Uma introdução aos decanos
Minha obsessão mais recente nos estudos de ocultismo tem sido o tema dos decanos, as 36 divisões do zodíaco. Já vimos um pouco disso em alguns textos que saíram aqui no site, mas um grande amigo me fez o favor inestimável de me emprestar o livro 36 Faces: The History, Astrology and Magic of the Decans, de Austin Coppock (Three Hands Press, inicialmente publicado em 2014), o que permitiu me aprofundar imensamente esses estudos. No entanto, trata-se de um volume raríssimo, esgotado no estrangeiro, e eu tratei de fichar o quanto pude do texto antes de devolvê-lo. Assim, parte das minhas descobertas eu gostaria de compartilhar aqui com vocês agora, possibilitando um primeiro contato com um conceito que pode ser muito útil, tanto para quem tem interesse em magia astrológica quanto para quem gosta de astrologia no geral.
Antes de mais nada… o que diabos são os decanos? O nome diz tudo: decanos — dez — são as figuras responsáveis por cada divisão de dez graus da eclíptica (o caminho traçado pelo Sol no céu). Tendo 360º, logo, temos 36 decanos, numa divisão de 3 para cada um dos 12 signos do zodíaco. Historicamente, no entanto, o negócio é um pouco mais complicado, pois essa sincretização com o zodíaco e os planetas acontece posteriormente com a astrologia helenística, ao passo que o conceito dos decanos em si tem suas origens nas práticas mágico-astrológico-astronômicas dos egípcios.
No antigo Egito, pelo menos desde o III milênio a.C., de que se tem notícia, os decanos eram usados como marcadores das horas. Havia certas estrelas (não sabemos quais, dada a procissão dos equinócios) que, ao nascerem no horizonte do céu noturno, anunciavam a passagem de uma “hora” para outra. Essas mesmas estrelas mudavam a cada 10 dias (sinalizando a mudança de um grau na eclíptica por dia), o que permitia a contagem do tempo em termos tanto de horas quanto de um tipo de semana, observando-se qual estrela aparecia à hora do nascer do Solo, o que se chama de nascer helíaco (com o ano novo sendo marcado pela ascensão da estrela Sirius). Tal sistema perdurou durante vários séculos, pelo menos até a conquista de Alexandre, o Grande, e deixou muito material inscrito tanto em tampas de sarcófagos quanto em livros de fato — o mais famoso sendo o chamado Livro de Nut. Como não podia deixar de ser, essas faces eram associadas a deuses e espíritos, mas eu não vou saber dizer como era feita essa correspondência, haja vista que egiptologia é uma área complexa e um tanto além do que eu já estudei sobre a Antiguidade (e, no meio de toda essa complexidade, é difícil separar a arqueologia séria das pirações inspiradas pelos equívocos da arqueologia antiga). Em todo caso, a fusão desse sistema de marcação de tempo com a astrologia helenística centrada no zodíaco e nos 7 planetas deu origem ao trabalho com os decanos como os conhecemos, e há uma vasta bibliografia a respeito.

Coppock lista algumas obras da Antiguidade que lhe servem de referência: o fragmento helenístico 36 Ares do Zodíaco, o Liber Hermetis e a Apotelesmática, o Birhat Jakata, o Yavanajataka, a obra de Ibn Ezra, o Picatrix e Agrippa. São MUITAS fontes, que vão desde o período helenístico até o começo da era moderna, da Grécia até a Índia, o Oriente Médio e a Europa. Há uma menção também ao Testamento de Salomão, de que já tratamos no nosso último texto, sobre os demônios do Dicionário dos Demônios. O que o Testamento faz é fundir a tradição dos decanos com a tradição nascente da magia salomônica, contando como foi que Salomão aprisionou e interrogou os espíritos malignos dos decanos, causadores de todo tipo de doença e mal estar, oferecendo também as fórmulas mágicas por meio das quais seria possível afastá-los. Mas nessas outras obras listadas o trabalho com essas forças astrológicas é muito mais positivo, visando a utilizar o poder dos decanos para magia prática de manifestação.
O que observamos, com frequência, são listas de imagens a serem gravadas em pedra, metal ou pergaminho sob condições astrológicas específicas, criando um talismã que vai capturar algo da energia daquele decano ou agir como um portal para o seu espírito poder atuar e se manifestar diretamente no nosso plano. Vamos ver um exemplo, o terceiro decano do signo de Áries (a que Coppock se refere pela terminologia de Áries III), localizado entre 20º e 29º59′ desse signo.
- Como consta na versão em árabe do Picatrix (o Ghayat al-Hakim), sua função, segundo os indianos, é lidar com juízes e jurisprudência, reconciliando diferenças (já a versão latina expande um pouco e diz que serve para oficiais, delegados, juízes e prelados, para trazer paz e benevolência entre essas figuras). A imagem a ser gravada é de um homem vermelho e furioso, com cabelo vermelho, portando uma espada e um bracelete de madeira, com roupas vermelhas, habilidoso no manejo de ferragens (a versão latina omite a espada e substitui o bracelete de madeira por um de ouro);
- Em Ibn Ezra, a imagem é parecida com a do Picatrix, descrevendo um ferreiro com cabelo vermelho, mas aqui ele tem a pele amarela e suas mãos seguram um bracelete e um bastão. Ambas as fontes o descrevem como alguém que “quer fazer o bem, mas é incapaz disso”;
- Em Agrippa consta a mesma imagem de Ibn Ezra (incluindo o adendo bizarro sobre querer fazer o bem, mas não conseguir), e diz que essa imagem confere talento, docilidade, alegria e beleza.
- O Liber Hermetis oferece a imagem de uma mulher, em pé, adornada com trajes de linho de uma cor rosa escura, amarrados com um fio dourado. Ela tem uma coroa de ouro na cabeça, esmeraldas na barriga e segura um bastão com uma serpente de quatro cabeças. O nome do decano (ou talvez seu espírito) seria Disornafias, mas a Apotelesmática dá outro nome, Siket (são os únicos livros antigos a darem nomes, mas dentre o material do século XX, tem o 777, que o chama de Satonder);
- Os 36 Ares não atribuem a esse decano uma imagem ou nome próprio, mas uma associação com uma divindade, no caso, o deus do amor Eros (latino Cupido).
Para se criar esse talismã, o timing ideal seria então o momento em que o regente do decano estaria situado no decano em si. Qualquer um que manje um pouco de astrologia sabe que Áries é regido por Marte, mas o terceiro decano conta com a regência de… Vênus!
(Vale lembrar ainda que há, pelo menos, dois sistemas de regências dos decanos. Aqui estamos usando a versão mais usada no ocultismo ocidental, mas Coppock trata dos dois em seu livro. Há uma tabela dos dois no site do Warnock).
Esse tipo de talismã, portanto, só vai poder ser criado enquanto Vênus estiver entre 20º e 29º59′ graus de Áries (o que vai acontecer no período entre 20 e 28 de maio agora). Há regras solares também: o Sol precisa fazer algum aspecto com Vênus ou estar nascendo no dia e hora de Vênus (no caso, umas 6:30 de sexta-feira). O planeta não pode também estar combusto, nem fazer aspectos com planetas maléficos (há quem diga que aspectos positivos como trígonos e sextis são toleráveis em algum grau, mas há também a posição de quem que às vezes só de estar no mesmo signo que um maléfico já dá uma danificada nas coisas), nem conjunção com o nodo sul. O amanhecer do dia 20 de maio, então, parece ser um momento aceitável para um talismã desses, ainda que não seja ideal por conta de um sextil com Saturno e uma quadratura com a Lua. Há um texto no site do Christopher Warnock também sobre talismãs de Áries III que eu acho que vale a pena conferir também (neste link aqui).
Mas isso é só para dar um exemplo. Esses talismãs que exigem um timing muito certinho são um pesadelo de fazer, muita neurose, e esse tipo de prática é apenas uma das possibilidades do trabalho com os decanos. Como dito no parágrafo anterior, o terceiro decano de Áries é regido por Vênus, o que pode ser um tanto chocante, porque Vênus é justamente um planeta enfraquecido nos territórios de Marte. Pois é. Então: além de cada signo ter um regente clássico, há um regente para cada decano individual. O primeiro decano de Áries é regido de fato por Marte, mas depois temos o Sol, depois Vênus. É por isso que os decanos, na tradição da Golden Dawn, são chamados sempre pelo nome de planeta x no signo y: Áries I é Marte em Áries, Áries II é Sol em Áries, Áries III é Vênus em Áries.

Uma breve olhada num dos tabelões da GD revela também as associações desses decanos com os arcanos menores do tarô, respectivamente 2 de paus, 3 de paus e 4 de paus (esta última sendo uma carta tradicionalmente carregada com uma simbologia matrimonial que faz muito sentido ao se considerar sua regência venusiana). Essa simbologia é especialmente relevante para a composição das imagens do tarô Rider-Waite-Smith, segundo a taróloga Susan T. Chang. Numa entrevista ao podcast Arnemancy, ela aponta como, por exemplo, isso fica evidente em cartas como o 2 de espadas, referente ao arcano da Lua em Libra (o primeiro decano de Libra) — por isso, diz ela, há uma Lua no céu no canto da carta, e a figura vendada com as duas espadas alude à Justiça, correspondente, no esquema da GD, à letra hebraica lamed e ao signo de… Libra.
O que Coppock faz no seu livro, então, vai muito além de incluir tabelões (que de fato constam no final da obra) — ele pega toda essa riqueza de referências, desde as imagens nas obras clássicas até a simbologia do tarô, para destilar um sentido filosófico geral para cada decano, o que é muito valioso e fascinante.
Para dar um exemplo dos mais ilustrativos, eu vou falar do signo onde eu tenho o meu Sol: Sagitário.
Segundo Coppock, toda a simbologia de Sagitário gira em torno da conquista de um objetivo: Sagitário I ele compara a uma flecha (mais especificamente uma flecha envenenada), que faz parte da iconografia do signo, sendo a concentração do corpo, da mente e do espírito num único ponto, direcionado aonde a vontade mandar. Já Sagitário II equivale a uma rédea: é quando a mobilidade e velocidade do movimento anterior encontram resistência, então é preciso haver a unificação de elementos díspares (as metades humana e equina do centauro) para se manter essa força ao ser confrontado por forças opostas. Já Sagitário III é a morte do cavalo, a destruição do veículo, é a energia de quando se está muito perto do clímax de se realizar um objetivo e certos sacrifícios precisam ser ponderados para que isso seja possível.

Essa sequência é representada no tarô pelas cartas do 8 de paus (Mercúrio em Sagitário, que indica as coisas se movimentando em alta velocidade), 9 de paus (Lua em Sagitário, a pessoa numa situação de resistência) e 10 de paus (Saturno em Sagitário, a exaustão e colapso). Coppock faz isso de dedicar de 2 a 3 páginas filosofando sobre o decano e suas imagens para cada um de todos os 36 decanos. Mas espere, tem mais: ele comenta ainda como se comporta cada planeta em cada decano, tanto em termos de astrologia natal quanto em termos de magia astrológica. Os comentários são breves, claro (afinal, são 252 comentários, imagina o tédio de fazer isso tudo), mas valiosíssimos.
Vou traduzir aqui os dois parágrafos do que ele diz sobre o Mercúrio em Sagitário I, o decano de Sagitário regido por esse planeta:
Mercúrio é, no geral, considerado o regente deste decano e portanto encontra seu lar aqui. Os nativos com Mercúrio neste decano possuem opiniões contagiantes. Compreendem como motivar as outras pessoas e, se Mercúrio estiver particularmente bem posicionado, podem ser propagandistas ou vendedores natos. Sua relação com a comunicação é complicada, pois buscam as palavras e as imagems que motivam, não as que transmitem uma perspectiva equilibrada ou objetiva. Utilizam símbolos não a fim de revelar a verdade definitiva, mas para criar a unidade necessária para a rápida realização de um objetivo. O perigo para esses nativos é ser vitimado pelas mesmas meias-verdades que eles mesmos mobilizam para seus propósitos.
Sendo o seu regente tradicional, a presença de Mercúrio aqui destrava a fórmula essencial deste decano. Um ritual pode ser conduzido uma única vez para direcionar a si mesmo e outros com rapidez na direção de um dado objetivo, ao passo que um talismã permanente pode ser criado para enxertar os poderes deste decano em quem portá-lo. Nesta face, Hermes concede aos viajantes boa sorte, e portanto as suas imagens podem ser criadas para viagens rápidas e seguras.

E isso é surpreendente, porque, se nos orientarmos pelos conhecimentos mais básicos em astrologia, Mercúrio está debilitado em Sagitário. E, de fato, nos decanos de Sagitário II e Sagitário III, ele causa muita dificuldade para os nativos. O nativo de Mercúrio em Sagitário II tem boa concentração e é bom em desenvolver e defender uma ideia, mas confunde o que seriam conclusões lógicas com aquilo que chega pela via dos insights psíquicos, por isso seu desafio é aprender a separar as duas coisas (esse é o meu posicionamento natal, aliás, o que eu talvez tenha tentado contrabalancear pela via do academicismo… recebe o insight psíquico, depois vai ver quem já disse isso antes para usar como referência). Já Mercúrio em Sagitário III é bom para lidar com questões urgentes, mas é muito pessimista e exagera no drama. Em ambos os casos, esses posicionamentos são inúteis para magia de Mercúrio.
É aqui que eu acho que o livro do Coppock oferece novas possibilidades para o praticante de magia astrológica: via de regra, tentamos trabalhar com os planetas quando eles estão em signos que os favorecem, dada a lógica de domicílio e exaltação. No entanto, quando consideramos os decanos, há sim algumas opções óbvias — Marte está em sua potência mais pura em Áries I e o Sol fortíssimo em Áries II —, mas volta e meia surgem poderes inesperados. Às vezes um decano que parece completamente aleatório oferece certas possibilidades específicas e um oásis de força para um planeta que, de outro modo, estaria debilitado naquele signo. Este é o caso de Mercúrio em Sagitário I e Vênus em Áries III, como vimos; mas também Vênus em Virgem II e em Escorpião III, Mercúrio em Câncer II, Saturno em Leão I, Júpiter em Gêmeos I e em Capricórnio I, e assim por diante.
Há um ou outro decano que é praticamente inútil de modo geral — Gêmeos III, por exemplo, que é um dos mais difíceis, se destaca aqui, sendo associado à morte, o “extremo da polaridade”, a ruína de um dos irmãos (como Cástor, o irmão mortal de Pólux e Abel morto pelo irmão Caim). Saturno nesse decano pode ajudar a tomar decisões difíceis, mas ele é inútil para magia lunar, venusiana e jupiteriana. Mesmo o Sol, que rege este decano, só serve aqui para magia contemplativa, a fim de se entender a natureza dos sacrifícios que fazemos. Para Mercúrio, o regente do signo, ele melhora o julgamento, mas atrai situações em que esse julgamento se faz necessário. E Marte até pode ser usado para magia maléfica, mas causa estragos indiscriminadamente, sem foco, como uma bomba de pregos, por isso na prática é inútil. Você vê que a coisa é complicada quando nem magia maléfica dá para fazer.

No entanto, esses casos são raros, e geralmente é possível encontrar algumas aplicações, nem que sejam muito específicas. O decano Touro III, por exemplo, associado a desgraças, calamidades e penitências, oferece aos planetas (exceto Marte) o poder de se proteger contra desastres (Lua, Júpiter, Saturno), de ter a presciência necessária para evitá-los (Mercúrio, Sol) ou de ser capaz de manter a graça mesmo ao passar por tribulações (i.e. não descer do salto). A Lua em Libra I tem o poder de trazer paz, tranquilidade e harmonia (esse é o sentido do arcano de 2 de espadas no Tarô de Thoth, aliás, intitulado Peace), apesar de ser inútil em Libra II e III. Marte é bizarramente forte em Peixes II e III, sendo respectivamente útil para trabalhos de dissimulação e camuflagem ou para saciar seus desejos. Saturno em Áries I pode ajudar a acelerar processos kármicos (mas depois segura o rojão!), Mercúrio em Touro I ajuda a criar planos eficazes para multiplicar a riqueza, e Vênus em Gêmeos II ajuda a aliviar conflitos internos, facilitar a passagem pelo mundo social e ter revelações sobre a arte da comunicação estética. A Lua em Escorpião I, II e III, na minguante, é útil para se livrar – respectivamente – de desejos, parcerias e complexos emocionais prejudiciais, ao passo que o Sol em Escorpião II suscita e fortalece relações mutuamente satisfatórias.
Como se pode ver, todo um novo mundo de possibilidades se abre com os decanos, tanto para a magia imagética centrada nos decanos em si quanto no poder dos planetas em sua passagem por cada uma dessas 36 faces zodiacais. Apesar de eu ainda não ter experimentado pessoalmente esse trabalho, ele aponta para uma direção que eu pretendo explorar ao longo dos próximos meses (e quem sabe chegar a oferecer uma fórmula para os meus alunos).
E agora é torcer para reeditarem o 36 Faces!