neste parágrafo, mas recomendo cautela para não tratar esses deuses com leviandade, nem acabar sendo, digamos, engolido pelo arquétipo — afinal, imagine que vida caótica deve ter alguém que só trabalhe com tricksters!