Cuidados com o tarô – parte I: a consagração
O tema do texto de hoje, que eu dividi em duas partes para ficar mais manejável, é algo que eu achava que era ponto pacífico – a ideia de que é bom e recomendável você consagrar o seu baralho e tomar algumas precauções na hora de fazer suas tiragens, incluindo umas práticas de limpeza e fazer alguma coisa para abrir e fechar a sessão. Logo descobri, no entanto, que esse é um assunto sensível1.
Entendo que o que aconteceu com o tarô foi uma jornada meio doida. Como se sabe, tratava-se, em suas origens, de um jogo de baralho completamente mundano. Em algum momento, ele deve ter passado a ser usado para práticas de cartomancia, assim como também surgiram tradições populares de se usar o próprio baralho normal como oráculo… e lá pelo século XVIII surgiu a noção de que haveria alguma ligação entre as imagens dos 22 arcanos maiores com hieroglifos egípcios e as letras do alfabeto hebraico, com seus sentidos místicos na Cabala judaica. Embora, a nível histórico, isso seja uma completa bobagem – não existe qualquer ligação entre o antigo Egito, Cabala e as origens do tarô, – foi dentro desse imaginário que muito da tarologia moderna se desenvolveu, e creio que eu não precise me demorar aqui em rastrear essas influências nas imagens do Rider-Waite-Smith ou no tarô de Thoth, mas até mesmo na tradição francesa, com o baralho de Oswald Wirth, baseado no Marselha e no cabalismo de Lévi, isso se faz presente.

Porém, se os ocultistas do século XIX elevaram o tarô ao nível de uma ferramenta sagrada (com base em premissas meio confusas), no século XX houve muita confusão entre esoterismo e psicologia, alternadamente perpetrada por membros dos dois grupos, de Jung a Israel Regardie. Já falamos disso um pouco nos textos aqui sobre arquétipos. O problema, a meu ver, é que, ao mexer com tarô, existe uma linha muito tênue e as pessoas não entendem o momento em que se ultrapassa essa linha. Um baralho de tarô em si não tem nada de essencialmente mágico ou sagrado: são 78 lâminas de papelão impresso. O tarô é muitíssimo popular no meio artístico, e tem gente que gosta de usá-lo como uma ferramenta criativa, uma forma de construir narrativas a partir de imagens, de treinar seu pensamento simbólico, de trabalhar seu autoconhecimento. E isso é mágico num sentido mais amplo da palavra, no que diz respeito a um tipo de experiência de alumbramento, aquele clique de quando você conecta as coisas e o seu horizonte se amplia, entende? Mas não é mágico num sentido estrito, mais técnico. É diferente de tentar usar o baralho para obter informações sobre o mundo, sobre outras pessoas e sobre situações em potencial, que é o uso de fato divinatório.
No meio do tarô, a visão mais psicologizante (que é equivocada, inclusive, por ser má psicologia) é tão popular que vai ter defensores ferrenhos da ideia de que o seu uso divinatório é impossível. O que é uma tremenda bobagem: a Rachel, por exemplo, que apareceu aqui recentemente num guest post sobre a promessa de São José, não só já conseguiu prever a data em que uma amiga nossa ia engravidar como também previu que seria de gêmeos. E ela é a cartomante mais séria e disciplinada que eu conheço em termos dos cuidados que ela toma ao abrir um jogo. E esses cuidados são necessários, porque, quando você está querendo saber de algo externo, você vai transitar, em termos espirituais, por espaços por onde a maioria das pessoas não anda normalmente. Você não está na segurança da sua própria casa, da sua própria cabeça, mas se esgueirando nas ruas tentando espiar para ver se o seu crush gosta de você ou se uma proposta de emprego é confiável. Nesse contexto, o baralho passa a ser uma ferramenta mágica e precisa ser tratada como tal.
É isso que eu acho que essas pessoas não entendem. Se a sua perspectiva é puramente psicológica, criativa, de autoconhecimento, etc., então tudo bem se você não toma os cuidados que acompanham trabalhos mágicos (apesar que mal não faz, viu). Mas aí também não faz sentido você usar o baralho como oráculo, porque você vai estar partindo de uma visão de mundo que não oferece suporte para essa prática.
“Mas, ai, Frater, eu sempre joguei tarô sem fazer nada disso e nunca deu problema, funciona normal aqui”.
A questão não é que você precise fazer essas coisas para que o tarô funcione, assim, num nível imediato. Seus dentes ainda funcionam se você não escovar após as refeições. Até o dia em que eles não funcionam mais. Há um forte elemento intuitivo no trabalho oracular, que complementa os estudos (falaremos disso em breve aqui), e um acúmulo de sujeira energética é como botar uma marca gordurosa de dedo em cima da lente da sua intuição. Quando isso acontece, mesmo que as cartas continuem saindo direitinho, é capaz de você olhar, olhar, olhar, não conseguir entender o que vê e aí chegar a umas conclusões equivocadas. No mais, há uma troca de energia no trabalho oracular, e é muito fácil acabar se contaminando no processo, especialmente se você tem muitos clientes. E aí basta um cliente cheio de parasita, miasma e kiumba nas costas para estragar o seu dia.
Em resumo, esses cuidados mantêm as coisas em ordem, as lentes limpas e as engrenagens azeitadas. Você pode ignorar, se quiser – eu não sou sua mãe para te mandar escovar os dentes e lavar a bunda, – mas é inegável que, a longo prazo, isso faz a diferença. E, considerando que são coisas pequenas que dá para fazer, é bobagem não fazê-las. No texto de hoje, nosso tema é a consagração. No próximo, vamos falar um pouco da limpeza e da questão de abrir e fechar a sessão.
Eu já falei um pouco disso no texto de “Primeiros passos com o tarô”:
Eu entendo os baralhos como ferramentas mágicas e, como toda ferramenta mágica, eles precisam passar por um processo de consagração. A consagração está para o objeto como a iniciação para o magista: é a passagem de um estado para outro, saindo do mundano para um nível mais elevado, onde vai começar a desenvolver seu potencial mágico. Esse processo também liga a ferramenta a você e permite, com o tempo, fortalecer os laços entre os dois, o que vai aumentar a precisão das respostas.
Além disso, a consagração oferece ainda uma camada a mais de proteção.
OK, mas como que faz, então? Bem, se você tem interesse num sistema mágico como o da Golden Dawn, o casal Cicero oferece um roteiro de consagração no seu livro Tarot Talismans (p. 20). No entanto, embora seja um ritual simples para quem já está familiarizado com esse sistema, seus rituais e ferramentas, ele acaba sendo um ritual muito difícil para uma pessoa comum. Deixo aí a indicação, claro, para quem tem essa afinidade, mas aqui no site o que eu vou passar vai ser um roteiro mais simples e genérico. Para quem é iniciante e não tem uma prática, eu recomendo que siga o roteiro à risca. Quem já faz as suas coisas pode modificá-lo ou então apenas usá-lo como um ponto de partida, uma inspiração, para compor o seu próprio ritual.
Para fazer a consagração, você vai precisar do seu baralho (óbvio), uma vela branca e uma mesinha que sirva de altar. Se você já tem o seu espaço mágico e o seu altar, você vai fazer o ritual lá, claro, mas quem não tem pode usar a mesa da sala, da cozinha, etc. Só dá uma limpada antes (no plano físico mesmo), tira a bagunça da mesa, se pá bota um paninho bonitinho.
No mais, tem também a questão da limpeza. De novo, para quem tem já o seu espaço mágico na casa, uma salinha só para magia, isso não é uma questão. O quartinho dos rituais, para quem tem, vai ser sempre o lugar mais limpo da casa (a não ser que você faça muita merda lá, mas nesse caso você vai ter um outro problema bem maior em mãos). Entendo, no entanto, que a maioria das pessoas não têm esse privilégio, e aí se você for usar a sala ou o escritório para isso, é bom dar uma limpada antes. Um RmP, uns salmos, uns mantras, uma defumada, tudo isso serve para limpar. Já falamos desse assunto antes (clique aqui!) e por isso não tem por que eu me repetir. E acho bom dar uma limpadinha antes no baralho também. Pode ser com um ritual, com defumação ou, para usar uma opção mais preguiçosa, colocar o baralho do lado de um fone de ouvido tocando uma gravação do mantra OM (como esta aqui, por exemplo, que tem 1 hora de 22 minutos de duração).
E é isso. Faz lá a sua limpeza do espaço e do baralho, aí você vai pegar o seu altar (ou mesinha que vai servir de altar) e colocar a vela branca e o baralho. Opcionalmente, pode acender um incenso e/ou colocar um copo d’água, incluir as ferramentas mágicas e outras representações dos quatro elementos ou de forças que sejam caras a você, que simbolizem sua conexão com o Divino, proteção, essas coisas. Se não tiver, pode ficar só com a vela branca mesmo. Em termos de timing, eu prefiro fazer consagrações, seja de baralho, seja de cristais ou outras coisas, na Lua cheia. Só recomendo evitar quando for uma Lua cheia de eclipse2. Consagrações também podem ser feitas e depois refeitas. Não faz mal você reconsagrar o seu baralho de tempos em tempos.
Sem mais delongas, lá vamos nós, então.

Uma consagração do tarô
Como dito, preparar primeiro o seu altar com a vela e o que mais você quiser incluir. Fazer a limpeza do espaço e do baralho.
Acender a vela branca, fazer 3 ciclos de respiração lenta e recitar a prece preliminar. Se você já tiver alguma prece que você utiliza normalmente, como a prece cabalística de Lévi ou mesmo a minha prece preliminar em babilônico, pode utilizá-la. A ideia é fazer essa invocação das suas forças afins para que elas orientem e fortaleçam seu trabalho. Aqui, neste modelo, vamos partir do pressuposto de que o nosso público-leitor mais imediato é iniciante, por isso vamos utilizar a seguinte invocação:
“Ao Ser Supremo, Pai Divino e Mãe Divina, aos Grandes Seres de Luz, Anjos, Arcanjos, Professores Espirituais, Ajudantes Espirituais e todos os Seres Excelsos. Aos meus Guias, à minha Alma e minha Divina Presença. Peço humildemente por Bênçãos Divinas, Proteção, Amor, Ajuda e Poder”.
Após essa recitação, visualizar uma luz branca que vem de cima, desce pelo topo da sua cabeça e inunda a sua aura a partir do seu peito. Agora você vai se dirigir ao baralho:
“É minha vontade, nestes sacros ritos, consagrar, avivar e abençoar este meu baralho de tarô. Eu, _____ (seu nome), a vós me volto agora, Ó imagens misteriosas: que as bênçãos divinas estejam sobre vós, em todas as vossas 78 lâminas – todos os arcanos maiores e menores, do Louco ao Mundo, dos valetes aos reis, nos naipes de paus, espadas, copas e pantáculos. Que estas forças vos protejam sempre e sejam um escudo contra toda energia suja e doente, contra formas-pensamento negativas, elementais negativos, seres parasíticos e espíritos hostis. Que assim seja.”
Na sequência, você vai posicionar sua mão dominante em cima do baralho, visualizando uma luz branca que desce do topo da sua cabeça e sai pela palma da sua mão, cobrindo o baralho. Sincronizar essa visualização com a respiração: ao inspirar, a luz vai do topo da cabeça até a sua mão; ao expirar, a luz dispara da sua mão até o baralho. Fazer quatro ciclos de respiração. Continuar com a fórmula:
“Que a verdade habite em todas estas 78 lâminas; que, em todo uso que eu fizer destas imagens, elas sejam sempre um reflexo da verdade; que me inspirem revelações fidedignas e por meio delas eu obtenha o conhecimento verdadeiro daquilo que se encontra oculto. Que assim seja.”
Agora você vai repetir o gesto anterior, colocando a mão de novo em cima do baralho, fazendo visualização com respiração. De novo, quatro ciclos. Feito isso, é só deixar a energia assentar, então reunir as mãos na altura do peito e partir para a fórmula de encerramento:
“Está feito. Assim foram consagradas, avivadas e abençoadas estas 78 lâminas. Ao Ser Supremo, Pai Divino e Mãe Divina, aos Grandes Seres de Luz, Anjos, Arcanjos, Professores Espirituais, Ajudantes Espirituais e todos os Seres Excelsos, aos meus Guias, à minha Alma e minha Divina Presença, em reverência e plena fé, eu agradeço.”
Concluir o ritual embaralhando o baralho. Aterrar depois. Quanto à vela, eu gosto de deixar queimar até o fim, mas não tem problema, se tiver que sair de casa, você apagar e reacender depois.
* * *
E por hoje é só, pessoal. Não é um ritual difícil, nem demorado. Como dito, para quem não tem experiência, recomendo segui-lo à risca, mas quem tem já a sua prática pode modificá-lo ou usá-lo como base para um roteiro de autoria própria3. Na parte II deste texto, trataremos da outra metade do trabalho, que é a questão da abertura e fechamento das sessões, bem como o que se pode fazer entre um atendimento e outro em termos de proteções e limpezas. Para quem tem interesse em se aprofundar, no ano passado a Juliana Ponzilacqua, do Colégio Ordo Noctuae, ministrou um curso com o título de Sensibilização Oracular, em que essas questões foram tratadas. Recomendo ficar de olho nas redes dela (especialmente seu canal no Telegram) para ver quando ela vai ministrá-lo de novo.
* * *
(Obrigado pela visita e pela leitura! Se você veio parar aqui n’O Zigurate e gostou do que viu, não se esqueça de se inscrever em nosso canal no Telegram neste link aqui. Anunciamos lá toda vez que sair um post novo, toda vez que abrirmos turmas para nossos cursos e todo tipo de notícia que considerarmos interessante para quem tem interesse em espiritualidade, magia e ocultismo. E, se quiser agendar um atendimento comigo, é só clicar aqui ou neste link para procurar um atendimento com a Maíra. Também estamos no Instagram (@ozigurate), Twitter (@fr_abstru e @_pranichealer), e Blue Sky (ozigurate.bsky.social e pranichealer.bsky.social).)
- Tuíter, né? Esse lugar onde o bom senso é radical. ↩︎
- Eclipses são eventos disruptivos. Não são boas ocasiões para práticas mágicas que não sejam de limpeza e rotina. ↩︎
- Bom frisar que essa é a consagração do tarô que eu recomendo para usá-lo como método oracular. Quem quiser usar o tarô para fazer feitiços, aí eu recomendo alterar o roteiro de acordo com o sistema de magia do tarô que você preferir (e não utilizar o mesmo baralho que você usa para jogar para fazer rituais também) ↩︎