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Quando magistas enlouquecem

Quando magistas enlouquecem

Leitura em 13 min
Fonte: O Zigurate

Talvez você já tenha presenciado esse acontecimento: tudo começa com um praticante de magia, ou de alguma disciplina espiritual num sentido mais amplo, que parece ser uma figura respeitável, gentil1, que sabe do que está falando, com quem você já aprendeu muita coisa. Porém, em algum momento, vira-se uma chave e o comportamento dessa pessoa passa a ficar meio… errático. Surgem uns comentários meio suspeitos online, umas opiniões esquisitas, uns boatos, paranoias, umas práticas mágicas meio inconsistentes (com muita vela preta, com frequência). Quando você vê, as redes sociais dela viraram uma filial do 4chan/WhatsApp, e é fake news atrás de fake news, conspirações, bobagem estilo QAnon, discurso antivacina, conversas delirantes. Às vezes rola um surto psicótico real com mensagens desconexas, e não é raro a pessoa jogar tudo para o alto no fim e se converter para alguma religião hiperconservadora que não tinha nada a ver com o que ela fazia antes. É bem triste de acompanhar. E, não, eu não vou dar exemplos por nome.

Aqui em casa, quando observamos isso acontecer com alguém, a gente diz que a pessoa “espanou”. Não sei bem quando comecei a usar esse termo, mas a metáfora no caso é com a do parafuso espanado, o parafuso cuja cabeça foi danificada por uso excessivo ou aplicação incorreta e aí ficou preso, causando uma dor de cabeça sem fim. Temos muitas metáforas aqui, por isso peço que já comecem a se acostumar desde já.

Tem um pessoal que não dá muita moral para os perigos de enlouquecer via magia, que acha que é exagero ou que bota tudo na conta de condições preexistentes, mas eu acredito que os casos sejam comuns demais para a gente ignorar. Como eu recebi muitas perguntas sobre isso no meu Curious Cat, imaginei que valia a pena tratar do assunto mais a fundo, com a seriedade que ele merece e sem as limitações de caracteres da plataforma. E, vamos lá, então.

Arte do sábio Rabi Akiva, o único que, segundo a lenda, viu o paraíso e não morreu, nem surtou.

Primeiramente, o que dificulta falarmos desse assunto é o fato de que, olhando de fora, no nosso contexto moderno, a magia já parece loucura por si só – “ah, porque eu conversei com uma consciência invisível que se manifestou como uma voz na minha cabeça e ela me falou para eu pegar um ovo às 3 da manhã e jogar num rio”. Tipo, putz, quer dizer que dá para ficar mais louco do que isso? Sim, dá. Porque, se a gente for pegar uma definição comum de transtorno como “sintomas que causam sofrimento e prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas da vida”, não tem nada de transtornado na prática de magia, mesmo que ela inclua atos aparentemente irracionais, como você ir jogar um ovo no rio às 3 da manhã, porque o espírito falou, ou ficar 3 horas em jejum rezando e mantrando e gastando dinheiro com vela e incenso, etc. Sim, essas coisas podem parecer estranhas para quem olha de fora, mas isso vale para qualquer prática religiosa também, afinal a linha que separa a magia da religião é muito tênue, e embora tenha um pessoal que olhe para isso com uma perspectiva patologizante (com um discurso tipo “religião é esquizofrenia”), geralmente é uma gente muito tapada, que nunca conseguiu superar o positivismo do século XIX e que entraria numa crise profunda se pusesse o pé num terreiro. Enfim, não é por aí o caminho. Estranhos, todos nós somos.

Acho mais produtivo pensarmos a coisa dentro do contexto dos praticantes de tradições espirituais propriamente. E aí encontramos um exemplo famoso na lenda judaica do Pardes. O que é o Pardes? Pardes é hebraico para “paraíso”, e a palavra chega no idioma por via do persa2. Segundo uma lenda dos séculos I-II d.C., uma época em que a cena mística do Oriente Próximo estava agitadíssima, repleta de místicos, milagreiros e messias, quatro rabis teriam conseguido ascender até o Paraíso e enxergar a face de Deus. Então, como resume Gershom Scholem, em A Cabala e seu simbolismo:

Os quatro, é dito, tinham “entrado no paraíso”. Foram eles os Rabis Akiva, Ben Zoma, Ben Azai e Aher. “Um deles viu e morreu; o segundo viu e perdeu a razão; o terceiro devastou as plantas novas (quer dizer: tornou-se um apóstata e desencaminhou os jovens). Só Rabi Akiva entrou em paz e saiu em paz”

Aher (“o outro”) se refere ao Rabi Elisha ben Abuyah, que teria visto o anjo Metatron na companhia de Deus e entendido que Deus era dois, o que o levou à apostasia e a “desencaminhar os jovens”, por isso seu nome foi apagado (meio como as pessoas fazem quando terminam relacionamentos e chamam o ex de “o falecido”). Mas olha que interessante: 4 sábios entram no Paraíso, o que era o objetivo final das práticas de misticismo judaico comuns da época, onde têm a visão de Deus. Mas apenas Rabi Akiva, que tinha esse grau máximo de desenvolvimento espiritual, segura o rojão. Dos outros três, todos espanaram: um morre na hora, um enlouquece e o outro comete apostasia.

A ideia do perigo de se ter contato direto com forças divinas é um conceito bem comum, que inclusive consta na Torá: “Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum verá a minha face, e viverá” (Êxodo 33:20). Na mitologia grega, um paralelo aparece no mito de Sêmele, que foi a princesa mortal com quem Zeus teve um caso com e que, ao pedir para vê-lo em toda a sua glória, pegou fogo na hora e foi consumida. Como diz o poeta T. S. Eliot, “human kind cannot bear very much reality” – e que dirá a realidade definitiva que são as forças divinas e cósmicas por trás da criação.

Porém, aqui ainda estamos falando em termos exotéricos. Para a maior parte das pessoas, de fato, o melhor é não mexer muito com isso, e essa é a moral dessas histórias. Mas o místico é aquele que almeja, mais do que tudo na vida, ter esse contato mais direto com o divino. E por esse motivo, o que muito das práticas espirituais vão fazer vai ser preparar o praticante para suportar esse contato, para ser capaz de penetrar em camadas cada vez mais e mais profundas dos reinos espirituais. É óbvio que isso não acontece da noite para o dia, e mais uma vez eu retomo a analogia com o corpo físico: se você quiser correr uma maratona sem preparação, sua experiência será péssima. É preciso treinar, pegar condicionamento, desenvolver seus músculos. E isso você faz por via da rotina de exercícios.

Quem trata muito dessas questões em seus vídeos é o Master Stephen Co, da Cura Prânica. De fato poderíamos falar em algo como uma “hipertrofia dos corpo energéticos”, uma maromba espiritual, por assim dizer. Quanto mais você fizer os seus exercícios mágicos – sejam eles uma rotina da Meditação dos Corações Gêmeos, de RmP e Pilar Médio ou equivalentes, de Qi Gong ou Raja Yoga –, mais a sua aura e os seus chakras vão se tornar maiores e mais fortes, o que possibilita um trabalho cada vez mais intenso, com uma passagem cada vez maior de energia divina. Em termos de práticas de magia, como a conjuração de espíritos ou realização de feitiços e criação de talismãs, esse desenvolvimento confere uma proteção, uma força e uma autoridade que amplificam os resultados e permitem um contato mais tranquilo com entidades cada vez mais poderosas. Sem esse preparo, de duas uma: ou a tentativa de trabalhar com essas entidades simplesmente não funciona e nada acontece ou dá muito ruim. É o caso em que o melhor resultado é quando não acontece nada.

A imagem que o Scott Stenwick usa para ilustrar o seu texto sobre “a Travessia do Abismo” de Da’ath no sistema cabalístico da Golden Dawn

Nas tradições espirituais em que se tem a figura do guru – e o Master Co explica isso em algumas de suas palestras – quem é o responsável por proteger os neófitos de ter esse contato perigoso com forças muito poderosas é o guru. É ele quem faz o trabalho de regular a descida dessa energia divina. Para usar uma outra metáfora, a da rede elétrica, ele é como se fosse um transformador que vai pegar um fio de alta tensão da rua e reduzir essa tensão para que você possa plugar a sua TV em segurança. No Ocidente, porém, dado o fato de que nossas tradições mágicas são tradições fragmentadas, não existe mais essa coisa de linhagem (o mais parecido com isso é a questão da linhagem apostólica entre bispos), e os sistemas mágicos mais equilibrados vão ter outras travas de segurança para evitar que o neófito frite3.

No sistema da Golden Dawn, por exemplo, não era à toa que os neófitos ficavam um ano inteiro só fazendo o RmP e o Pilar Médio, porque era o trabalho preparatório, a piscina infantil (na qual não tem como se afogar), antes de começar as práticas de ascensão pelas 10 sefiroth da Árvore da Vida, que é o mapa usado nessa tradição: você começa ali em Malkut, faz suas meditações, pathworkings, rituais e aí vai subindo. O Scott Stenwick, que é membro da OTO e escreve no blog Ananael, tem uma série de posts sobre esse caminho iniciático (link aqui), começando com os elementos e aí depois fazendo o caminho de Malkut para Yesod, depois Hod, Netzach, e assim por diante. O livro da Nema, Maat Magick, também segue esse mesmo roteiro. A ideia é que você vá trabalhando direitinho cada etapa, a fim de eliminar possíveis desequilíbrios internos (o que também vale para o sistema do Bardon, que põe o processo de autoconhecimento, o “espelho da alma”, como o primeiríssimo passo) antes de avançar, de modo que o seu caminho seja seguro. Ou, pelo menos, é assim até se chegar na infame “Travessia do Abismo”, que é o momento de vai-ou-racha. Já outras práticas podem não ter essas travas de segurança… e a magia qlifótica, por exemplo, é famosa por jogar os seus neófitos direto em batismos de fogo, sem mecanismos de proteção, sem bicicleta de rodinha, sem passar por essa alquimia interna e piscininha infantil antes de ser jogado em alto mar no meio de uma tempestade. Pois é, estou usando mais outra metáfora.

Há casos também de imperícia – a Maíra sempre me conta de um lugar no Rio de Janeiro de onde ela viu sair um monte de gente em estado praticamente vegetativo por conta de Kundalini-Yoga mal conduzida. Mas, no exemplo qlifótico, embora possa ser sim um defeito na construção do sistema, eu prefiro entender como parte da filosofia deles mesmo – é feature, não bug. Aquela coisa extrema, meio treinamento de Cavaleiros do Zodíaco, sabe? Joga as pessoas lá e elas que se virem, sobrevivência do mais apto e tudo o mais (tem um pessoal da mão esquerda que adora isso). Por isso eu sempre reitero: quer trabalhar com a mão esquerda, pegue experiência antes e tenha certeza que você tem cu pra isso, porque muita gente romantiza a coisa, chega despreparado e depois a vida delas desmorona.

Simon/Ice King, o Rei Gelado, de Adventure Time. Um belo e trágico exemplo ficcional de alguém que ficou louco com magia.

Em resumo: entendo que uma das causas mais comuns de magistas que espanam é por terem tido contato antes da hora com forças com as quais não estavam preparados. Mas existe também a possibilidade de ter havido um desequilíbrio no desenvolvimento energético. Conforme você se torna mais forte, é necessário um trabalho interno condizente de refinamento da personalidade, porque senão os seus defeitos crescem de tamanho proporcionalmente com a sua força. E é aí que está o perigo. Alguém que tenha uma tendência à raiva, a ser um pequeno tirano, ou um apetite sexual exagerado ou seja ganancioso vai ter muita dificuldade de controlar essas coisas se não começar a tratar disso logo no começo do seu caminho. E é aquilo, né, nossos hábitos determinam nossa companhia espiritual. Um sujeito muito forte, com muita energia, e muito desequilibrado, vai atrair entidades com esse mesmo grau de força e essas mesmas tendências, e depois de um ponto fica difícil demais remediar – até porque a pessoa, nesse estágio, não vai dar ouvidos aos outros. E, bom frisar, se você tem algum transtorno psicológico diagnosticado, é importantíssimo estar sob tratamento. Tudo que uma pessoa bipolar não precisa é uma reserva adicional de energia durante uma fase de mania. Mas mesmo que não tenha nada, fica aí a minha dica de faça terapia.

Como se pode evitar espanar? Bem, se existisse uma resposta fácil, não seria um problema tão recorrente. Mas, embora isso possa soar meio engraçado, acredito que a humildade seja o primeiro passo. Se uma prática é reconhecida por praticantes experientes como perigosa, que exige várias medidas de proteção para ser realizada em segurança, o que é que você ganha indo fazer aquilo de qualquer jeito, enquanto ainda mal saiu das fraldas? Eu imagino que todo mundo tenha em algum grau aquele delírio egoico de achar que, ao fazer algo pela primeira vez, vai se descobrir um talento nato naquilo. Em outras áreas esse delírio tem vida curta, mas na magia é fácil se iludir. Eu chamo isso de “síndrome de Harry Potter”. A pessoa que nunca fez magia na vida, mas acha que já pode sair conjurando o rei Belial ou outro capetão com base em porra nenhuma além de um sentimento delirante de ser naturalmente especial. Você com certeza já deve ter cruzado com alguém assim no meio ocultista. O melhor resultado nesses casos é quando nada acontece.

No mais, o mais importante é não estar sozinho na sua jornada. Tenha alguém que saiba o que você faz, que te acompanhe e que manje também, que possa falar na sua cara quando você estiver fazendo cagada, especialmente se você estiver praticando coisas mais avançadas. Como disse, enquanto se está na piscina das crianças, é difícil se afogar… praticar limpezas, rituais simples de rotina, usar oráculos e fazer uns feitiços ocasionais não deve levar alguém a espanar (exceto se estiver usando oráculos e fazendo feitiços para os outros sem o devido preparo… aí é perigoso mesmo, especialmente se tiver magia maléfica envolvida). Mas, para qualquer prática mais intensa – e aqui é bom frisar que dá para ter uma vida espiritual mais tranquila, a maioria das pessoas não precisa partir para esse lado da coisa –, é bom tomar todo o cuidado do mundo e prestar muita atenção… não importa se essa prática é a meditação do Abulafia que eu postei aqui um tempo atrás, Kundalini-Yoga, a evocação de entidades densas como Goécia ou algum trabalho de magia experimental. Tenho dois textos já no site sobre avaliação de sinais (aqui e aqui), aliás. Tenha suas práticas de limpeza, pratique o autoconhecimento e fique de olho caso observe que seus pensamentos, seu comportamento e seus arredores estão alterados de alguma forma incômoda. Ao menor sinal de que alguma coisa está errada, pare tudo que está fazendo (menos as práticas de limpeza), dê um tempo e observe. Orai e vigiai, como dizem. E, assim como acontece com o perigo de cair em seitas, não pense que você é especial demais que isso não possa acontecer com você.

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  1. Neste texto, não vamos tratar do fenômeno do magista que já era pilantra ou mau caráter desde o começo. Esses têm mais é que se foder mesmo. ↩︎
  2. A palavra persa também deu no grego parádeisos e ao nosso “paraíso”. Na scholarship bíblica, usa-se a presença de vocábulos como pardes em textos como o Cântico dos Cânticos para datar os livros. ↩︎
  3. No caso do sistema místico da tradição Hekhalot/Merkava, do qual deriva a narrativa do Pardes de que falamos, por ser uma prática INTENSA e destinada a um público avançado, é compreensível que não tenha muitas travas de segurança. Você vai se esgueirar pelos palácios de Deus por sua própria conta e risco. ↩︎
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