Um hino a Ea, deus da sabedoria
Dentre todos os deuses mesopotâmicos, este é talvez o mais simpático. Seu nome é Enki entre os sumérios, literalmente “senhor” (EN) “da terra” (KI), mas é conhecido como Ea em babilônico. Eu já falei dele brevemente em meu texto sobre o panteão mesopotâmico e, assim como eu fiz com Marduk, achei que valia a pena dedicar um texto adicional durante a semana a um de seus hinos mágicos que chegaram até nós.
Quando eu digo que Enki é um dos deuses mais simpáticos do panteão é porque seu envolvimento costuma ser benévolo, o que é condizente com o seu papel como um deus da sabedoria: quando Inana fica presa no submundo, mas Utu e Nana, os deuses do Sol e da Lua, se recusam a ajudar, quem a resgata é Enki. Quando o deus guerreiro civilizador Ninurta vence o Anzu e fica sedento por poder, Enki o põe de volta em seu lugar. No princípio, quando são distribuídos os domínios de cada deus, de acordo com os seus me, quem faz esse trabalho é Enki, e ele também envia os sete sábios apkallu para trazerem as dádivas das artes da magia e civilização à humanidade. Quando Enlil decide eliminar a humanidade, Enki é quem ajuda, inclusive alertando o sábio Ziusudra (ou Utnapishtim ou Atrahasys) quanto à vinda do Dilúvio, para que ele construa a sua arca. Considerando que é ele quem molda o ser humano a partir do barro, é condizente com sua personalidade querer proteger aqueles que são, em essência, os seus filhos.

Enki ocupa uma posição de certa superioridade e poder em relação a maioria dos outros deuses, pois integra a trindade dos principais deuses celestiais, ao lado de Anu e Enlil – inclusive as três faixas do céu (ḫarrānū ou “caminho” em acadiano), segundo as quais as constelações são distribuídas, tinham o nome desses deuses, de modo que Anu descrevia as estrelas do cinturão do equador, Enki representava as estrelas do sul, e Enlil as estrelas do norte.
Enki e Enlil são irmãos, filhos de Anu, o deus do céu, que prefere se manter distante e normalmente não se envolve nos afazeres da humanidade, um papel que é deixado para Enlil, o principal detentor do poder divino. Já o papel de Enki, como deus da sabedoria, é um pouco mais sutil. De muitos modos, a relação entre as três divindades lembra a estrutura chamada de Trimūrti da religião dos hindus, que descreve os principais aspectos segundo os quais o Divino se manifesta no mundo: como criador (Brahma), preservador (Vishnu) e destruidor (Shiva). Nessa lógica, Anu é como Brahma, Enki é como Vishnu e Enlil, que manda o Dilúvio sobre a humanidade, seria como Shiva. Mais de uma pessoa já traçou essa relação entre essas divindades, inclusive Damien Echols, mas eu não iria tão longe a ponto de fazer uma afirmação tão polêmica quanto a de que a religião e mitologia hindu, de alguma forma, seriam derivadas da Suméria. Prefiro pressupor que diferentes culturas podem chegar a estruturas espirituais semelhantes de forma independente.
Mais algumas informações relevantes sobre Ea: na lógica antiga, segundo a qual cada deus tinha uma casa na forma de um templo, a casa de Ea localizava-se em Eridu, mitologicamente a primeira cidade para os sumérios, onde a “coroa desceu dos céus”. Em Eridu há (ou havia) um aquífero conhecido como o Apsu, Absu ou Abzu, que representa um ser primordial vencido pela magia de Enki e que, por isso, passa a servi-lo como seu lar, o E-abzu. O deus tinha essa associação dupla, ligado tanto à terra (En-Ki) quanto às águas, sobretudo água doce, e sua iconografia com frequência o representa acompanhado de vasos transbordando – este, inclusive, é um dos seus símbolos. Outro símbolo é o bode com corpo de peixe que a gente reconhece como a imagem do signo zodiacal de Capricórnio. Não por acaso, as constelações de Aquário e Capricórnio eram também associadas a Enki/Ea. Ainda outros símbolos que aparecem em pedras como os kudurru são um bastão com uma cabeça de carneiro (no melhor estilo Esqueleto do He-Man) e uma tartaruga. Seus números místicos eram 40 e 60.
Na prática do dia a dia mágico-religioso dos babilônios, Ea tinha um papel importante como o deus da magia e do exorcismo. Seu nome era frequentemente invocado em hinos e fórmulas para expulsar espíritos malignos que causavam doenças e diversos tipos de mal estar, além de quebrar feitiços, junto com seu filho Marduk e o deus solar Shamash. O texto que eu compartilho com vocês é o que é chamado de shu-illa, uma “prece do erguer das mãos”, que tipicamente era estruturada de modo a conter um trecho inicial de louvor ao deus, listando seus vários atributos notáveis, os pedidos do devoto e um encerramento com o desejo de que todos os deuses celebrem também o poder de Ea. Sua recitação era acompanhada de uma oferenda de incenso. Como comentam os acadêmicos, há inúmeros paralelos com trechos bíblicos, o que aponta para essa continuidade da estética e espiritualidade semítica ao longo do Antigo Oriente Próximo.
Este shu-illa foi traduzido e comentado por Alan Lenzi e se encontra no livro Reading Akkadian Prayers and Hymns: an Introduction, que ele mesmo editou e organizou para a Society of Biblical Literature, uma leitura que eu, de novo, recomendo imensamente para todos os interessados neste assunto. O livro contém o texto em cuneiforme, sua transcrição, o texto normalizado e a tradução para o inglês. A transcrição marca o valor, sinal por sinal, de cada caractere, que pode ser fonético ou não, por isso só é de interesse para os acadêmicos da área. Sendo assim, eu copio abaixo apenas o texto normalizado, já plenamente pronunciável. A tradução é de minha autoria e, neste caso, não tem maiores propósitos poéticos ou acadêmicos, sendo apenas para ajudar na compreensão.
Shu-illa a Ea
šarru nēmeqi bānû tašīmti
massû ṣīru usum E-abzu
Enlilbanda itpēšu karūbu
uršānu Eridu apkal Igigî
bēl E-engura ṣulūl E-unir
bābil mīl ḫegalli murīš nāri
ina tâmāt u ṣuṣê tudešši nuḫša
ina qerbeti tušabši napišti nišī
Anu u Ellil ḫadiš rīšūka
Anunnakkī ina māḫāzīšunu ikarrabūka
nišū māti ištammarā zikirka kabta
ana ilī rabûti tanamdin milka
Ea ina têka ša balāṭi lā imât mīta
ulli rēšīya ibi šumu
qibītukka liššemû zikrūya
ina qībīka ana damiqti lukšud
šurkam-ma balāṭa lubūr ana dāri
atmêya liṭīb eli ili u ištari
ilu u šarru ša qabêya līpušū
pû u lišānu lištēmiqūni
ayy-iqribanni ayy-ikšudanni
mimma lemnu mimma lā ṭābu
u šunu upīš kaššāpi u kaššapti
Ea ina têka ša balāṭi mimma lemnu mimma lā ṭābu
linēʾū irāssun
rikis kaššāpi u kaššapti lipaṭṭir šipti ša Eridu
riksīšunu lemnūti lipaṭṭir apkal ilī rabûti Marduk
lībibā minâtūya mešrêtūya elīya liṭībā
šamû liḫdūka Apsû lirīška
ilū rabûtu etelliš lišālilūka
dumqīka liqbû ilū Igigî
(tradução)
Ó rei sábio, o criador prudente
líder insigne, digno do E-abzu
Enlilbanda, astuto e honrado,
herói de Eridu, o sábio dos Igigi,
senhor de E-engura, a proteção de E-unir,
que trazes as cheias da abundância, que deleitas os rios,
entre as águas e juncos, tu concedes vasta abundância,
em meio aos prados, tu crias o sustento do povo.
Anu e Enlil por ti se regozijam.
Os deuses Anuna te saúdam em seus santuários.
O povo da terra louva teu comando honrado.
Tu dás conselho aos grandes deuses,
Ó Ea, com teu encantamento vital, mesmo o moribundo sobrevive.
Ergue minha cabeça, chama o meu nome!
Por teu comando, que o que eu digo seja ouvido!
Por teu decreto, que eu obtenha coisas favoráveis!
Dá-me a vida, que eu seja saudável para sempre!
Que minha voz seja agradável a meu deus e minha deusa.
Que os deuses e reis façam o que eu digo.
Que as línguas e vozes intercedam por mim.
Que nada maligno, nada prejudicial
Nem mesmo as maquinações de bruxas e bruxos
Se aproximem de mim, que elas se afastem.
Ó Ea, com teu encantamento vital,
Que vá embora tudo que seja maligno e prejudicial,
Que o encantamento de Eridu liberte as amarras postas por bruxas e bruxos.
Que Marduk, o sábio dos deuses, desfaça suas amarras perversas.
Que o meu corpo esteja livre de toda doença, que meus membros sejam saudáveis.
Que os céus se regozijem, e o Apsu se alegre contigo.
Que os grandes deuses louvem a ti como seu senhor.
Que os Igigi decretem tua boa fortuna.
Explicações finais: o texto em acadiano utiliza as marcações acadêmicas:
- as vogais com macrons, ā, ē, ī, ū, indicam vogais longas;
- o “s” com um diacrítico em cima, š, é um som chiado, como o shin hebraico, nosso “ch” ou o “s” de final de sílaba de carioca;
- o “h” com um diacrítico embaixo, ḫ, é um som gutural, como o “ch” alemão em Bach, equivalente ao chet hebraico;
- o “s” com um diacrítico embaixo, ṣ, é o “s” enfático, como o tsade hebraico, que costuma ser pronunciado como “ts” ou “tz” (tipo “putz”);
- e, por fim, o “t” com um diacrítico embaixo, t, é o “t” enfático também, como o tet hebraico, mas este é o tipo de som que apenas quem tem muita familiaridade (ou que de fato é nativo) com línguas semíticas consegue reconhecer e pronunciar direito.
De novo, como bônus, segue abaixo o cuneiforme original dos versos 16 a 28 (toda a parte da petição do shu-illa, entre “Por teu decreto, que eu obtenha coisas favoráveis!” e “Que o meu corpo esteja livre de toda doença”). É óbvio que isso é interessante para estudiosos do ramo, mas, neste contexto aqui, eu penso que são úteis caso alguém pense num potencial uso talismânico desse hino. Assim como na magia com salmos, há claras funções de prosperidade (ina qībīka ana damiqti lukšud – “Por teu decreto”, etc.), proteção mágica (Ea ina têka ša balāṭi mimma lemnu mimma lā ṭābu em diante – “Ó Ea, com teu encantamento vital”, etc.) e saúde (lībibā minâtūya mešrêtūya elīya liṭībā – “Que o meu corpo esteja livre”, etc.) que dá para derivar daqui. A equivalência dos versos é de 1 para 1, então é só conferir quais versos usar e copiar no papel (ou tabuleta de argila, se você for desses). E quem segue o canal d’O Zigurate no Telegram pode esperar em breve me ouvir entoando esse hino também.

He-am!