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A meditação cabalística de Abulafia

A meditação cabalística de Abulafia

Leitura em 11 min
Fonte: O Zigurate

Abraham Abulafia é um dos meus personagens favoritos no campo do misticismo judaico. Em primeiro lugar, porque temos apenas a data de nascimento dele (1240, em Zaragoza, na Espanha), mas não a sua data exata de morte, que acredita-se que teria sido em algum momento depois de 1291, na ilha de Comino, arquipélago de Malta (eu pessoalmente, no entanto, gosto de nutrir a fantasia de que ele teria sido arrebatado ainda vivo, no estilo de Enoque e Elias). Em segundo lugar: como não amar um sujeito que viajou até Roma para tentar converter o Papa ao judaísmo?? O Papa em questão – Nicolau III, à época – estava na cidade de Suriano e, quando teve notícia dos planos de Abulafia, deu ordens para “queimarem o fanático” assim que ele chegasse – porque era óbvio que ele seria preso e queimado, sendo um judeu em pleno medievo com esse grau de chutzpah. Só que Abulafia se safou, porque Nicolau III morreu de derrame antes que ele chegasse à cidade, já com tudo preparado para fazerem a fogueira. Voltando à Roma, nosso intrépido rabbi ficou preso durante algumas semanas, mas foi liberado. E, bem, se eu fosse o pessoal do Vaticano, eu não brincaria com esse cara.

Quando usamos o termo Cabala, é importante frisar que não existe um sistema de crenças unificado. Seria mais adequado falar em termos de tradições cabalísticas dentro do judaísmo, e o próprio Abulafia desenvolveu um sistema bastante único, chamado de “Cabala profética” ou “Cabala extática”, centrado em torno do trabalho com as letras hebraicas (pretendo falar um pouco sobre o misticismo das letras em algum texto futuro, aliás). A Cabala de Abulafia não é a mesma que a Cabala de Isaac Luria, por exemplo. E ambas, com certeza, têm muito pouco a ver com a Cabala hermética praticada pela Golden Dawn e descendentes.

Pintura de Shoshannah Brombacher, “7 Torah Paths Of Abulafia” (2018)

Duas obras importantes que causaram um impacto no desenvolvimento do seu próprio trabalho foram o Sefer Yetzirah (o Livro da Formação), do qual já tratamos aqui no site em alguns momentos, e o Guia dos Perplexos de Maimônides, uma figura marcante por ter sistematizado várias coisas dentro do judaísmo a partir de uma perspectiva altamente racionalista, influenciada por Aristóteles. Na metafísica de Maimônides, por exemplo, as referências ao sobrenatural no texto bíblico, como a existência de demônios, são consideradas metafóricas, não literais. Ou seja, acreditar que existem seres malignos capazes de influenciar a nossa existência seria, para ele, mera superstição. A maioria dos místicos judeus que depois vão seguir na linha do Zôhar tendem a se alinhar à ideia oposta, orientando-se por uma cosmovisão mais próxima da medieval. Por isso é fascinante que Abulafia tenha chegado a algum tipo de síntese entre racionalismo e misticismo ou a um misticismo nascido no coração do racionalismo maimonidiano. Mais sobre isso, vocês podem conferir no episódio “Abulafia – The Union of Philosophy and Kabbalah”, no canal Esoterica do Dr. Justin Sledge, no YouTube. Outro vídeo que representa uma belíssima introdução ao assunto é “Abraham Abulafia & Ecstatic Kabbalah”, do Let’s Talk Religion. Recomendo imensamente os dois canais para quem tem facilidade em entender inglês.

O nosso texto de hoje, porém, não tem como foco a história do ilustre rabbi, nem se pretende um resumo dos seus ensinamentos. Em vez disso, o que eu quero apresentar aqui é uma prática meditativa (hitboded, em hebraico). A primeira vez que tive contato com ela foi num texto do rabbi Jay Michaelson, depois num vídeo meio bizarro encontrado no YouTube, mas posteriormente a encontrei tudo de modo mais detalhado no capítulo sobre Abulafia do livro do grande Aryeh Kaplan, Meditation and Kabbalah (publicado em português como Meditação e Cabalá, pela editora Sêfer). A prática é chamada de “A Luz do Intelecto”, ou Or HaSekhal, descrita num livro do autor com esse mesmo título. Ela envolve a permutação do nome divino YHWH com a letra álef e cinco vogais, acompanhada de visualizações e movimentos da cabeça. A ideia é que essas técnicas teriam sido as utilizadas pelos profetas do período bíblico para conquistar o dom do profetismo, isto é, obter um alinhamento entre o intelecto humano e o intelecto divino.

Não preciso nem dizer que é uma técnica poderosa. E justamente por ser poderosa, ela traz consigo lá os seus perigos (um fio de alta tensão é um bom símile para comparar). Importante frisar que NÃO é uma prática para iniciantes, curiosos e praticantes sem maior preparo energético e espiritual. Eu divulgo aqui, porque acho interessante que mais pessoas conheçam, mas não recomendo para todo mundo.

Para quem tem interesse em saber como funciona e talvez experimentar, antes de tudo é preciso se familiarizar com as letras hebraicas e as suas vogais.

Acima, vemos o álef, a primeira letra do alfabeto hebraico, repetida cinco vezes, cada uma delas com uma vogal, marcada pelos nikkud embaixo, os pontinhos. Indo da direita para esquerda, que é a ordem padrão de leitura do hebraico, temos o álef acompanhado de um cholam, de um kametz, de um tserê, de um chirek e de um kubutz. Cholam, o pontinho que fica em cima, tem o som de “o”. Kametz, o pequeno T embaixo, tem o som de “a”. Tserê, os dois pontinhos embaixo, tem o som de “e”. Chirek, um único pontinho embaixo, tem o som de “i”. E, por fim, kubutz, os três pontinhos embaixo fazendo um escadinha, tem o som de “u”. Apesar de o álef por vezes ser transcrito como a letra A, ele famosamente não tem som (em termos mais técnicos, ele equivale à consoante que se chama de “oclusiva glotal”, um pequeno movimento com a glote), por isso a pronúncia dessa sequência é simplesmente Ô, A, Ê, I, U. Recomendo que vocês se familiarizem com esses sons, nessa ordem, e com suas representações por escrito.

Depois, é importante conhecer bem o nome o nome mais sagrado de Deus segundo o judaísmo: YHWH. É um nome formado por um yud (י‎), um heh (ה), um vav (ו) e um segundo heh. Crucial não confundir nenhuma das letras heh com o chet (ח), que é uma letra parecida e já levou muita gente a fazer tatuagens erradas em hebraico. Já escrevi sobre o nome de Deus mais longamente aqui num texto anterior, por isso recomendo que vocês o leiam antes de qualquer coisa, clicando aqui. Estudem bem cada letra do nome de Deus, de modo que consigam visualizá-las sem dificuldade.

A partir daí, podemos pensar na meditação em si. Como eu disse, essa prática combina a pronúncia das sílabas derivadas de permutações com visualizações e movimentos da cabeça. Cada uma das vogais está associada a um movimento específico. Então, para entoar a vogal “Ô” (o álef com cholam), a primeira da sequência, você vai começar com a cabeça numa posição normal, virada para frente, então respirar fundo, jogá-la para trás e ir retornando à posição inicial devagar enquanto entoa o “Ô”. Para a vogal “A”, a partir da posição inicial, você vira a cabeça para a esquerda e depois retorna, sempre pronunciando a vogal na hora de retornar. Para a vogal “Ê”, é a mesma coisa só que a cabeça é virada para a direita. Depois, com o “I”, você encosta o seu queixo no peito e retorna. E, por fim, com o “U”, você mexe a cabeça para frente num movimento reto, sem subir, nem baixar, meio como um pica-pau e volta pelo mesmo caminho. Em resumo:

  • O: cabeça para trás
  • A: cabeça para a esquerda
  • E: cabeça para a direita
  • I: queixo no peito
  • U: cabeça para a frente

Experimente agora fazer isso com os olhos fechados, enquanto visualiza a letra álef acompanhada dos devidos pontinhos. Quando conseguir fazer essa série sem dificuldade, podemos passar para a próxima parte.

Depois de conseguir memorizar as posições e as visualizações, você pode começar a testar a sequência com as letras do nome divino. Primeiro o yud: Yô, Ya, Yê, Yi, Yu – sempre acompanhando a letra com os pontinhos nas visualizações. Depois o heh: Hô, Ha, Hê, Hi, Hu. Depois o vav: Vô, Va, Vê, Vi, Vu. E, por fim, o outro heh (igual o anterior). Não é difícil, mas recomendo fazer esse teste primeiro para não se atrapalhar na hora de fazer a prática para valer. Isso que estamos fazendo por ora só serve de introdução à meditação cabalística e é bem agradável de se fazer, mas o que o Abulafia recomenda é bem mais intenso.

Dominadas essas técnicas, podemos agora passar para o Or HaSekhal propriamente.

O pulo do gato aqui é que as letras e vogais precisam ser permutadas e combinadas, duas por vez. Ou seja, em vez de fazer só o yud, o heh, o vav e o heh, você vai fazer álef-yud, yud-álef, álef-heh, heh-álef, álef-vav, vav-álef e álef-heh, heh-álef de novo. O álef não é apenas a letra que eu usei aqui para demonstrar o som das vogais, mas talvez a letra mais importante do alfabeto em termos místicos, por ser uma representação da unidade (yichud) de Deus. O álef, a primeira letra, tem o valor numérico 1 e a gematria do nome “álef” (álef, lamed, peh) soma 111. É possível ler mais sobre os mistérios do álef num artigo do site Chabad.org, aqui.

Por isso, você vai começar entoando a vogal Ô (um álef com cholam), junto do devido movimento da cabeça, indo para trás e voltando, seguido da sílaba Yô, também com esse mesmo movimento. Depois vem a combinação Ô-Ya, com a cabeça para trás primeiro, seguida da cabeça para a esquerda. Depois Ô-Ye, Ô-Yi, Ô-Yu, sempre com os devidos movimentos e visualizações. A sequência completa fica assim:

Ô-Yô Ô-Ya Ô-Ye Ô-Yi Ô-Yu
A-Yô A-Ya A-Ye A-Yi A-Yu
E-Yô E-Ya E-Ye E-Yi E-Yu
I-Yô I-Ya I-Ye I-Yi I-Yu
U-Yô U-Ya U-Ye U-Yi U-Yu

Você pode inspirar até duas vezes entre cada par de letras e até cinco vezes entre cada linha, mas não mais do que isso. Se quiser inspirar menos vezes, pode, mas mais não. Completada essa sequência, você passa, então para a dupla inversa yud-álef:

Yô-Ô Yô-A Yô-E Yô-I Yô-U
Ya-Ô Ya-A Ya-E Ya-I Ya-U
Ye-Ô Ye-A Ye-E Ye-I Ye-U
Yi-Ô Yi-A Yi-E Yi-I Yi-U
Yu-Ô Yu-A Yu-E Yu-I Yu-U

Isso conclui o trabalho com a letra yud. A partir daí, você prossegue com as permutações do restante do nome de Deus. Ô-Hô, Ô-Ha, etc até a última combinação, que é Hu-U. E é isso. Parece meio complicado de explicar, mas é fácil de pegar o jeito.

Todas as permutações da letra álef e das letras do nome YHWH, em blocos, na ordem prescrita por Abulafia. Primeiro as permutações com yud, à direita, com o heh no centro e com o vav à esquerda.

As instruções de Abulafia são acompanhadas de algumas recomendações. Ele diz que a prática deve ser feita voltando-se para o leste, com o corpo sentado e a mente plácida, acalmando os pensamentos (por isso e por outros motivos é uma meditação avançada, para quem já consegue entrar num estado meditativo sem maiores dificuldades). Recomenda-se usar uma túnica limpa e branca por cima da roupa ou então o seu tallit e tefillin (filactérios). Ele não o diz explicitamente, mas entendo que estar numa condição de pureza ritualística é importante, i.e. abstendo-se de álcool e alimentos impuros, de sexo e contato com fluidos menstruais, etc. Acho sempre bom tomar banho antes também.

O texto se encerra com as seguintes instruções quanto ao que se fazer caso aconteça qualquer coisa:

“Em todo caso, se vires qualquer imagem diante de ti, deves prostrar-te imediatamente.

Se ouvires uma voz, altissonante ou suave, e desejares compreender o que ela diz, responda de imediato, “Fala, Senhor, porque o teu servo ouve” (1 Samuel 3:9). Nada digas, mas sim inclines teu ouvido para ouvir o que te está sendo dito.

Se sentires grande terror e não o puderes suportar, deves prostrar-te imediatamente, mesmo se estiveres em vias de pronunciar uma das letras.

Se não vires nem ouvires nada, não deves utilizar esta técnica de novo ao longo de toda aquela semana. (…)

Se sentires que tua mente está instável, que o teu conhecimento da Cabala é insuficiente ou que teus pensamentos estão presos às vaidades do tempo, não ouses pronunciar o Nome, a fim de não correres o risco de pecar ainda mais”.

Evidentemente Abulafia pressupunha um leitor judeu e cabalista, e, assim… eu não quero fazer nenhum comentário sobre essa prática poder ser praticada ou não por não judeus, porque é uma discussão muito tediosa. Entendo que, se não fosse para ela ser amplamente praticada, não teria sido amplamente divulgada por alguém como o Aryeh Kaplan. O caminho espiritual é uma coisa que cabe a cada um, etc, etc, porém sempre com respeito, não seja um cabalista goy antissemita, etc, etc. Bom senso, né. Só que, como eu disse, trata-se de uma prática muito intensa. Quando Abulafia fala em “grande terror”, não é apenas uma sensação de medo, mas uma tremedeira real. Por isso, eu não acho que é qualquer pessoa que pode praticá-la e, a não ser que eu tenha recomendado para você como parte do meu atendimento, eu não me responsabilizo caso alguém decida fazer e acabe passando mal, surtando ou algo assim – vale lembrar sempre da famosa lenda do Pardes. Se você já tem uma prática espiritual sólida, imagino que seja capaz de segurar o rojão, mas mesmo assim acho que vale, no mínimo do mínimo, conferir antes num oráculo para ver se não vai dar xabu. Para os iniciantes, há outras meditações que Aryeh Kaplan ensina em seu volume e também em sua tradução comentada do Sefer Yetzirah que vale a pena testar antes de arriscar uma prática mais poderosa.

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