Narrativa, mito e arquétipo – parte III
Hoje concluiremos o texto que começamos, duas postagens atrás, sobre a questão dos arquétipos: na primeira parte, falamos do assunto em termos de teoria literária – pensando numa dicotomia entre personagens complexos e personagens típicos na ficção –, depois, na parte II, demos prosseguimento observando a emergência da mitologia comparada na Europa do final do século XIX e começo do século XX, para contextualizar a obra de Jung, que é quando a ideia dos arquétipos associados ao inconsciente coletivo é sistematizada.
Vale lembrar, no entanto, que este não é um site acadêmico e nem dedicado a psicanálise ou psicologia analítica, mas sim à magia e espiritualidade, e o nosso mote inicial aqui foi a prática que se popularizou nos últimos anos de “ativação de arquétipos”. No primeiro texto, pudemos entender como a ideia de deliberadamente tentar se alinhar a uma figura arquetípica a longo prazo não é exatamente adequada, pois somos seres complexos e o arquetípico oblitera essas complexidades. No segundo texto, fomos direto nas fontes primárias, onde descobrimos que, se Jung fala em ativação de arquétipos, é com terror e dá o exemplo da possessão coletiva da Alemanha da década de 1930. Isso já deveria servir para enterrarmos a ideia de vez, não? Mas será que, no meio dessa água turva de banho, não tem um bebê escondido que arriscamos jogar fora?
Bem, o primeiro passo para tentar encontrar algo de útil aqui, acredito, seria repensar a teoria. É possível praticar sem uma teoria mágica por trás, mas, pela minha experiência própria, isso leva a uma confusão dos infernos. Assim como nenhuma teoria física dá conta da realidade do mundo físico, nenhuma teoria mágica dá conta da realidade oculta em sua totalidade, mas ter um mapa, ainda que imperfeito, é melhor do que não ter mapa nenhum, contanto que ele seja coerente. E uma procura por “ativação de arquétipos” pelo Google nos leva a inúmeros sites esotéricos que, francamente, deixam muito evidente que essa parte da coerência mandou lembranças. Frases como “arquétipos são energias primordiais” aparecem lado a lado com alegações de que os símbolos afetam os nossos neurotransmissores e coisas assim. E eu não vou dizer que é absurda essa confusão entre misticismo e materialismo, porque o próprio material do Jung é um tanto ambíguo nesse sentido: para um materialista, ele é muitas vezes místico demais; para um místico, excessivamente materialista. Assim, uma ideia como a do inconsciente coletivo foi apropriada pelos indivíduos de pendor mais darwinista como uma função do cérebro humano, decorrente da evolução, enquanto um ocultista o associaria aos planos sutis mapeados pela teosofia – considerando que arquétipos são altamente abstratos e a fonte das abstrações é o plano mental, me pareceria coerente presumir que é lá que eles surgem. Há quem fale também dos registros akáshicos.

Arquétipos são conteúdos do inconsciente coletivo – esta parte está clara, Jung diz isso com todas as letras. Porém, pelo que eu entendi, quando temos contato com esse conteúdo e o trazemos para a realidade consciente, ele já é modificado pela consciência. Se eu tenho contato com uma dessas forças, um centro de energia psíquica, e o batizo de “O Guerreiro”, esse guerreiro já não é mais o arquétipo inconsciente em si, porque eu lhe dei um nome, e um nome em português, um idioma inserido no espaço e no tempo, com uma dada cultura, história, etc. Embora já não seja o conteúdo puro do inconsciente, essa abstração é o mais próximo do arquetípico que podemos chegar. Vamos trabalhar com esse exemplo, então.
Quais são as características de um guerreiro? A julgar pelo meu repertório cultural, eu diria que o guerreiro é uma figura de coragem e disciplina, capaz de submeter o corpo e a mente a situações extremas a fim de se obter a fortitude necessária para triunfar em combate, alguém que supera desafios e uma figura de abnegação, que não tem medo de morrer. Um soldado real de carne e osso não é o guerreiro arquetípico. Um soldado real, um cabo Silva da vida, sendo uma pessoa dotada de grande complexidade emocional como todas as outras, não vai ser uma incorporação dessas características. Ele pode ser um covarde, um bandido golpista, um burocrata, alguém que nunca esteve em combate. Na verdade, é muito provável que o combate real o faça voltar para casa com um transtorno de estresse pós-traumático. Um personagem da mitologia como Aquiles é mais próximo desse ideal, como podemos ver na Ilíada, onde ele está mais do que disposto a cumprir o seu destino prenunciado de morrer em batalha pela glória imorredoura e mata tanta gente que os cadáveres entopem o rio Xanto – e quando o rio reclama, hilariamente ele bate no rio também. Mas, ainda em Homero, na Odisseia, quando Odisseu desce ao mundo dos mortos e encontra a sombra de Aquiles, sua perspectiva já é outra: “Preferiria, sendo um lavrador, alugar meus serviços a um outro, / a um homem sem-lote, que não tem muitos recursos, / do que reinar entre todos os mortos já perecidos” (IX, vv. 489-491).
Aquiles, afinal, ainda é humano. Se estamos operando aqui conceitualmente com um espectro entre o humano e o típico, então mais próximo do arquetípico encontramos as divindades. Ares, o deus grego da guerra, está ainda mais próximo desse ideal guerreiro, obviamente (e um outro herói da Guerra de Troia, Diomedes, talvez seja um belo exemplo de meio termo, tendo recebido veneração após a “morte”). E isso nos leva a refletir agora sobre a relação entre divindades e arquétipos.
Essa não é uma preocupação para Jung, pois, como vimos, para ele os arquétipos são maiores do que os deuses, e compreender um deus como uma entidade real seria um entendimento de uma “mente infantil”. Como praticantes de magia, no entanto, o trabalho com divindades é um elemento comum da nossa vida mágica, e adotar essa perspectiva junguiana mais radical não é condutiva a um trabalho verdadeiramente profundo. A minha opinião enquanto magista, com base na minha experiência – e, bem, vocês podem se sentir à vontade para não me levar a sério, porque, né, afinal de contas, quem sou eu para falar qualquer coisa? – é a de que um arquétipo faz parte da anatomia de uma divindade, por assim dizer, mas a divindade em si é algo muito maior. Divindades são seres de consciências muito vastas – e aqui não sou eu quem está falando, mas autores com muito mais peso, como Jason Miller e Josephine McCarthy – com as quais nós nos conectamos por via das invocações. Hermes e Exu podem partilhar sim de uma postura arquetípica comum de trickster, mas não são a mesma coisa (e sugerir isso provavelmente horrorizaria adeptos de ambas as tradições). Assim, invocar a energia arquetípica de um trickster não é mais forte do que invocar a energia dessas entidades. Em vez disso, eu entendo que a parte arquetípica é como se fosse a interface gráfica da divindade, para arriscar uma metáfora de informática, aquilo que facilita a nossa interação enquanto seres humanos. A gente geralmente precisa de uma conexão emocional para conseguir fazer as coisas, e eu entendo que o arquétipo fornece isso, mas sem ser a fonte do poder de uma divindade. Esse detalhe é importante, porque as práticas freestyle de ativação de arquétipos que você vê por aí tendem a tratar de deuses de um modo muito leviano, o que eu pessoalmente acho desrespeitoso e arriscado.
Agora que tiramos isso do caminho, podemos pensar na questão: por que você quer “ativar” um arquétipo?
Na maioria dos casos, parece que o motivo é material (tem o motivo não material também, mas veremos isso daqui a pouco). Como é o caso mais famoso, o da jovem do “arquétipo de Cleópatra”, as pessoas querem dinheiro e fama, sexo e amor, popularidade, amigos, prazeres, causar inveja nos desafetos, etc. Bem, a minha opinião é que existem meios menos trabalhosos de se fazer isso. Feitiços simples de velas já dão conta de muita coisa. Mas o que geralmente se observa em quem ensina a “ativar arquétipos” é que as técnicas consistem em manter um contato constante com símbolos associados aos arquétipos: você utiliza afirmações (uma fórmula comum que eu observei é repeti-las em sessões de 7 vezes, 3 vezes ao dia, durante 21 dias), meditações guiadas, imagens e músicas e performances de comportamento (o famoso fake it till you make it). Bem, a meu ver, temos um problema aí justamente por conta de se estender esse contato a longo prazo.

Vamos voltar ao exemplo do Guerreiro. Eu consigo ver situações em que seria útil invocar essa força: se você é um lutador de artes marciais, faria todo o sentido incorporar essa figura arquetípica no ringue, até mesmo porque morrer é de fato um risco real (eu sempre lembro do George Foreman que quase morreu após uma luta e isso o levou a se converter). Esse seria o caso mais literal, mas um atleta de modo mais geral, como um corredor ou jogador de futebol, também pode se beneficiar de um alinhamento com essas forças (esportes, afinal, são uma transposição de combates para um plano mais simbólico) e, num grau maior de abstração, dá para entender o apelo disso para pessoas que se veem numa área profissional profundamente competitiva. Aliás, eu aposto que você deve conhecer alguém que vai em seminários de coach e passa o dia inteiro fazendo poses de guerreiro, cercando-se de imagens de armas, lendo Sun Tzu e outras coisas do tipo, a fim de se tornar um empreendedor mais feroz. O mundo corporativo tem dessas.
Mas aí é que o bicho pega: beleza, esse carinha aí está o dia inteiro imerso em símbolos de guerreiro. Ele faz afirmações três vezes ao dia, anda de coturno e roupa vermelha, vai para lá e para cá com um exemplar da Arte da Guerra debaixo do braço, tem uma katana em cima da mesa, age com agressividade e competitividade sempre que possível, seu papel de parede do celular é uma cena do Rambo e escuta “Eye of the Tiger” dez vezes ao dia. Vamos supor que isso seja o suficiente… vocês repararam que pessoa insuportável esse sujeito hipotético se tornou? Mirou no arquétipo e acertou na caricatura.
Lon Milo DuQuette nos fornece um exemplo bem interessante disso na dupla de capítulos 9 e 10 do seu Low Magick, “That’s Not What Invocation Is About” e “…And That’s What Invocation Is All About!”. No primeiro dos dois capítulos, ele conta como comete esse equívoco: antes de um ritual de Mercúrio que seria conduzido pelo seu grupo mágico, vem-lhe a ideia imbecil de que seria interessante incorporar esse arquétipo mercurial na reunião social daquela noite. Sendo Mercúrio um deus da mentira e engodo, ele decide que vai passar a noite inteira só contando mentiras. É engraçado, mas termina em constrangimento e lição aprendida, pelo menos, de que tentar incorporar esse tipo de figura é insuportável e contraproducente. No capítulo seguinte, ele trata do que é que é a invocação de fato e como isso se relaciona com o divino de modo mais abstrato. Recomendo muito a leitura desse livro, aliás.
Agora, volto de novo para a parte I do nosso texto: o ser humano é complexo e multifacetado. Tentar ativamente reduzir essa complexidade a uma característica principal é loucura – e, assim, não sou especialista em saúde mental, mas creio ser muito provável que cause todo tipo de estrago na psiquê do indivíduo. Para Duquette já foi um esforço tremendo fazer isso de modo intensivo durante uma noite, que dirá a longo prazo. E não é isso, afinal, o que a masculinidade tenta fazer com todos os meninos desde que nascemos? Expor crianças e adolescentes a símbolos e slogans da masculinidade (“homem não chora”) a fim de que encarnem essas figuras “ideais”? E, a julgar pelos grupos de incels, redpill e outras palhaçadas que vêm se replicando a rodo nos últimos anos, dá pra ver a quantas anda esse projeto. Está todo mundo muito bem da cabeça.
Pensando ainda nessa figura arquetípica do guerreiro, apesar das qualidades desejáveis, como a coragem, disciplina e resiliência, ele pode também ser acusado de ter sede de sangue, de ser insensível e incapaz de pensar por si mesmo. Há quem atribua essas características negativas ao “lado de sombra” do arquétipo, mas eu diria que essa seria uma explicação muito conveniente… essas características não são deturpações da figura e sim qualidades desejáveis para que ele seja aquilo que se propõe a ser. Um guerreiro sensível ou rebelde, que para no meio do combate para questionar as ordens recebidas, não seria lá muito eficaz como um instrumento de guerra. Tentar eliminar essas características a fim de promover um ideal romântico de guerreiro vai contra o espírito de abstração desse exercício de pensar em formas mais típicas. Ou então, transformamos essa figura de Guerreiro num ideal de Cavaleiro, que é muito próximo, porém mais nobre e aí vem lá com outros problemas (a rigidez do código de conduta, por exemplo). Se quisermos que um guerreiro pense, então estaremos entrando no território de ainda outra figura arquetípica, a do Sábio. Mas ninguém quer ser um Sábio o tempo inteiro, é muito cansativo, e talvez em alguns momentos seja melhor também ser um Amante, um Poeta, um Pai. E assim por diante. Se a gente for somando figuras arquetípicas a fim de que cada uma dê conta dos pontos fracos da outra, uma hora você se aproxima, mais ou de menos, de um ser humano completo. Pois é, né?

Essa é uma lição que podemos aprender com o tarô. Os 22 arcanos maiores são um belo exemplo de figuras arquetípicas (e as 16 cartas de corte também, em menor grau). O Louco remete a uma tradição de bobos, clowns e holy fools (da qual o parvo Joanne do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, é um belíssimo exemplo em literatura lusófona), o Mago aos tricksters e feiticeiros, a Sacerdotisa às mistagogas (como a sacerdotisa Diotima em Platão), etc, etc. Se eu faço uma tiragem de tarô na qual peço uma carta para me representar ou para dizer qual energia eu trago a uma dada situação e sai o Louco, quer dizer que, naquele contexto, dentro desse recorte no tempo e no espaço, eu estou agindo desse jeito, alinhado a essa figura arquetípica. Mas não significa que eu seja o Louco e que eu vá me comportar do mesmo jeito em todas as situações. Pode até ser que o meu papel nessa mesma situação mude depois de um tempo. Para mim, essa postura flexível é muito mais razoável do que tentar incorporar uma mesma figura o tempo inteiro.
E aqui vale abrir um adendo para comentar que a incorporação de figuras arquetípicas dentro de um tempo e espaço devidamente delimitados é parte do trabalho mágico desde tempos imemoriais. Há rituais babilônicos (demorou para eu falar da Babilônia, né?) em que o exorcista diz “eu sou Adapa e este é o feitiço de Adapa”, revestindo-se da autoridade de um personagem mítico conhecido pela sua sabedoria e domínio mágico. Algo semelhante ocorre depois com a magia salomônica, em que se recorre à autoridade do rei Salomão (uma figura mais lendária do que histórica) para comandar espíritos, ou com a magia da Golden Dawn e a assunção de formas-deus. No entanto, nesses casos, você não vai dormir e acordar fazendo cosplay de Salomão ou de Osíris. Essa incorporação fica restrita ao espaço do círculo mágico.
Mas o legal é que o tarô nos fornece ferramentas não só para avaliar como estamos agindo, mas também para modificarmos nossas ações. O Louco pode ser bastante adequado em certos contextos, mas não em outros – eu não gostaria de ter o Louco, ingênuo e inexperiente, como professor, por exemplo. É possível perguntarmos se uma outra figura seria mais adequada para o que queremos fazer e a partir daí realizar um trabalho mágico para contatá-la e tentar incorporar suas características no escopo daquela situação. Trabalhos de magia ritual, meditação e pathworking ou a criação de talismãs com o tarô funcionam muito bem para isso. Outra possibilidade ainda são outras formas de magia. Voltando para o exemplo da figura do Guerreiro, é possível alinhar-se temporariamente com essas energias por meio de magia astrológica, com uma invocação de Marte. Um lutador, esportista ou outra pessoa que viva em contextos competitivos pode criar um talismã marcial, guardá-lo e usá-lo apenas quando precisar. No entanto, um trabalho constante, intenso e repetitivo com Marte certamente vai causar um desequilíbrio e despertar aquelas qualidades negativas de que falamos, além de atrair conflitos desnecessários para sua vida. É por isso que eu ensino os meus alunos de magia astrológica a desenvolverem algum tipo de trabalho constante para manter contato com as energias planetárias de todos os sete planetas antes de começarem a trabalhar de modo mais intenso. John Michael Greer, num texto intitulado How Not To Learn Magic, comenta o caso da patacoada que foi o único contato do infame Julius Evola com magia prática, quando o seu grupo decidiu trabalhar intensa e exclusivamente com magia solar… e como resultado o grupo implodiu e todos saíram desse experimento com egos ainda mais inflados do que antes.

Beleza, isso é o que temos a dizer para o caso da pessoa que procura o trabalho com arquétipos para obter vantagens materiais. E quanto ao segundo caso? O das pessoas que identificaram alguma questão em suas próprias personalidades e que procuram recorrer aos arquétipos como uma forma de autoaperfeiçoamento?
Então, veja só, nesses casos eu diria que os arquétipos e o trabalho que as pessoas andam conduzindo com eles são contraproducentes, na verdade. Acompanhem meu raciocínio: suponha que você tenha percebido, após muita introspecção, que você é meio covarde, na verdade, ou que toma decisões imbecis com muita frequência, ou que lhe falta jogo de cintura. Aí decide recorrer às figuras arquetípicas do Guerreiro, do Sábio ou do Trickster. E dá-lhe afirmações, imagens no papel de parede do celular, etc, etc. Não é que eu ache que essas técnicas não funcionem, mas, para uma mudança interior profunda, elas não bastam. A impressão que se tem é que a pessoa está tentando se autoenganar com práticas meio automáticas, meio que nem aquele episódio do Laboratório de Dexter em que ele tenta aprender francês dormindo (e muita gente caôzeira, infelizmente, pensa que magia é isso). Adianta alguma coisa fazer 500 afirmações de “eu sou sábio e tomo boas decisões” e logo depois achar que é uma boa ideia mandar dinheiro para um golpe do PIX? Óbvio que não. O importante aqui é prestar atenção, reconhecer os padrões de pensamento e de comportamento e refletir sobre isso.
Daí concluímos que, se tem algo que te incomoda na sua personalidade, o mais produtivo seria levar isso para a terapia. Mas é possível, sim, dar uma acelerada no processo de autoconhecimento por vias espirituais (o ideal é que as duas coisas se complementem), especialmente com meditações e rituais mais intensos. Uma das minhas experiências mais intensas foi um ritual teúrgico/visionário que eu conduzi numa noite de 2019 com o deus Marduk e que me deixou num estado de êxtase e sensibilidade espiritual que se prolongou até a manhã seguinte e me fez ter certas revelações sobre minha vida, que se traduziram na resolução de questões importantes que, para mim, ainda estavam em aberto.
Um arquétipo pode até ter uma utilidade aqui, porém é uma utilidade muito limitada. Uma forma mágica de cultivar a sabedoria, por exemplo, é por meio de entidades que são figuras arquetipicamente sábias. Você pode começar a sua pesquisa por aí e desenvolver essa relação com uma entidade dessas (como o deus Ea) por meio de rituais teúrgicos – eu, aliás, acho muito mais respeitoso procurar uma divindade buscando uma mudança interior do que para resolver questões materiais. Mas, depois que iniciar os trabalhos de verdade, você não precisa ficar atrelado à figura arquetípica, não precisa se limitar a isso, não precisa ser o Sábio 24 horas por dia.

E isso nos leva, enfim, à conclusão deste texto que é a de que fica muito claro que quem pratica e promove essas técnicas com arquétipos (especialmente no TikTok…) só podem ser pessoas que não possuem uma prática espiritual consistente. Muito do trabalho conduzido por tradições diversas busca uma conexão com entidades maiores do que nós – divindades, anjos, inteligências, mestres e guias incorpóreos –, e esse trabalho, quando levado a sério, nos aproxima dessas forças e ajuda a desenvolver essas virtudes. Essas práticas por si só, feitas de forma mecânica e automática, não bastam para isso, mas são um catalisador para os esforços nesse sentido. De novo, Lon Milo Duquette trata disso no capítulo “…And That’s What Invocation Is All About!”, com a questão da conexão com o divino (e tudo que isso quer dizer). Prestando atenção ao que se está fazendo, a prática espiritual é condutiva a grandes transformações internas – a Meditação dos Corações Gêmeos está aí, e quem pratica costuma atestar excelentes resultados no que diz respeito ao desenvolvimento do amor e da compaixão por todos os seres.
No fim, o que podemos tirar da discussão sobre “ativação de arquétipos”? Primeiramente que, tal como essa prática é ensinada em blogues por aí e vídeos de TikTok, ela consiste em técnicas de baixa intensidade[1] construídas sobre um teoria meio furada. Essas técnicas, na melhor das hipóteses, são exercícios até divertidinhos de teatro que podem sim servir para dar uma ajudinha para outros trabalhos que já estejam sendo conduzidos – cercar-se de imagens de prosperidade, por exemplo, pode ajudar a atrair uma energia de prosperidade que prepara o terreno para um ritual para arranjar um emprego ou algo do tipo –, mas imagino que os resultados para a maioria das pessoas, com a atenção mediana que elas estão dispostas a direcionar para isso, devem ser mínimos, para bem ou para mal. Aliás, por conta dessa base desequilibrada, é bom mesmo que as pessoas não invistam muita energia nisso, sob riscos de acabarem que nem o Jordan Peterson.
Na pior das hipóteses, em termos espirituais, o risco é contatar entidades com as quais você não vai saber lidar. Por conta dessa frouxidão terminológica, além dessas figuras mais típicas e genéricas mesmo como o Guerreiro, o Sábio, etc, você vai ter gente chamando de “arquétipo” a deusa Afrodite, animais como lobos e serpentes e até mesmo a rainha Cleópatra. Eu não recomendo o trabalho com espíritos animais para qualquer um, porque sem o devido treinamento xamânico, pode ser perigoso.

Mas é a questão do “arquétipo de Cleópatra”, o que ficou mais famoso, que merece atenção. Como a jovem mesma disse, ela mantém um altar com velas e alguns outros objetos dedicados a essa figura… o que é um tanto problemático. Cleópatra não é um arquétipo. Ela pode até ter se tornado um tipo de símbolo, um exemplo de mulher poderosa, mas não é uma abstração sem história. Cleópatra foi uma pessoa de carne e osso, que viveu, governou o Egito helenizado e morreu – e uma morte profundamente trágica, aliás, cometendo suicídio aos 39 anos após uma derrota militar, e precipitando a queda do reino ptolemaico que entregou o Egito aos romanos.
Montar um altar para Cleópatra é montar um altar para um espírito de uma pessoa morta. E é aquilo, né, montar altares para heróis, ancestrais e mortos ilustres é uma prática comum de diversas tradições, mas nesse caso não estamos trabalhando com uma tradição específica, e com esse trabalho freestyle eu acho bastante improvável que ela esteja se conectando com o espírito de Cleópatra de fato. Pode ser que não tenha nada ali, pode ser que venha alguma outra coisa. Sem medidas de segurança, qualquer espírito pode se apresentar como qualquer coisa, e muito médium New Age já foi enganado por zombeteiros se passando por espíritos iluminados. Por ora, parece que ainda não deu problema para ela, mas eu não confio e não recomendo. Considerando que o público dessa pessoa é de adolescentes, o risco é ainda maior, porque adolescentes ainda não têm o corpo energético plenamente desenvolvido, e uma cagada feita nessa idade tem consequências muito mais sérias do que as cagadas que a gente faz depois de adulto.
Sei que posso parecer um velho ranzinza falando disso, pode ficar essa coisa meio “ai, nossa, deixa as adolescentes brincarem”. Mas é fato que toda prática mágica tem riscos, assim como dirigir um carro tem riscos. Se você dirige um carro com freios funcionais, airbag e sabendo dirigir, esses riscos diminuem, mas seguir qualquer coisa que apareça no TikTok é o equivalente a deixar o jovem dirigir bêbado uma Brasília 82 com pneu careca. No mais, não é só adolescente com baixa autoestima que brinca de ativação de arquétipos. Tem muito site sobre masculinidade que vai falar disso (procura aí sobre “warrior archetype” no Google) e muito site em contexto corporativo (procure por “brand archetypes”). A impressão que se tem é que o junguianismo freestyle entrou em metástase. Para encerrar, eu deixo aqui o meu apelo, como sempre: se algo lhe chama a atenção em termos esotéricos, estude e procure as fontes primárias, e não saia praticando qualquer coisa que vê nas redes sociais só porque é popular.
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1. Isso não quer dizer que afirmações não funcionem. Há sistemas que se valem dessa prática, com grande efeito, mas para que sejam eficazes, é necessário todo um trabalho prévio. É preciso cuidar do seu próprio sistema energético, da sua limpeza e da sua conexão com forças divinas para que uma simples afirmação tenha peso sem ser no contexto de um ritual mais elaborado. Uma forma de ampliar a força das suas próprias afirmações, por exemplo, é fazê-las durante a sua prática diária, após suas preces e meditação.