Esoverso
Um hino a Shamash, deus do Sol

Um hino a Shamash, deus do Sol

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Fonte: O Zigurate

O nome para o Sol costuma ser bastante parecido na maioria das línguas semíticas: fala-se shams em árabe, shemesh em hebraico e shemsha em aramaico siríaco, por conta de uma raiz comum, shin-mem-shin, que origina todas essas palavras e tem a ver com o Sol. E assim, em acadiano, sendo também uma língua semítica (ainda que um tantinho apartada do hebraico), o Sol se diz shamash, que é também como se chama o deus responsável pelo astro rei – mas aí é com maíuscula no nosso alfabeto, Shamash, ou usando o determinativo divino (𒀭) em cuneiforme. Seu equivalente sumério é o deus Utu.

Como o deus solar e uma das figuras mais importantes do panteão, Utu/Shamash acumula uma série de funções, todas ligadas ao seu papel cósmico. Por conta da lógica de que o Sol é quem traz a luz, ele é o deus responsável pela verdade e pela justiça (personificados como Mishar e Kittu, seus filhos), sendo representado muitas vezes como um deus juiz. Ele expõe tudo às claras e nada escapa do seu olhar – como veremos no hino de hoje, mesmo uma tabuleta lacrada lhe é visível. Em textos jurídicos, Shamash é muitas vezes citado como testemunha, num exemplo divertido do modo como religião, magia e burocracia se cruzavam na Babilônia. E, por conta dessa capacidade de visão, ele também é invocado em preces divinatórias, uma característica que partilha com Apolo, no panteão grego, em termos de divindades solares (ainda que, em boa parte das tradições mágicas posteriores, práticas divinatórias sejam mais domínio da Lua).

Outra propriedade do Sol é dissipar a escuridão e, com ela, os seres trevosos – alguns demônios, como os utukku, inclusive, eram compreendidos como seres de pura sombra, de uma escuridão impenetrável e sem feições (como consta neste artigo do Wiggerman). Por isso, faz sentido ainda a sua função como um deus exorcista, invocado ao lado de Marduk e Ea nas preces para expulsar espíritos malignos. Mas, talvez inesperadamente, Shamash era invocado também em rituais de necromancia, como eu fiquei sabendo na entrevista recente do historiador Irving Finkel ao podcast Glitch Bottle (no episódio The First Ghosts, que eu recomendo demais). É uma atribuição um tanta estranha (necromancia é sempre um assunto delicado), mas que faz sentido quando pensamos que o Sol também tem uma dimensão ctônica. Afinal, metade dos nossos dias ele passa no submundo, segundo as cosmologias tradicionais

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Baixo-relevo do século IX a.C., encontrado em Sippar, hoje situado na British Library, representando o rei Nabu-apla-iddina diante de Shamash.

Na mitologia mesopotâmica, Shamash/Utu era entendido como o filho de Sîn/Nana, o deus lunar (o que eu sempre achei uma inversão de expectativa interessante), com sua esposa Ningal ou Nikkal. Em termos numéricos, como Sîn está associado ao número 30 (mais ou menos o número de dias em um mês), Shamash equivale ao 20, e por vezes era usado o numeral em vez do nome do deus para se referir a ele, especialmente nos textos assírios. Sua irmã é Inana/Ishtar, e as três divindades costumam aparecer juntas, com seus respectivos símbolos: a crescente lunar de Sîn, a estrela de oito pontas de Ishtar e o disco solar (na forma de uma cruz com raios emanando das diagonais). Na imagem acima dá para ver direitinho, tanto o símbolo de Shamash no centro do relevo quanto os símbolos dos três deuses, mais acima, no cantinho do lado da coluna.

Sua esposa é Aya, a deusa da aurora, uma divindade menor no geral, mas que por vezes fazia o papel de intercessora nas súplicas dos devotos ao deus. Juntos, os dois geram Bunene, um deus menor que é o condutor da carruagem solar. No Épico de Gilgamesh, Shamash tem um papel importante, sendo o deus a quem o protagonista costuma rezar. Ele intervém em seu favor na batalha contra Humbaba e é a ele que é dedicado o coração arrancado do Touro dos Céus, morto por Gilgamesh e Enkidu. Depois, na jornada que ele empreende até os jardins paradisíacos nos confins da terra e morada de Utnapishtim, Gilgamesh precisa passar por um túnel sob as montanhas que é o caminho do Sol, um trajeto que só pode ser completado na completa escuridão, pois se o Sol o alcançasse, ele morreria.

A lua nova de hoje sinaliza a mudança de mês no calendário judaico, com o começo de Tishrei, anunciando a segunda metade do ano, que é comemorada com o festival de ano novo, o Rosh Hashaná. O equivalente babilônico seria o mês de Tishritum. É curioso que, em termos astrológicos, esse é o período em que o Sol passa por Libra, o signo de queda do Sol (pois é oposto à sua exaltação em Áries)… no entanto, Tishritum é o mês sagrado ao deus Shamash. A doutrina das dignidades astrológicas é, até onde se sabe, muito posterior ao período mais clássico da civilização mesopotâmica em que essas tradições foram firmadas, mas não deixa de ser uma ocorrência intrigante.

Mais uma vez, o que vamos ver agora é mais um shu-illa, uma prece do erguer das mãos, como vimos com outros deuses aqui no site (até agora Marduk, Ea, Gula, Ishtar, Sîn). O original se encontra, de novo, no volume Reading Akkadian Prayers and Hymns: an Introduction, editado e organizado por Alan Lenzi para a Society of Biblical Literature. O livro contém o texto em cuneiforme, sua transcrição, o texto normalizado e a tradução para o inglês, apresentado sob o título “A Shuilla: Shamash 1”, por Duane Smith (p. 367), que também fornece comentários valiosos. A transcrição marca o valor, sinal por sinal, de cada caractere, que pode ser fonético ou não, por isso só é de interesse para os acadêmicos da área. Sendo assim, eu copio abaixo apenas o texto normalizado, já plenamente pronunciável. A tradução é de minha autoria e não tem maiores propósitos poéticos ou acadêmicos, sendo apenas para ajudar na compreensão.

Como os outros textos do tipo que vimos, este shu-illa segue uma fórmula bem comum: há uma abertura com a invocação do deus, chamado por vários nomes e epítetos, com uma lista de algumas de suas características, depois um lamento da parte do suplicante, antes de virem os pedidos. Por fim, o hino se encerra com louvores ao deus. Acho que não tem muita coisa para explicarmos aqui: há uma menção à esposa de Shamash, Aya, e seus filhos Bunene, Mishar e Kittu, que já comentamos. Seu pai, Sîn, é citado no primeiro verso por um de seus nomes poéticos, Namraṣīt, “aquele que reluz”. Tem um detalhe divertido que é num dos versos finais. Onde eu traduzi “Que Aya, tua amada esposa, te saúde” a tradução mais literal seria “Que Aya… te diga ‘paz'” – šilim, um possível cognato com o shalom hebraico, aparentemente também usado como saudação em acadiano.

Para quem pretende usar este hino para contato com o deus, o mês que se inicia agora é um bom momento para isso – lembrando que divindades babilônicas costumavam receber oferendas de farinha, pão, incenso e cerveja. Tem um trecho um tanto estranho e específico no meio, onde o suplicante se apresenta (“Eu sou Aplutu”) e lista coisas estranhas que lhe aconteceram, que você pode substituir pelo seu nome ou omitir, junto com os versos seguintes. Por esse motivo, esse trecho está entre parênteses. Só é importante frisar que este é um bom mês para contato com o deus, mas não para magia solar nos termos de magia astrológica. Para quem quiser recorrer às forças do Sol para rituais de manifestação, seria conveniente primeiro usar esse mês para fazer essa aproximação e depois aproveitar o período do segundo decano de Escorpião, onde o Sol tem mais dignidade, para isso.

Shu-illa a Shamash

surbû gitmālu apil Namraṣīt
nūru eddēššû pētû pān nišī mukallim nūra
Šamaš muštēšir mīti u balāṭi bār kal mimma šumšu
Šamaš nūr šamê u erṣetim šarūr mātāti
bēl Sippar ṣulūl E-babbar
talīm Marduk tuklat Bābili
ana nūrīka upaqqā tenīšētum
ana qibītīka utaqqû ilū Igigî
nišī rapšati ṣalmát qaqqadi idallalа̄ qurdika
eṭlu ēda tappâ tušarši
ana lа̄ išari tanamdin aplu
edlūti sikkūr šamê tupatti
ana lа̄ naṭili tašakkan nuru
ṭuppa arma lā petâ tašassi
ina libbi immeri tašaṭṭar šīra tašakkan dīna
dayyān ilī bēl Igigî
Šamaš bēl šīmat māti attā-ma
(anāku Aplūtu mār ilīšu
ša ilšu Sîn ištaršu Nikkal
siḫilti šīri šaknam-ma irteneddanni
ina lumun mimma ḫuṣāb narkabtīya ša iššebru
ina lumun kulbābī sāmūti ša ina bītīya innamru)
ina lumun idāti ittāti lemnēti lā ṭābāti
ša ina bītīya ibšâ ana pānīya ipparkā
palḫāku adrāku u šutādurāku
šīmtī šīm alaktī dummiq
līširā idātūya
lidmiqā šunātūya
šunat aṭṭula ana damqāti šukna
išariš lullik tappê lukšud
ša ūmīya lū damqāti
šutlimam-ma egirrê dumqi
ina sūqi lū magir qabûya
ilu u šarru lišāqirūʾinni
kabtu u rubû ša qabîya līpuš
ina ulṣi u rīšāti lubil ūmu
Kittu lizziz ina imittīya
Mīšar lizziz ina šumēlīya
littallak ilu mušallimu ina idīya
ayy–ipparku rābiṣu šulmu ina arkīya
lītamūka Bunene sukkalka damiqti
Aya ḫīrtu narāmtaka šilim liqbīka
Šamaš ašarēd ilī attā rišâ rēmu
šamû liḫdūka erṣetim lirīška
ilū ša kiššati likrubūka
ilū rabûtu libbaka liṭibbū

(tradução)


Ó tu que és o mais exaltado e perfeito, herdeiro de Namratsit
Ó luz que te renovas perpetuamente e trazes alegria ao povo, que libertas,
Ó Shamash, que trazes ordem aos vivos e mortos, que tudo vês
Senhor de Sippar, a proteção de E-babbar,
Amado irmão de Marduk, a confiança da Babilônia,
A humanidade presta atenção à tua luz.
Os Igigi ouvem os teus comandos
O povo de cabeça negra [os sumérios] por toda parte louvam teus feitos heroicos.
Tu conferes um amigo ao homem solitário.
Tu dás um herdeiro ao impotente.
Tu abres as travas dos portões dos céus.
Tu forneces luz ao cego,
Tu lês a tabuleta ainda lacrada.
Nas entranhas das ovelhas tu gravas os presságios, passas o julgamento.
Ó juiz dos deuses, senhor dos Igigi,
Ó Shamash, tu és o senhor do destino da terra.
(Eu sou Aplutu, filho do seu deus,
Cujo deus é Sîn, cuja deusa é Nikkal.
O aguilhão da carne recaiu sobre mim e continuamente me persegue.
Por conta dos males de alguma parte da minha carruagem que se quebrou.
Por conta dos males das formigas que apareceram em minha casa.)
Por conta dos males dos sinais, infelizes e aziagos
Que surgem em minha casa e me confrontam
Estou temeroso, ansioso e constantemente com medo.
Decreta meu destino, dá-me um caminho favorável.
Que meus sinais sejam favoráveis.
Que eu tenha bons sonhos.
Que o sonho que eu vi me seja afortunado.
Dá-me bons presságios!
Nas ruas, que meu discurso seja aceitável.
Que deus e rei tenham por mim estima,
Que os influentes e nobres façam o que digo,
Que eu passe meus dias em prazer e celebração.
Que Kittu (a Verdade) esteja à minha direita;
Que Mishar (a Justiça) esteja à minha esquerda.
Que um deus protetor esteja sempre ao meu lado.
Que um guardião do bem-estar nunca deixe de estar atrás de mim,
Que Bunene, teu conselheiro, te diga uma boa palavra a meu respeito.
Que Aya, tua amada esposa, te saúde.
Ó Shamash, tu que és proeminente entre os deuses, sê misericordioso!
Que os céus celebrem contigo, que a terra se regozije em ti.
Que todo o panteão te abençoe.
Que os grandes deuses alegrem teu coração.

* * *

Explicações finais: o texto em acadiano utiliza as marcações acadêmicas:

  • as vogais com macrons, ā, ē, ī, ū, indicam vogais longas;
  • o “s” com um diacrítico em cima, š, é um som chiado, como o shin hebraico, nosso “ch” ou o “s” de final de sílaba de carioca;
  • o “h” com um diacrítico embaixo, , é um som gutural, como o “ch” alemão em Bach, equivalente ao chet hebraico;
  • o “s” com um diacrítico embaixo, ṣ, é o “s” enfático, como o tsade hebraico, que costuma ser pronunciado como “ts” ou “tz” (tipo “putz”);
  • e, por fim, o “t” com um diacrítico embaixo, t, é o “t” enfático também, como o tet hebraico, mas este é o tipo de som que apenas quem tem muita familiaridade (ou que de fato é nativo) com línguas semíticas consegue reconhecer e pronunciar direito.
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