Sobre os elementos – parte II: astrologia, ocultismo e Cabala
Como dito na primeira parte deste texto, a gente costuma chegar nos autores esotéricos que escrevem sobre os elementos tendo como bagagem prévia pelo menos um contato com obras de entretenimento. Porém, apesar de esse tipo de material servir para nos guiar até a porta, por assim dizer, ele não é a companhia ideal depois que passamos do limiar. Se esse for o seu único contato com esse tipo de conhecimento, então vai faltar embasamento para a discussão esotérica, e aí corre-se o risco de gerar algumas aberrações1. Por isso eu insisti nessa primeira abordagem mais acadêmica, pensando a princípio em como essa teoria dos elementos foi usada para falar do mundo material e a partir daí podemos pensar melhor em suas aplicações mágicas.
Para fazer a ponte, eu invoco de novo o nome do médico e alquimista austríaco Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim (1493–1541), ou, como era sua @ no Twitter, Paracelso. O que eu pessoalmente acho fascinante em Paracelso e em outros pensadores de sua época é a permeabilidade entre as formas de pensar o mundo físico, as ciências naturais, e as formas de pensar o mundo sobrenatural. Hoje, graças ao Iluminismo, as duas formas de pensar o mundo são bem separadas, apesar de o século XX ter confundido algumas coisas de novo, mas nessa época com muita frequência acontecia, por exemplo, de astrônomos também serem astrólogos, como era o caso de Tycho Brahe, ou então de alguém começar estudando coisas mais normais, tipo física ou matemática e acabar mexendo com espíritos, como foi o caso de John Dee.
Elemental, arte de Fi Bowman (fonte)
No lado esotérico, uma imensa contribuição de Paracelso para o material sobre os quatro elementos foi o seu livro De Nymphis, Sylphis, Pygmaeis et Salamandris et de Caeteribus Spiritibus (Sobre Ninfas, Silfos, Pigmeus e Salamandras e Outros Espíritos) de 1566, onde ele discute o conceito dos elementais. A ideia é simples: entre o mundo material e o espiritual, existiria um estado intermediário preenchido por diversos seres que habitam os quatro elementos, criados com um propósito divino (Paracelso, católico, compreende todas as coisas criadas por Deus têm uma função) ligado ao elemento em questão. Diferente dos espíritos que encontramos em grimórios, imortais, imateriais e atemporais, de fato consciências completamente alheias à compreensão humana, os elementais estão sujeitos à geração e corrupção do mundo sublunar — eles nascem, se alimentam, se multiplicam, adoecem e morrem, têm vontade própria e um tipo de sociedade, o que faz com que sejam muito parecidos com o ser humano, porém existem numa dimensão mais sutil. Diferente dos humanos, dotados dos quatro elementos, eles são compostos apenas do elemento ao qual estão ligados, o que lhes confere um temperamento mais previsível, e não têm alma. A existência dessas entidades também já havia sido prenunciada por Agrippa (sua Filosofia Oculta data da década de 1530), inseridos em uma hierarquia cósmica (Livro III, capítulo XVI), mas Agrippa não lhes dá um nome nem explora o assunto mais a fundo.
Os nomes dos elementais todo mundo já conhece: os do fogo se chamam salamandras, nome certamente inspirado pelo animal real dotado deste nome que acreditava-se que era gerado pelo fogo2; do ar são silfos, uma palavra que o próprio Paracelso inventou; da água são as ondinas, às vezes também chamadas de ninfas d’água ou sereias; e da terra, pigmeus ou gnomos, outra palavra que foi invenção do autor, derivada do grego gnome (inteligência) ou ge nomos (que habita a terra). Infelizmente eu estou falando aqui em segunda mão, pois ainda não tive acesso a este volume de Paracelso, mas pretendo corrigir isto assim que possível. Bardon, no entanto, fala bastante de sua experiência com estes seres e dos perigos do trabalho com eles no capítulo oito da Magia Prática. Como são criaturas muito semelhantes ao humano, deve-se empregar com eles o mesmo grau de cautela que você teria com qualquer estranho, pois eles também têm as suas vontades e que podem ou não coincidir com o que você quer. Por isso, cuidado.
Uma recomendação prática que eu observo com alguma frequência é a de se trabalhar primeiro com os chamados reis elementais. Infelizmente a fonte mais antiga de que eu tenho ciência sobre o assunto são os escritos de Lévi, já no século XIX, como Dogma e Ritual da Alta Magia (1854), o que é bastante recente. Os nomes destes reis são Djîn (fogo), Paralda (ar), Nicksas (água) e Ghob (terra) e sua natureza, até onde entendi a questão, é como um tipo de superinteligência combinada da consciência dos seres elementais. Mas trataremos disso melhor no próximo texto, mais prático. O importante, por ora, é frisar que, apesar de uma certa confusão com seres encantados descritos em folclore, como fadas e duendes, nem Paracelso, nem nenhum desses outros autores está trabalhando com uma tradição popular prévia, por isso você não vai encontrar nenhuma mitologia anterior que trate dessas criaturas, apesar de sua presença em obras de poesia do século XVIII e XIX3.
A grande questão para a discussão dos elementos que foi passar do mundo físico para o mundo invisível é que, nesse processo, cessam as preocupações em falar de princípios que organizam a matéria. Perde o sentido falar em “átomos de fogo” quando se tem um conhecimento científico mais adequado para falar do fogo de fato, um conhecimento que é testado pela prática. No entanto, a ideia de uma energia do fogo, intangível e não referente ao mundo físico, persiste porque tem a sua utilidade tanto no domínio teórico quanto no prático no que diz respeito à magia. A astrologia é um exemplo dessas aplicações.
Astrologia e os quatro elementos
Como sabe qualquer um que tenha mesmo um conhecimento superficial da disciplina, dos 12 signos do zodíaco, temos três para cada elemento, um cardinal, um fixo e um mutável. O que isso quer dizer? Certamente não significa que se acredite que as estrelas da constelação de Áries, por exemplo, sejam feitas de átomos de fogo enquanto as de constelação de Virgem seriam de terra — essa noção não faria sentido nem para os filósofos clássicos que entendiam que a esfera das estrelas é preenchida pelo elemento celestial do éter. Em vez disso, estamos falando em termos mais abstratos, que podemos entender em termos de energias, para usar a terminologia preferida atualmente para se referir aos fluxos invisíveis que afetam o nosso mundo, mas que também poderíamos chamar de “fluidos”, “emanações”, etc. É bom lembrar que estamos sempre em terreno metafórico.
Desta forma, a combinação das energias do planeta Marte (e eu já falei dessa questão de energias planetárias no meu texto sobre magia astrológica) com fogo nos dá o signo de Áries, ou seja, temos aí a força de atuação sobre o mundo de Marte expressando-se com a expansividade e volatilidade do fogo, daí a ideia de que arianos são briguentos e explosivos. Marte e o elemento água nos dá Escorpião, cuja forma de agir é mais fria e profunda, menos confronto direto e mais ação pela surdina, e assim por diante4. Quando exatamente surgiu essa doutrina dos elementos na astrologia é difícil dizer: Cláudio Ptolomeu (100–170 d.C.) fala em triplicidades no Tetrabiblos, mas não menciona os elementos, mas nas Antologias de Vétio Valente (120–175 d.C.) a noção dos elementos dos signos já pode ser observada claramente (clique aqui para conferir você mesmo e olhe o final da página 72 do pdf onde ele menciona as interações entre elementos).
Em todo caso, quando falamos em equilíbrio dos elementos em nossos mapas astrais (e isso foi moda no Twitter uns meses atrás), a ideia é a de que temos a presença destes elementos de acordo com a posição dos planetas nos signos — alguém que venha a nascer hoje, por exemplo, nesta segunda, um dia em que o Sol, Mercúrio, Vênus, Júpiter e Saturno estão em Aquário, a Lua em Libra, ambos signos de ar, e Marte em Touro, um signo de terra, teria uma séria deficiência de água e fogo. Sobre o que isso significa para o indivíduo, eu recomendo a leitura deste texto da Carole Taylor no Astro.com, Element Imbalances: The Presence of Absence.
Arranjo dos quatro elementos, seus signos, o humor ligado a cada um, o planeta que rege este humor e mais algumas coisas. Diagrama de “The Optic Glass of the Four Humors” (1639), de Thomas Walkington (fonte).
Eu disse antes e repito: depois do entretenimento popular, provavelmente é pela astrologia que a maioria das pessoas tem contato com a doutrina dos elementos. Convém agora repassarmos finalmente o que cada elemento significa, pelo menos do modo como eu os entendo, a partir de tudo que li e pratiquei.
O fogo é o elemento mais intangível e sutil de todos, por isso em muitos dos sistemas de se ordenar os elementos5, ele costuma ser o primeiro. Seu principal poder está em representar as forças de criação, daí os lugares comuns de se falar em “fagulhas criativas”, o “fogo por dentro” ou a imagem da lâmpada que acende quando temos uma ideia, esta sendo nada mais que um substituto moderno do lampião. Ele diz respeito à vontade, à energia, à inspiração, à motivação, é o que o titã Prometeu rouba dos deuses em seu mito mais famoso para dar aos mortais que, segundo consta, Zeus pretendia manter num estado animalesco. Com o fogo tudo começa, porém, sendo ele um elemento volátil, às vezes ele se apaga antes e as coisas não terminam (e afinal nenhum elemento pode fazer tudo sozinho). Na sequência, um pouco menos sutil, temos o ar, que interage bem com o fogo, pois o alimenta, e representa todas as coisas ligadas à inteligência, à linguagem e ao social. Se a inspiração para qualquer coisa surge com o fogo, com o ar somos capazes de refletir de modo a conceptualizá-la, de chegar a um layout, a uma planta, desta ideia e então verbalizá-la para que outras pessoas possam se engajar também. Por outro lado, em desequilíbrio, corre-se o perigo de tudo se reduzir a, como diz a expressão popular, “palavras ao vento” ou “castelos no ar”, quando nos contentamos com as ideias apenas como ideias ou discurso e não levamos nada adiante, como aquelas reuniões intermináveis no serviço que parecem ser um fim em si mesmas e não um meio para algo.
Mais densa, temos então a água, cuja palavra-chave é emoção. Uma hora estamos tristes, depois estamos rindo de novo, irritados, apreensivos, comemorando, etc. É da natureza das emoções que elas fluam de um estado a outro, e não por acaso a permanência constante de um estado emocional restrito geralmente é entendida como algum tipo de distúrbio. A água, nesse sentido, também diz respeito ainda à intuição, o tipo de revelação que se tem pela via emocional mais do que racional, o gut feeling, e à empatia que deriva da capacidade de conexão emocional. Se com o fogo uma ideia vem à tona e com o ar somos capazes de conceptualizá-la e verbalizá-la, a água é o que permite o envolvimento emocional com a ideia — e parece ser da natureza humana que a persuasão das pessoas pareça ser muito mais fácil pelo viés emocional do que puramente racional. Por fim, temos a terra, o elemento mais denso e estável de todos, com seu poder de cristalização, de trazer as coisas para o nível material. Terra diz respeito a tudo que envolve o corpo e colocar a mão na massa, incluindo as necessidades corporais de alimentação, conforto e sexo, mas também processos mais sociais como o de organização, conquista e manutenção de posses — sendo a posse mais valiosa de todas, desde que alguém concebeu a ideia de propriedade privada, a da própria terra.
Podemos falar, como Carole Taylor, da presença dos elementos no mapa astral, mas eu iria além e diria que é possível trabalhar com os elementos, conceitual e magicamente, no nível de processos e eventos.
Vamos pensar no exemplo de um estudante que precise produzir um texto longo, como uma monografia, uma dissertação ou tese. Apesar de ser uma atividade primariamente ligada ao elemento ar, pois diz respeito ao pensamento e ao discurso, a habilidade de colocar ideias em palavras, sem os outros elementos é difícil obter sucesso. Imagino que todos conheçam alguém que de longe se nota ser uma pessoa inteligente, mas que, por qualquer motivo, acabou tendo todo tipo de problema nessa área a ponto de até não chegar a concluir o curso. O fogo, nesse caso, diz respeito à originalidade, à capacidade de produzir algo novo e ao tesão que isso dá, o tipo de motivação que você não encontra entre estudantes cujo tipo de trabalho é apenas uma continuação, de cabresto, da pesquisa do orientador. Depois a água envolve a capacidade de lidar tanto com as próprias emoções (e há uma montanha-russa de emoções ao longo dos quatro anos de um doutorado) quanto com as emoções dos outros, incluindo orientador e banca, que precisam ser persuadidos do valor do seu trabalho. E, sem terra, não há organização: você lê um trecho de um livro que vai usar e depois perde, perde notas, perde arquivos, perde prazos, o que acaba sendo muito frustrante para todos os envolvidos.
Também um relacionamento depende dos quatro elementos. Com frequência a coisa começa com fogo, aquela fagulha inicial que pode, sim, ser tesão puro e simples ou algum outro tipo de atração, aquele je ne sais quoi que te faz querer ficar perto de uma dada pessoa. E, bem, se for só tesão é bem provável que tudo acabe aí mesmo, você transa uma vez, mata a curiosidade e já era. Agora se houver uma conexão intelectual, no nível do ar, tem-se uma relação mais interessante, pois é possível conversar com essa pessoa, e todos sabem que boa comunicação é crucial para um relacionamento saudável. Porém, enquanto não há água não há a conexão emocional que faça você querer manter a relação, a ideia de ter algo sério, enquanto terra tem toda uma importância especial se você pretende morar junto com a pessoa. Há casais que são absolutamente disfuncionais, em que um de fato atrapalha o outro ou ambos se atrapalham mutuamente, a casa vira um chiqueiro, falta dinheiro, etc. Mas mesmo fora desse contexto mais doméstico, eu entendo terra como um tipo de confiança que é tanto no nível de competência quanto de caráter, você saber que aquela pessoa não vai te amarrar na cama e fugir com a sua carteira. E, assim como é possível os elementos irem se somando gradualmente até fechar o bingo, de você começar a sair com uma pessoa e não imaginar que depois iriam acabar tendo uma vida juntos, a deterioração também é uma realidade, conforme tudo diminui até restar um único elemento, com frequência água (na forma de mero apego) ou terra (a convivência à qual ambos se acostumaram), não por acaso os elementos mais densos.
Como veremos no último texto, ter essa noção da presença dos elementos não é apenas uma ferramenta conceitual útil para ajudar a narrativizar a própria vida, mas também para agir na prática.
Os elementos e a Cabala
Vocês vão observar que eu gosto de seguir a ordem dos elementos por densidade: fogo — ar — água — terra. Esta é a ordem usada na geomancia e na Cabala também é a preferida, pelo menos dentro dos moldes da escola luriânica, em que eles encontram ecos com os quatro mundos, Atziluth, Briah, Yetzirah e Assiah. O conceito por trás desses quatro mundos, para sermos criminosamente breves, é o de que a realidade emana de Deus, e esses mundos se referem aos estágios dessa emanação, desde um ponto em que não há nada ainda, pois tudo está em absoluta união (Atziluth, literalmente “emanação”), até o ponto em que algo surge do nada (Briah, “criação”), depois algo diferente surge deste algo inicial, a partir de recombinações e permutações (Yetzirah, “formação”) e, por fim, chega-se à completude (Assiah, “ação”), que equivale ao mundo material. No tetragrama yod — heh — vav — he, ou YHWH, a primeira letra, mais etérea, um mero pontinho, yod, se refere ao elemento fogo e ao mundo de Atziluth; o primeiro heh descreve o ar e o mundo de Briah; vav é água e Yetzirah; e por fim o segundo heh, repetido, é terra ou Assiah. Como se pode ler em alguns autores que tratam do assunto, o caminho da manifestação de Atziluth até Assiah é muito próximo da narrativa que eu ofereci mais cedo ao falar do processo de materialização de uma ideia do fogo até sua materialização na terra6.
Mergulhando um pouco mais a fundo na exploração cabalística dos elementos, temos o texto do Sefer Yetzirah. Eu já falei bastante deste livro num momento anterior, no texto sobre as correspondências do Tarô, mas, para resumir, trata-se de um tratado do começo da era cristã com reflexões místicas acerca do alfabeto hebraico. O hebraico tem 22 letras, correspondentes aos 12 signos, 7 planetas e 3 elementos. Por que 3 só?
Bem, o Yetzirah diz respeito ao mundo de… Yetzirah, o mundo da Formação, dominado pelas seis sefiroth intermediárias (Chesed, Geburah, Tiffereth, Netzach, Hod e Yesod), que é o último passo antes da manifestação no mundo material. Terra, o mais denso dos elementos, é entendido como uma mistura dos outros três e só existe aqui neste plano. As correspondências dos três elementos são portanto as seguintes: o fogo equivale à letra shin (uma das letras na palavra para fogo em hebraico, esh), água a mem (cujo sentido é literalmente água) e o ar ao álef (uma letra que de fato é a respiração). No tarô, essa equivalência se dá com os arcanos do Julgamento, do Enforcado e do Louco, respectivamente (alguns autores atribuem à terra o arcano de Saturno, o Mundo).
Mas a questão é que, se quisermos reduzir mais ainda os elementos, chegaremos a dois apenas: o fogo e a água, sendo o ar apenas um intermediário. O rabbi Aryeh Kaplan, que traduziu e comentou este livro, diz que estes dois elementos estão ligados a dois estágios de consciência, equivalentes às sefiroth de Chokhmah, a Sabedoria, e Binah, o Entendimento. Ao fogo e Binah pertence à nossa consciência comum, analítica, desperta, que raciocina. É com ela que apreendemos o mundo e o analisamos, quebrando tudo em partes menores e compreendendo como essas partes interagem. É ela também que tira o nosso sono quando nos entregamos ao overthinking e nos identificamos com nossos pensamentos. No entanto, é esse tipo de consciência mundana que precisa ser desligada no trabalho místico (uma lição que os caoístas hipersimplificaram com seu conceito de “gnose”). Para tanto, passamos de Binah para Chokmah, entendida como água porque é um estado em que os pensamentos se dissolvem, em que não existe separação, sendo o estado meditativo por excelência. Não por acaso, diz Kaplan, predomina a sílaba OM, cujo final é o som de M, na meditação oriental, e Kaplan também ensina técnicas de meditação com permutações das letras shin e mem. Até você aprender a desligar a sua monkey mind, como dizem os budistas, e se entregar a este estado mental, pelo menos em algum grau, nenhum tipo de avanço é possível. E, de novo, é o ar quem faz a ponte entre os dois estados — uma lição que aponta para a chave de tudo: a respiração.
A supremacia dos elementos fogo e água também é observável na obra de Bardon, como já comentei num momento anterior, em que citei o texto de Kaplan. Bardon fala em princípios: tudo começa com o 5º elemento, Akasha (ele aqui utiliza o nome oriental), o mais puro e celestial, que dá origem a dois princípios, um é ativo ou “elétrico”, uma terminologia da época empregada por Bardon, que gera o elemento fogo; o outro é passivo ou “magnético”, que gera a água. Da mistura dos dois surge o ar, que faz o trabalho de intermediar entre ambos, para que não se aniquilem, e por fim, da mistura de tudo surge a terra.
Os elementos na Golden Dawn
Para encerrarmos, eu não poderia falar de magia elemental sem mencionar as práticas da Cabala hermética da Golden Dawn, onde os elementos tem um papel crucial.
Os pentagramas e seus possíveis arranjos na magia da GD
Quatro (ou, bem, cinco) elementos, sete planetas, doze signos: eis a cosmologia hermética básica que opera neste sistema e se faz presente em seus dois símbolos mais importantes: o pentagrama e o hexagrama. O pentagrama é um emblema do microcosmo, outra palavra criada por Paracelso para enfatizar a velha máxima hermética de que o que está acima é como o que está abaixo, de que a mente e a fisiologia humana são reflexos de processos do universo. Daí que cada ponta seja equivalente a um elemento: se desenharmos um pentagrama começando pela sua ponta superior e descendo até a ponta inferior direita, faremos o trajeto exato da ordem de densidade: espírito (outra palavra para éter, Akasha ou quintessência) — fogo — ar — água — terra. Já o hexagrama equivale aos 7 planetas, o macrocosmo, portanto, com cada ponta tendo um planeta e o Sol sendo representado no centro.
Para a maioria dos magistas iniciantes, a familiaridade com o pentagrama vem apenas do Lesser Banishing Ritual of the Pentagram (LBRP) ou Ritual menor do Pentagrama (RmP). Eu já falei longamente deste ritual num texto anterior, onde comento um pouco o sistema dos pentagramas usado na Golden Dawn, e recomendo que iniciantes leiam este texto antes de prosseguir, senão pode ficar meio confuso. No RmP como banimento que 99% das pessoas faz, você desenha os pentagramas no ar sempre começando da ponta inferior esquerda e subindo, o que equivale ao pentagrama de banimento a partir do elemento terra, como se pode ver no diagrama. Há duas modalidades de ritual na GD, banimento e invocação, determinadas pelo sentido em que o pentagrama é desenhado no ar. Quando começamos nessa ordem, estamos banindo a partir de terra, o que tem os efeitos conhecidos do RmP normal; quando seguimos na ordem inversa, em cima e descendo até a ponta inferior esquerda, temos o RmP em seu modo de invocação, indo do espírito para terra, que tem uma função de energização e abertura no nível microcósmico7.
Mas por que usa-se o pentagrama de terra? Bem, este é um assunto polêmico, mas até onde eu entendo ele na verdade não é o pentagrama de terra em si. Se quiséssemos banir o elemento terra, ele deveria ser visualizado na cor de terra (verde, marrom ou preto) e no RmP ele é visualizado num branco-azul brilhante. Nesse estado, ele é um pentagrama menor de banimento que apenas coincide com a posição de terra talvez por estarmos no nível mais baixo da existência, o material, regido por este elemento. Para invocar ou banir elementos específicos, usa-se uma outra versão do Ritual do Pentagrama, o Ritual Maior, com as devidas orientações. Nesse caso, se eu quisesse fazer um trabalho com o elemento fogo, por exemplo, eu desenharia o pentagrama no ar descendo da ponta superior à inferior direita (pentagrama de invocação do fogo), visualizando-o na cor vermelha como parte deste ritual. Mas, de novo, trataremos disso no texto seguinte.
Os Tattwas, representações visuais dos elementos
Pode-se fazer muitas críticas ao sistema da GD, mas se, tem uma coisa que ele é, é organizado. Cada elemento tem o seu lugar, as suas equivalências. Quanto às quatro direções cardeais, por exemplo, no nível microcósmico, o leste equivale ao elemento ar, o sul ao fogo, o oeste à água e o norte à terra (essa ordem muda para a ordem astrológica a partir do leste para o nível macrocósmico: leste — fogo, sul — terra, oeste — ar, norte — água), e cada elemento é regido por um arcanjo, em ordem, Rafael, Miguel, Gabriel e Uriel, daí que seja neste arranjo que eles apareçam no RmP: com o magista voltado para o leste, vem Rafael à frente, Gabriel atrás, etc. No Ritual Maior do Pentagrama, cada um tem também um nome divino associado: YHWH (ar), Elohim (fogo), EL (água) e Adonai (terra), junto com gestos rituais e os símbolos zodiacais equivalentes aos quatro signos cardinais e os quatro tetramorfos: Aquário (ar, homem), Leão (fogo, leão), Escorpião (água, águia) e Touro (terra, touro). Alguns rituais ainda trabalham com as seguintes fórmulas em enoquiano, tendo a GD incorporado algo deste sistema em partes: BITOM (fogo), EXARP (ar) HCOMA (água) e NANTA (terra), presentes na Tábua da União. A meditação sobre as imagens sagradas dos elementos orientais, chamadas de Tattwas, também foi incorporada pelos membros da GD, numa época em que o Ocidente ainda estava descobrindo essas interfaces.
Por fim, como dito no meu texto sobre ferramentas mágicas, o sistema da Golden Dawn trabalha com quatro armas elementais mais ou menos equivalentes aos quatro naipes do tarô: o bastão ou varinha é a arma do fogo; a adaga do ar; o cálice da água; o pentáculo da terra. Para quem está familiarizado com Wicca, esse mesmo arranjo foi mantido (afinal, apesar das inspirações em tradições anteriores, o sistema todo foi montado a partir dessa lógica cerimonial), apenas trocando-se as equivalências da adaga e da varinha.
Tudo isso nos fornece um material amplo para construir rituais eficazes com os elementos dentro do sistema da Golden Dawn, e Israel Regardie também oferece várias ideias interessantes em seu How to Make and Use Talismans. No entanto, vale lembrar que, apesar de ser possível, sim, se valer de um ritual de terra, por exemplo, para obter prosperidade, consagrando-se um talismã, por exemplo, por meio do pentagrama de terra, dos nomes divinos adequados e com a ajuda do arcanjo Uriel, do rei Ghob e dos gnomos, o grande objetivo do sistema da GD é promover a alquimia interior que leva ao equilíbrio dos elementos. Bardon também trata longamente deste assunto, sobretudo nos capítulos iniciais de Magia Prática, onde recomenda grandes períodos de introspecção a fim de reparar os nossos vícios derivados dos elementos. Os rituais como o RmP e o Pilar Médio são ferramentas poderosas para se começar esse processo, mas é um objetivo de longo prazo a ser conquistado pelo adepto em sua jornada de ascensão pela Árvore da Vida.
Isto conclui a segunda parte de nosso estudo dos elementos. Claro que muita coisa aqui precisou ser resumida para chegarmos a uma versão manejável deste texto, antes que ele vire um livro, mas acredito que já é possível compreender o suficiente aqui para poder começar a pensar no lado prático, como de fato trabalhar com essa energia dos elementos. Trataremos disso, enfim, na próxima semana.
* * *
[1] Dois exemplos para ilustrar o que eu digo: em dado momento de Avatar, o protagonista Aang recebe uma instrução de um guru sobre os chakras, suas funções, equivalências elementais e como desbloqueá-los. É uma cena muito boa, ainda mais para um desenho para crianças (toda a série é excelente, aliás) e uma porta de entrada incrível, mas existem vídeos no YouTube ensinando uma meditação com base nessa cena… o que não é uma boa ideia. O outro exemplo eu já mencionei no meu texto sobre Magia do Caos e vem do Chaos Matrix, um arquivo de textos anos anos 1990 que inclui um ritual para criar um “elemental nuclear”. O fato de que ele compôs esse ritual mostra que a pessoa não entendeu como funcionam os elementos.
[2] A história que contam é que os antigos levavam os tocos de lenha para a lareira e as salamandras, que dormiam neles, acordavam e fugiam, dando a impressão de que nasciam das chamas.
[3] Silfos e outros elementais aparecem, por exemplo, em The Rape of the Lock, de Alexander Pope.
[4] Quando multiplicamos o número de planetas pelo de elementos, chegamos ao número 28, dos quais apenas 12 são signos reais do zodíaco. Um exercício interessante que eu gosto de fazer é imaginar quais seriam os signos resultantes das combinações que não passaram na “lista de corte”, por assim dizer, como um signo de terra regido por Júpiter ou um signo de água regido pelo Sol.
[5] Aqui eu estou trabalhando na ordem de densidade, mas existem outras, como a ordem astrológica (fogo – terra – ar – água) ou a ordem mais típica dos chakras (éter – ar – fogo – água – terra).
[6] Quem está mais acostumado com o sistema da Golden Dawn pode achar que eu cometi um erro na ordem das equivalências com o tetragrama (pois heh seria água e vav ar), mas, como dito, esta é a ordem luriânica – vide este texto aqui de Chayim Vital, discípulo de Luria, Four Aspects of the Emanated.
[7] Abertura e energização no nível microcósmico significa que a magia vai operar inclusive ou especialmente no nível interior, da sua personalidade. Scott Stenwick explica melhor no seu texto sobre as possíveis combinações de rituais, aqui.