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Nove fórmulas para magia babilônica

Nove fórmulas para magia babilônica

Leitura em 16 min
Fonte: O Zigurate

Qualquer livro sobre magia cerimonial vai incluir uma série de fórmulas em grego, latim e hebraico. Hekas hekas bebeloi, procul este profani, amen. Essas fórmulas dão um colorido a mais ao ritual, mas mais do que isso apontam para as fontes das quais essas tradições bebem (embora com frequência o domínio de ocultistas de línguas antigas seja meio… duvidoso). Do mesmo modo, quem pratica yoga está acostumado a saudar as outras pessoas com um “namastê”, uma saudação do sânscrito, e quem adere a religiões de matriz africana usa a saudação “saravá”, um termo de origem bantu. O uso dessas fórmulas é praticamente universal e representa um pequeno tributo, um reconhecimento, das culturas e línguas em que se originam as práticas. Essa continuidade no uso de fórmulas e preces numa mesma língua também confere um certo poder à prática, conforme elas são repetidas com o mesmo propósito ao longo dos séculos, como atesta qualquer cabalista.

Como vocês sabem, eu gosto muito de práticas espirituais associadas à antiga religião mesopotâmica e seu panteão (o nome do site é O Zigurate, afinal!), não por acaso, há alguns textos aqui no site dedicados a isso. Por esse motivo, no texto de hoje eu gostaria de oferecer algumas fórmulas que podem ser úteis para as duas ou três pessoas por aí que têm interesse por essas práticas também. Vale lembrar, no entanto, que a minha forma de lidar com esse tipo de magia não é reconstrucionista, visando a reproduzir tudo tal como era, e sim moderna, porém gosto de fazer uso de fórmulas genuínas.

Estátuas votivas sumérias do 3º milênio a.C. (mais sobre elas aqui)

Como se sabe, os mesopotâmicos usavam fórmulas em sumério e acadiano em seus rituais. O sumério é, até onde se sabe, uma língua isolada (há tentativas de associá-lo a outras línguas, mas é tudo muito experimental ainda), ao passo que o acadiano (a língua do dia a dia usada na Babilônia e na Assíria) é uma língua semítica, por isso partilha de alguns fonemas do hebraico, do qual é um tipo de primo. Para variar, muita das coisas aqui constam no livro do Alan Lenzi, Reading Akkadian Prayers and Hymns, mas há outras fontes também que vão ser citadas conforme forem aparecendo.

Lembrando que o texto em acadiano utiliza as seguintes marcações acadêmicas:

  • as vogais com macrons, ā, ē, ī, ū, indicam vogais longas;
  • o “s” com um diacrítico em cima, š, é um som chiado, como o shin hebraico, nosso “ch” ou o “s” de final de sílaba de carioca;
  • o “h” com um diacrítico embaixo, , é um som gutural, como o “ch” alemão em Bach, equivalente ao chet hebraico;
  • o “s” com um diacrítico embaixo, ṣ, é o “s” enfático, como o tsade hebraico, que costuma ser pronunciado como “ts” ou “tz” (tipo “putz”);
  • por fim, o “t” com um diacrítico embaixo, ṭ, é o “t” enfático também, como o tet hebraico, mas este é o tipo de som que apenas quem tem muita familiaridade (ou que de fato é nativo) com línguas semíticas consegue reconhecer e pronunciar direito.
  • e, ah, como se trata de uma língua morta, é difícil saber como seria a sua pronúncia exata, entende-se que a maioria das palavras em babilônico, assim como em português, são paroxítonas, i.e., a sílaba tônica é geralmente a penúltima.

1. “Que assim seja”

Vamos começar com esta fórmula que é a mais simples, com apenas duas sílabas: “Que assim seja” em sumério se diz: ḫe’am.

A palavra ḫe’am, em cuneiforme

Você pode utilizá-la como uma versão mesopotâmica de um “amém” ao final das preces e pedidos. Para deixar mais dramático, carregue na guturalidade do “ḫe”, dando aquela arranhada na garganta e prolongando nasal em “am”, tipo quando se cantam mantras com OM, ḫe-ammmmm. A fórmula pode ser acompanhada do gesto reverencial que se observa nas estátuas, unindo as mãos na altura do peito ou da barriga, com a direita em cima da esquerda.

2. Oferecendo incenso

No livro do Lenzi, encontramos pelo menos uma prece em que há uma oferenda de incenso. Trata-se de uma prece divinatória a Shamash e Adad, o deus do Sol e o deus das tempestades, dois deuses associados a oráculos. O trechinho completo é o seguinte:

Šamaš ašakkan ana pî qutrēnim
ša maḫrīka erēnam ellam, lišib qutrēnu
liqriam ilī rabûtim

Que é traduzido como: “Ó, Shamash, eu levo à boca do pote de incenso, / Que está à sua frente, pura resina de cedro. Que paire a fumaça (do incenso). / Que ela me convoque diante dos grandes deuses”. Para nós, a parte mais útil (como ninguém trabalha com resina de cedro) é o finalzinho, onde aparece e menção à fumaça: lišib qutrēnu / liqriam ilī rabûtim. Eu recomendo recitá-la enquanto estiver acendendo o incenso em dedicação a uma ou mais divindades.

3. Uma bênção oracular

E falando em preces divinatórias, este é um verso que aparece em algumas preces oraculares, incluindo a mesma do item anterior:

ina ikrib akarrabu
kittam šuknam

Uma forma de traduzi-la é como “que nesta prece que eu faço haja a verdade”, o que eu acho bastante positivo e é uma bela fórmula para complementar uma invocação antes de se tirar tarô, por exemplo (originalmente praticava-se haruspícios, que é o oráculo de observação de entranhas animais… convenhamos que o tarô é muito mais prático e faz menos sujeira).

Literalmente é um pouco mais complexo. A sequência de consoantes K-R-B traz consigo uma noção de algo sagrado, abençoado, daí ser a mesma origem da palavra cherub/cheruv em hebraico, que dá nos nossos querubins em português. Assim ikrib é “reza, prece, oração” mas também “bênção”, ao passo que akarrabu é a 1ª pessoa do verbo karābum, “rezar, orar”. Então a primeira metade do verso é “nesta reza que eu rezo”. Depois kittam é “verdade” no acusativo, ou seja o objeto do verbo, que é šuknam. Em acadiano, šakānum é o verbo “colocar, botar, inserir” e šuknam é esse verbo no imperativo plural. Literalmente, é “nesta reza que eu rezo, que vocês (os deuses) ponham a verdade”. Se você estiver trabalhando com um único deus, então é preciso usar a forma singular do verbo… e aí tem gênero. Se o deus for masculino, šukun. Se feminino, šukni.

De quebra, agora que você entende como funciona, dá para mexer na fórmula e substituir o objeto do verbo de acordo com o seu vocabulário e necessidade. “Que nesta bênção haja luz” seria ina ikrib akarrabu nuram šuknam. “Que nesta bênção haja vida”, ina ikrib akarrabu balaṭam šuknam. E assim por diante.

3. Louvores

Há várias proclamações de louvor aos deuses, tanto em sumério quanto em babilônico. Na “Exaltação de Inana”, o poema termina com “Inana seja louvada” ou, em sumério, Inana zami. Dizer o nome da divindade e zami, “louvor”, depois é uma das formas de se fazer isso. Uma outra forma, mais complexa, aparece no final da “Descida de Inana ao Mundo dos Mortos”, que louva Ereshkigal e diz, kug Ereshkigal, zami-zu dug-a-am, literalmente “divina Ereshkigal, doce é o teu louvor”.

Cuneiforme para “zami”, louvor… mas também o instrumento da lira

Em babilônico, há outros versos que se repetem em diversos hinos. O mais famoso é: ana dārâti dalīlīka ludlul. Significa “que eu proclame para sempre teu louvor”.

De novo, porém, há uma pequena complicação gramatical aqui (que não acontece no sumério). Foca ali no dalīlīka. Dalīlum é “louvor, homenagem”, e o -ka ao final é um pronome possessivo, por isso “teu louvor”. No entanto –ka se refere a um deus masculino. Para uma deusa, como aparece no hino a Gula, usa-se ki, dalīlīki. Para deuses, no plural, dalīlīkunu.

4. Uma fórmula penitencial

Muita gente associa a ideia de cumprir penitência a uma “culpa cristã”. Pois é, culpa é um elemento importante da cultura cristã, sem dúvida, mas o conceito não é de todo estranho no mundo antigo.

Os babilônicos entendiam que o tempo todo nós corremos o risco de ofender a deuses e entidades que a gente nem sabia que estava ofendendo (além daquelas que a gente ofende ao fazer coisas que a gente sabia que não era para fazer… o ser humano é assim mesmo). No entanto, não se trata de uma questão puramente moral: sim, no discurso clássico, os deuses “se irritam” com quem comete crimes como violentar um convidado na sua casa (a clássica violação das leis de hospitalidade), mas cuspir no chão sem cobrir de terra depois também é um tabu, um tipo de violação de leis naturais que não necessariamente tem a ver com moral, mas que vai se acumulando e gerando um tipo de sujeira que nos deixa impuros para as práticas espirituais. Os termos para esse tipo de violação são gilātum ou ḫiṭṭum, que às vezes são traduzidos por “pecado”, mas aí gera o incômodo da contaminação do sentido cristão, por isso costuma ser melhor usar “erro” mesmo.

Os seguintes versos aparecem num longo hino chamado ershahunga, um tipo de prece penitencial direcionada a qualquer deus que possa ter se ofendido com o praticante. Eu não vou passar a prece inteira, que é longa, repetitiva e tem mais de 60 versos. Desses, há 3 que se destacam, no final da prece, e que eu pessoalmente acho útil usar como um tipo de mantra:

ḫiṭṭi aḫṭû ana damiqti tēr
anna ēpuš šāru litbal
gillātūya maʾdāti kīma ṣubāti šuḫuṭ

Que é possível traduzir como: “Que os meus erros sejam convertidos em coisas boas / Que o vento os leve embore / Dispo-me dos meus muitos sacrilégios como uma roupa”. Você pode pensar nessas fórmulas como um tipo de prece de desapego em relação aos seus erros e males cometidos, ao que se soma essa força de transmutação. Como prática de rotina, eu recomendo repetir 12 vezes esses 3 versos, o que soma um total de 36 recitações. Se tiver tempo, 120 é um bom número também, o que dá 360, um tipo de número perfeito aos olhos dos mesopotâmicos.

Sobre os benefícios de práticas penitenciais, tem um episódio do podcast Glitch Bottle, que eu recomendo muito, intitulado Confession in the Grimoires, Redemption and Self-Forgiveness. Nesse episódio solo, Alexander Eth comenta a importância dessas práticas para um magista a partir de várias perspectivas, o que eu acho que ajuda muito a tirar esse ranço que fica para quem teve criação católica.

Relevo representando um espírito alado com um balde de água e uma pinha para aspergi-la, num gesto de purificação.

5. O RmP babilônico

Essa aqui foi um choque quando eu descobri. Como vocês sabem, a invocação dos arcanjos no Ritual do Pentagrama deriva de uma antiga prece judaica de antes de dormir, que dispõe os quatro principais arcanjos nas direções cardeais (com alguma alteração do posicionamento de alguns deles para encaixarem melhor no arranjo elemental da Golden Dawn). Qual não foi minha surpresa, então, ao descobrir, num texto sobre o deus Nergal, que uma versão desse arranjo já existia nos exorcismos babilônicos!

Minha fonte para o texto no original é o livro Cuneiform Texts in the Metropolitan Museum of Art, Volume 2, seção Documents of the Incantation Priest, Diviner, Physician, and Magician, p. 137. O livro oferece o texto nas duas principais línguas antigas.

Em sumério:

Utu igi mu-še
Nanna a-ga-mu-še
Nergal a-zi-da-mu-še
Ninurta a-gu-bu-mu-še

Em acadiano:

Šamaš ina paniya
Sîn ina arkiya
Nergal ina imniya
Ninurta ina šumeliya

Literalmente “Shamash (Utu) à minha frente, Sîn (Nana) às minhas costas, Nergal à minha direita, Ninurta à minha esquerda”. Seu contexto é como preparação antes de o exorcista se aproximar do paciente, contando com a presença e proteção dos quatro deuses.

Vale lembrar que, pensando nos corpos celestes, Shamash é o deus do Sol, Sîn da Lua, Nergal de Marte e Ninurta de Saturno. E isso nos leva a algumas curiosidades muito interessantes aqui: como se presume que a pessoa estaria voltada ao leste, que é onde o sol nasce, esse arranjo do Sol no leste, Lua no oeste, Marte ao sul e Saturno ao norte é idêntico ao que se encontra no famoso Livro Jurado de Honório, um grimório bem posterior, datado do medievo (onde constam também as direções de Júpiter, no sudeste, Vênus no sudoeste e Mercúrio no noroeste). Além do mais, na magia da Golden Dawn, Rafael, o arcanjo conjurado no leste, é o arcanjo do Sol, e Gabriel, no oeste, da Lua (porém, as equivalências param por aqui). Essa prece pode ser utilizada por si própria ou como parte de um ritual mais complexo de banimento, usando nomes divinos, como os de Marduk, que é o que eu faço. Talvez num momento futuro eu possa ensinar essas técnicas também.

7. A bênção do sal

Tinha alguém um tempo atrás compartilhando a desinformação alucinada de que foi a Igreja Católica que inventou o uso do sal em rituais de limpeza e proteção… bem, acredito que esta formulazinha aqui, parte do famoso ritual Maqlû (“queima”), do I milênio a.C., usado para exorcismo e contramágica, sirva para provar a insensatez dessa afirmação. Mais uma vez estou citando o livro organizado por Lenzi, no capítulo “An Incantation-Prayer to the Cultic Agent Salt”, redigido pelo pesquisador bíblico Jeffrey Stackert. Diz o autor:

O sal era empregado amplamente no antigo Oriente Próximo para diversos propósitos utilitários (e.g., para curar peles, preservação, sabor, tempero e medicina). Também era um ingrediente regular em práticas mágicas e rituais. Por exemplo, por analogia de seu uso na mesa humana, textos mesopotâmicos descrevem a aplicação do sal em oferendas animais e vegetais. Também é usado em oferendas de incenso, vários rituais mágicos e maldições mágicas. (…) As aplicações ritualísticas do sal no antigo Oriente Próximo indicam que ele traz consigo significados tanto positivos quanto negativos. Ele pode simbolizar saúde, purificação e bem estar, mas também ser associado a infertilidade, dissolução e destruição.

A prece em questão é mais longa do que as outras que vimos até agora, mas ainda assim relativamente curta. Aqui no caso, os poderes do sal invocados dizem respeito à sua faceta mais positiva, na quebra de feitiços e limpeza energética. Lê-se:

attī ṭābtu ša ina ašri elli ibbanû
ana mākālê ilī rabûti išīmki Ellil
ina balīki ul iššakkan naptan ina E-kur
ina balīki ilu šarru kabtu u rubû ul iṣṣinū qutrinnu
(anāku annanna mār annanna ša kišpī ṣubbutūʾinni
upšāšê leʾbūʾinni)
puṭrī kišpīya ṭābtu pušširī ruḫêya
upšāšê muḫrīnnī-ma kīma ili bānīya
lultammarki

Tradução:

Tu és o sal, criado em um lugar puro
Para o alimento dos grandes deuses, Enlil te indicou.
Sem ti, não há o banquete real no templo de Ekur.
Sem ti, nem deus, nem rei, nem nobre sente o cheiro do incenso.
(Quanto a mim, ____ filho de ____, tomado por feitiços,
Afligido por intrigas mágicas)
Ó sal, liberta-me deste encantamento! Quebra meu feitiço!
Leva de mim toda intriga mágica, e assim como eu continuarei a louvar o deus que me criou
Também continuarei a louvar-te!

Quanto aos seus usos, eu indico recitá-la para abençoar o seu sal antes de usá-lo, por exemplo, num banho, para preparar água lustral (o equivalente pagão de água benta) ou até mesmo para encher uma vasilha com água e sal a fim de limpar cristais ou usar como receptáculo para energia suja (como se faz na Cura Prânica). Para esse uso mais genérico, não é necessário usar o verso em que você se apresenta (“quanto a mim, ____ filho de ____”), por isso eu deixei essa parte entre parênteses.

E, sim, vale lembrar que a tradição de abençoar o sal continua depois entre os católicos, sendo parte do rito romano de exorcismo. Naturalmente essa prática se encontra nos grimórios igualmente, e eu entendo essa bênção do sal como um substituto adequado para isso num contexto mais pagão.

8. A limpeza

Eu tenho muito carinho por essa fórmula, porque foi a primeira fórmula em babilônico com a qual eu me deparei enquanto estava começando a explorar essas práticas e foi a primeira que eu incorporei nos meus rituais (foi também, aliás, a primeira vez que eu apliquei os conhecimentos de gramática do curso de babilônico num material real, fora da aula). Minha fonte agora é o Corpus of Mesopotamian Anti-witchcraft Rituals: Volume One, de Tzvi Abusch e Daniel Schwemer (link aqui). Quem participou da meditação de limpeza que eu ofereci uma vez no canal do Telegram e conduzi pelo Zoom já me ouviu recitando-a. Eu a acho especialmente sonora:

ašḫuṭ ašḫuṭ aštaḫaṭ aštaḫaṭ
imṭīya tāniḫīya u tādirātīya
u’a ayya mimma lemnu ša ina zumrīya šer’ānīya bašû
ina muḫḫīkunu ašḫuṭ
ašḫuṭ ša zumrīya ina muḫḫīkunu
ašḫuṭ ša šīrīya ina muḫḫīkunu
ašḫuṭ ša šer’ānīya ina muḫḫīkunu
ašḫuṭ ša mešrētīya ina muḫḫīkunu

Tradução:

Eu me livrei, eu me livrei, eu me livrei de vez, eu me livrei de vez
Da minha exaustão, meus suspiros e pesares, dores,
enfim, de todo mal que está em meu corpo e minhas veias
eu me livrei (e pus) sobre ti
Do que está em meu corpo eu me livrei e pus sobre vós
Do que está em minha carne eu me livrei e pus sobre vós
Do que está em minhas veias eu me livrei e pus sobre vós
Do que está em meus membros eu me livrei e pus sobre vós.

Uma breve explicação gramatical aqui, porque esta fórmula é bastante repetitiva e tem umas coisas que a gente não consegue transmitir em português pela mesma estrutura. O verbo usado é šaḫāṭum, que traz o sentido de retirar, despir, arrancar (ele também parece na prece penitencial que vimos acima, na forma šuḫuṭ). Assim sendo, ašḫuṭ é o modo mais simples de dizer “eu me despi”/”eu me livrei”, mas existe também a forma perfeita do verbo, que é aštaḫaṭ, indicando que a ação foi completada num ponto específico do passado. As duas formas do verbo aparecem aqui, por isso a tradução usa um “de vez” para o perfeito, enfatizando esse aspecto definitivo da ação de limpeza. Ele repete também a expressão ina muḫḫīkunu, “sobre vós”, porque esse ritual era realizado diante de estátuas representantes dos males que afligem a vítima, as quais depois eram queimadas.

Não é preciso, no entanto, recorrer a essa técnica literalmente como era realizada antigamente, e as estátuas podem ser substituídas por velas ou por uma visualização. Eu recomendo, como prática de rotina, utilizar a visualização em cima de uma vasilha com água e sal, imaginando essa figura sendo queimada e derretida sobre a água, enquanto se recita essa fórmula três vezes.

9. A bênção do óleo

Esta aparece pela famosamente em Babylonian oil magic in the Talmud and in the later Jewish literature, de Samuel Daiches, de 1913, mas temos depois uma versão corrigida. Como Daiches escreveu no começo do século, houve alguns avanços na área, por isso é preferível conferir o material acadêmico posterior. No caso, minha fonte é The Witchcraft Series Maqlu, de Tzvi Abusch (aqui). Nesse livro lê-se:

šamnu ellu šamnu ebbu šamnu namru
šamnu mullil zumri ša ilī
šamnu mupaššeh šerʾānīša amēlūti
šaman šipti ša Ea šaman šipti ša Asalluḫi
(uṭaḫḫidka šaman tapšuḫti
ša Ea iddinu ana pašḫāti
apšuška šaman balāṭi
addīka šipat Ea bēl Eridu Ninšikug
aṭrud asakku aḫḫā zu šuruppû ša zumrika
ušatbi qūlu kūru u nissatu ša pagrika
upaššeḫ šerʾānī minâtīka lā ṭābūti)
ina qibīt Ea šar apšî
ina tê ša Ea ina šipti ša Asalluḫi
ina riksī rabbāti ša Gula
ina qātī pašḫāti ša Nintinugga
u Ningirima bēlet šipti
ana annanna mār annanna idīšumma Ea šipat amāti ša balāṭi
sebet apkallū šūt Eridu lipaššiḫū zumuršu

Tradução:

Óleo puro, óleo claro, óleo radiante,
Óleo que purifica o corpo dos deuses
Óleo que apazigua os nervos da humanidade
Óleo do encantamento de Ea, Óleo do encantamento de Asalluhi
(Eu venho te cobrir com óleo apaziguador
Que Ea nos concedeu para apaziguar
Eu venho te ungir com o óleo da cura,
Lanço sobre ti o encantamento de Ea, senhor de Eridu, Ninshiku
Expulso Asag [um demônio], a icterícia, os calafrios do teu corpo
Removo mudez, torpor e o sofrimento do teu corpo,
Alivio os nervos doentes dos teus membros.)
Pelo comando de Ea, o rei do Absu
Pelo feitiço de Ea, pelo encantamento de Asalluhi
Pelas ataduras macias de Gula
Pelas mãos suaves de Nintinugga
E Ningirima, a senhora dos encantamentos,
Sobre _______, que Ea lance o encantamento da palavra de cura
Que os sete sábios de Eridu aliviem o seu corpo.

Mais uma vez se trata de uma fórmula que é parte do ritual maior de exorcismo Maqlû, aparecendo perto do fim da cerimônia. Tendo expulsado a influência maléfica do feitiço que aflige a vítima, destruído efígies que representam quem fez esse feitiço e purificado o paciente, o exorcista então aplica o óleo para protegê-lo e apaziguá-lo. Assim como com o sal, trata-se do que se chama no mundo acadêmico de Kultmittelbeschwörung, uma fórmula direcionada aos objetos usados em rituais para ampliar e trazer à tona suas qualidades (o que na magia se chama às vezes de consagração). De novo, é possível usar a fórmula de modo direcionado para proteção contra magia maléfica ou de forma mais genérica como consagração de óleos, deixando de lado os versos entre parênteses.

* * *

Ufa! Isso conclui esta nossa breve jornada pelas fórmulas da magia babilônica. Certamente há muito mais coisas úteis que podemos encontrar no material disponibilizado pelos acadêmicos da área, mas aqui já temos um repertório bastante robusto para se incorporar às suas práticas.

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