Um hino ao deus Nergal, senhor do submundo
No momento, Marte se encontra exaltado no céu, em seu signo de Capricórnio1. Por esse motivo, achei que seria uma boa ocasião para compartilhar esse material dedicado ao deus marcial do panteão mesopotâmico, o temido Nergal2. Como já comentei antes, em outras ocasiões, a relação entre os sete planetas clássicos e um grupo de sete deuses mesopotâmicos já era traçada desde a Antiguidade, de modo que as atividades do planeta vermelho acabaram associadas a esse deus – o que, como veremos, faz bastante sentido para quem sabe um pouco de astrologia.
Confesso que eu hesitei em fazer essa publicação, justamente pelo caráter destrutivo de Nergal. No entanto, os deuses são multifacetados e, apesar de suas associações com a guerra, a pestilência e o submundo, Nergal também era invocado para proteção e para exorcismo (e, bem, nesse caso, às vezes a gente precisa de fato recorrer a uma entidade porradeira). Seu culto, no mais, era muito popular em toda a Mesopotâmia.
Há muitos deuses guerreiros no panteão: além de Inana/Ishtar, havia também Ninurta, mas Nergal parece ser o mais violento. Ninurta aparece como um tipo de deus agrícola civilizador (ele também prepara a terra e cava canais de irrigação), e sua dimensão bélica é voltada sobretudo para a destruição de monstros, como o Anzû. Já Inana, como comentamos aqui anteriormente, parecia ter algo a ver com princípios vitais, e aí esse seu caráter por vezes violento viria como uma explosão, um transbordamento de energia. Ela também era famosamente imprevisível. Nergal, por sua vez, parece estar associado mais propriamente à destruição e à morte matada por si só, daí que ele seja o deus não só da guerra, mas também da pestilência. Mas, assim como Ishtar, com sua passagem pelo submundo, ele é um deus, ao mesmo tempo, ctônico e celestial.
Como comenta Ulla Koch-Westenholz, em Mesopotamian Astrology, o planeta Marte possuía muitos nomes. Em acadiano, o mais comum em contextos astrológicos era ṣalbatānu, de etimologia obscura, mas havia vários apelidos bem coloridos: šanûmma (“diferente/hostil”), nakru (“inimigo”), sarru (“mentiroso”), lemnu (“maligno”), aḫû (“estranho”), kakkab lā minâti (“o astro incalculável) e muštabarrû mūtānu (“o que constantemente traz a pestilência”), além de udu.idim sa (“planeta vermelho”) em sumério. Em alguns momentos, o astro é chamado pelo nome do deus – inclusive, os mandeus até hoje se referem a ele pelo nome Nirig, derivado de Nergal. Sendo ele o responsável pelos poderes desse planeta, faria todo o sentido invocá-lo para mitigar os seus efeitos nocivos, e era o que acontecia, pelo visto. Koch-Westenholz lista alguns manuais e relatórios (LAS 334, SAA 8 82, LAS 149, LAS 233, SAA 8 53) que recomendam realizar as práticas de namburbi (ritual contra maus presságios), eršaḫunga (prece penitencial) e šu-illa (a prece do erguer das mãos) especialmente quando Marte se aproximava da constelação de Áries e de Escorpião, da estrela Spica, e em caso de conjunções com o outro planeta maléfico, Saturno – sinais de perigo de pragas, escassez e violência.

Originalmente, ao que tudo indica, parece que Nergal era um deus sumério, filho de Enlil e associado ao Sol em seus aspectos mais destrutivos (há um texto interessante explorando a relação entre Nergal e o deus solar Shamash/Utu neste link aqui). Em algum momento, ele foi sincretizado com outra deidade próxima, o guerreiro Erra, protagonista de um épico bastante curioso intitulado A Fúria de Erra, do século VIII a.C. Nesse poema, o deus destrói a Babilônia, aparentemente sem nenhum motivo… mas antes ele precisa tirar Marduk da jogada, pois Marduk é o protetor da cidade. E ele faz isso por meio de um estratagema hilário: Erra convence Marduk de que suas roupas estão muito vagabundas, indignas de um deus tão poderoso, e quando ele sai para arranjar roupas novas, a cidade fica desprotegida. Juro para vocês.
Nergal, no entanto, não fica conhecido como inimigo de Marduk, nem nada do tipo. Inclusive, no processo de formação de um henoteísmo mardukista, Nergal passa a ser visto como mais um aspecto do deus, “Nergal é o Marduk da guerra”, como se lê em outro texto. É complexo.
Num outro mito, conhecido como “Nergal e Ereshkigal” e registrado em tabuletas de Amarna, no Egito, e Sultantepe, Turquia, essas duas deidades ctônicas são unidas em santo matrimônio. Ereshkigal, irmã de Ishtar, é a rainha do mundo dos mortos, que, em outros mitos, reina triste e solitária – por isso faria muito sentido que, se ela fosse arranjar um marido, seria um deus casca-grossa como Nergal. Há muitos estudos sobre esse mito, e uma das leituras possíveis é a de que ele funcionaria como uma harmonização entre duas tradições: uma tradição do sul da Mesopotâmia, na qual Ereshkigal era essa rainha solitária, e outra do norte, em que Nergal era o deus do submundo, “Senhor da Grande Cidade”, como é uma das interpretações de seu nome em sumério, EN-ERI-GAL. E, assim, como quem junta um casal que tem tudo a ver, os dois acabaram unidos, e esse poema narra como foi que isso aconteceu (com muito sexo e violência, claro). Mais sobre esse assunto no artigo de Alhena Gadotti, “Never Truly Hers: Ereškigal’s Dowry and the Rulership of the Netherworld”.
Uma das representações mais interessantes que temos do deus, a meu ver, é a da imagem que eu escolhi para ilustrar este texto, um relevo encontrado em Hatra, de um dos maiores sítios arqueológicos do Império Parta. Nele, Nergal aparece com um cão de três cabeças, o que qualquer um com alguma familiaridade com mitologia grega vai reconhecer como Cérbero, o cão de Hades. É possível que Nergal tivesse sido sincretizado com Hércules (também associado a Ninurta), mas essa associação ainda é motivo de debate entre os pesquisadores.
No mais, há uma menção a Nergal também na Bíblia Hebraica, em 2 Reis 17:30, listado como o ídolo da cidade de Cuta (hoje Tell Ibrahim). Por esse motivo, ele também estimulou a imaginação de demonologistas como o pobre coitado do Charles Berbiguier, autor do delirante Les Farfadets, que o descreve com o título deliciosamente absurdo de “chefe da polícia secreta” no inferno – uma bobagem repetida no famoso Dictionnaire Infernal de Collin de Plancy e no Book of Black Magic and of Pacts, de A. E. Waite. Eu reitero, no entanto, que eu obviamente não partilho dessa visão demonizante e me engajo com o panteão mesopotâmico enquanto divindades.
O texto que eu compartilho com vocês é mais um shu-illa, uma “prece do erguer das mãos”, que tipicamente era estruturada de modo a conter um trecho inicial de louvor ao deus, listando seus vários atributos notáveis, as petições do devoto (no caso, pedindo para que seja aplacada a fúria de Nergal e outros deuses que estejam furiosos com o suplicante) e um encerramento com a fórmula recorrente de “então eu cantarei teus louvores”. Vocês vão observar que ele aparece aqui como um deus mais “tranquilo” do que na mitologia e descrito como misericordioso, etc… o que eu acho que faz sentido num contexto retórico de tentar obter os favores do deus. O texto foi traduzido e comentado pelo grande Tzvi Abusch e se encontra, assim como todos os outros que eu venho citando aqui, no livro Reading Akkadian Prayers and Hymns: an Introduction, editado e organizado por Alan Lenzi para a Society of Biblical Literature, uma leitura que eu recomendo, de novo, para todos os interessados neste assunto. O livro contém o texto em cuneiforme, sua transcrição, o texto normalizado e a tradução para o inglês. A transcrição marca o valor, sinal por sinal, de cada caractere, que pode ser fonético ou não, por isso só é de interesse para os acadêmicos da área. Sendo assim, eu copio abaixo apenas o texto normalizado, já plenamente pronunciável (logo mais eu gravo um áudio com a pronúncia para o canal do Telegram). A tradução é de minha autoria e, neste caso, não tem maiores propósitos poéticos ou acadêmicos, sendo apenas para ajudar na compreensão.
Shu-illa a Nergal
bēlu gašru tizqāru bukur Nunamnir
ašarēd Anunnakkī bēl tamḫāri
ilitti Kutušar šarrati rabīti
Nergal kaškaš ilī narām Ninmena
šūpâta ina šamê ellūti šaqu manzāzka
rabâta ina arallî māḫira lā tīšu
itti Ea ina puḫur ilī milikka šūtur
itti Sîn ina šamê tašeʾʾi gimri
iddikkā-ma Ellil abūka ṣalmāt qaqqadi puḫur napišti
būl Šakkan nammaššê qātukka ipqid
anāku annanna mār annanna aradka
šibsāt ili u ištari iššaknūnim-ma
ṣītu u ḫuluqqû ibbašû ina bītīya
qabû u lā šemû iddalpūninni
aššum gammalāta bēlī Nergal assaḫur ilūtka
aššum tayyārāta ešteʾēka
aššum rēmēnêta attaziz maḫarka
aššum muppalsāta ātamar pānīka
kīniš naplisannī-ma šime teslītu
aggu libbaka linūḫa
puṭur annī ḫiṭītī gillatī
kiṣir libbi ilūtīka rabīti … lippašir
zenûtu šabsūtu kitmulūtu lislim ittīya
narbīka lušāpi dalīlīka ludlul
(tradução)
Senhor poderoso, exaltado filho de Nunamnir,
Proeminente entre os Anuna, senhor da batalha,
Descendente de Kutushar, a grande rainha,
Nergal, poderoso entre os deuses, amado de Ninmenna.
Tu te manifestas nos céus radiantes, tua posição é exaltada,
Tu és grandioso no submundo, não tens rival.
Junto com Ea, teu conselho prevalece na assembleia dos deuses.
Junto com Sîn, tu observas tudo nos céus.
Enlil, teu pai, entregou-te o povo da cabeça preta [os sumérios], todos os seres vivos
E todo gado, as criaturas – às tuas mãos ele as confiou.
Eu sou ______, filho de _____, teu servo
A fúria do meu deus e minha deusa me atravessam
De modo que perdas e prejuízos recaíram sobre mim
Dou ordens e ninguém me escuta, não tenho dormido.
Porque tu és clemente, meu senhor, eu me voltei à tua divindade,
Porque tu és compassivo, eu busquei a ti,
Porque tu és misericordioso, eu estou diante de ti,
Porque tu tens boa vontade, eu olhei o teu o rosto.
Olha para mim com boa vontade e ouve minha súplica,
Que o teu coração furioso se acalme para comigo,
Perdoa meu crime, meu pecado, meu delito,
Que a indignação de tua grande divindade seja aplacada para mim,
Que o deus e a deusa coléricos e irados se reconciliem comigo.
E então eu declararei teus grandes feitos e cantarei teu louvor.
Glosa linguística: o texto em acadiano utiliza as marcações acadêmicas:
- as vogais com macrons, ā, ē, ī, ū, indicam vogais longas;
- o “s” com um diacrítico em cima, š, é um som chiado, como o shin hebraico, nosso “ch” ou o “s” de final de sílaba de carioca;
- o “h” com um diacrítico embaixo, ḫ, é um som gutural, como o “ch” alemão em Bach, equivalente ao chet hebraico;
- o “s” com um diacrítico embaixo, ṣ, é o “s” enfático, como o tsade hebraico, que costuma ser pronunciado como “ts” ou “tz” (tipo “putz”);
- e, por fim, o “t” com um diacrítico embaixo, t, é o “t” enfático também, como o tet hebraico, mas este é o tipo de som que apenas quem tem muita familiaridade (ou que de fato é nativo) com línguas semíticas consegue reconhecer e pronunciar direito.

Para quem tem interesse no trabalho prático com Nergal, seja como parte de um roteiro devocional ou para trabalhar com esse seu aspecto astrológico, recomendo usar esse hino junto com uma imagem do deus ou seu símbolo, que é um tipo de arma, um cetro com cabeças de leão (acima). Seu número é o 14 e, como todas as deidades mesopotâmicas, oferendas de incenso, cerveja, pão e farinha são sempre bem-vindas. Porém, apesar de tudo que vimos aqui, ele é ainda assim um deus porradeiro, por isso recomendo cautela.
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