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O que é bom saber antes de fazer “trabalho de sombras”

O que é bom saber antes de fazer “trabalho de sombras”

Leitura em 32 min
Fonte: O Zigurate

Para bem ou para mal, a noção de “trabalho com sombras” ou “trabalho de sombras” se tornou moda, especialmente no meio esotérico. Tem artigos sobre isso até em sites como o infame Goop e o da revista Cosmopolitan (!!!). Este último, aliás, descreve o processo como “the magickal tool that every esoteric bad bitch needs in their practice” — sim, a gente viveu para ler a expressão magickal tool, com CK, na Cosmopolitan. Eu já tive essa impressão olhando o que as pessoas dizem em redes sociais de uns tempos para cá, mas ela foi confirmada também por uma breve consulta ao Google Trends, que mostra um pico em buscas sobre o termo shadow work (a moda, é claro, começou na gringa) em 2018 e, mais ainda, em 2019. Poderíamos pensar, “ué, de repente todo mundo virou junguiano?”, mas é claro que não é necessariamente o caso, afinal, muitas vezes as pessoas adotam certas noções sem nem refletir de onde elas vieram.

Como identifica este artigo no caderno i-D da Vice, a coisa virou moda no TikTok, totalizando mais de 175 milhões de views na hashtag #shadowwork. Mas faz um tempo já que tem saído livros sobre o assunto, e uma breve pesquisa no Google nos oferece resultados como Existential Kink: Unmask Your Shadow and Embrace Your Power, de Carolyn Elliott (2020), Bringing Your Shadow Out of the Dark: Breaking Free from the Hidden Forces That Drive You, de Robert Augustus Masters (2018), A Guide to Shadow Work: A short and powerful guide to healing, de Michelle L. Geldenhuys (2018) e Owning Your Own Shadow: Understanding the Dark Side of the Psyche, de Robert A. Johnson (2013), além de vários cadernos só para você documentar a sua jornada nesse caminho.

Eu sou muito obcecado com origens de fenômenos e quando percebi essa tendência, quando veio essa dúvida de “quem foi que botou todo mundo do meio esotérico pra fazer shadow work?”, eu não consegui descansar enquanto não pudesse traçar pelo menos algum tipo de linha do tempo, e este texto é o que saiu desse trabalho. Ainda não consegui encontrar um único responsável, mas deu para mapear alguns pontos de contato que, somados ao que parece ser um revival junguiano dos últimos anos, talvez permitam ter uma ideia do que está acontecendo. E, para quem pretende brincar disso, eu acho que é um pouco importante compreender com o que é que você está se metendo.

O conceito da sombra e seus antecessores

Primeiro, porém, precisamos falar o que é a sombra e o porquê de o pensamento junguiano considerar tão importante trabalhar com ela. Eu não sou especialista em Jung, nem de longe, nem me considero um junguiano, por isso peço desculpas desde já por qualquer deslize que eu possa cometer em minha tentativa de resumir o conceito. Mas vocês sabem que eu zelo pelo rigor, por isso aqui estarei citando o texto de Connie Zweig e Jeremiah Abrams, na introdução do livro Meeting the Shadow (pp. XVI-XXV), uma coletânea de ensaios de diversos autores publicada originalmente em 1991, que eu acredito que são as fontes mais confiáveis sobre o assunto (ambos os autores são junguianos com experiência clínica).

Arte de Odilon Redon, “O Homem Primitivo (Sentado sob a Sombra)”

A sombra, na psicologia junguiana, é onde enterramos as qualidades que não cabem em nossa autoimagem, todos os comportamentos e sentimentos negativos como raiva, ciúme, vergonha, mentira, ressentimento, luxúria, ganância e tendências homicidas ou suicidas. A ideia é que, conforme a criança cresce, as figuras de autoridade em sua cultura (pais, irmãos, professores, padres) vão selecionar as características consideradas desejáveis, expulsando as indesejáveis do reino do eu. No entanto, não é porque essas características são rejeitadas que elas deixam de existir, e sim passam a ter uma existência oculta, impronunciável. Dizem os autores: “todos os sentimentos e capacidades que são rejeitados pelo ego e exilados na sombra contribuem para o poder oculto do lado sombrio da natureza humana”.

Indo mais direto nas fontes primárias, Jung fala bastante da sombra em Psicologia e Alquimia, o vol. 12 de suas obras completas. Diz o autor, numa citação famosa: “A observação paradoxal de TALES, segundo a qual só a ferrugem dá à moeda seu valor autêntico, é uma espécie de paráfrase alquímica; seu significado fundamental é o de que não há luz sem sombra, nem totalidade anímica sem imperfeição. A vida em sua plenitude não precisa ser perfeita, e sim completa” (p. 170). O processo terapêutico “conduz logicamente ao confronto do paciente com sua sombra” (p. 36), num momento que Jung compara à fase alquímica do nigredo, a putrefação e primeira etapa no processo de gerar a pedra filosofal (p. 46). E, para se chegar à vida completa, é preciso aprender a integrar a sua sombra.

O motivo pelo qual a sombra acaba sendo importante, então, é porque quanto mais você tentar renegá-la, mais ela vai crescer e, assim como ocorre nos mecanismos clássicos de recalque freudiano, maior a força com a qual ela vai se manifestar por outros meios, segundo essa teoria. Sonhos incômodos, compulsões, gestos neuróticos, projeções, reações emocionais exageradas — tudo isso pode constituir sintomas da sombra mal resolvida se manifestando, segundo os autores. Imagino que o caso mais caricato disso seria o daquelas figuras extremamente moralistas, com frequência líderes religiosos, que depois a gente descobre serem pedófilos ou algo do tipo: sem saber lidar com seus desejos, eles tentam escondê-los e acabam projetando sua perversidade nos outros, ao mesmo tempo em que procuram saciá-los sem que ninguém veja.

O problema, claro, é que negar a sombra não funciona, mas é inviável também trazê-la à luz da consciência racional… apenas indiretamente é que esse domínio pode ser acessado. Ao término da introdução ao volume organizado por Zweig e Abrams (p. XXV), a dupla afirma ter cunhado o termo shadow-work (a-há!) para descrever os “esforços contínuos a fim de desenvolver uma relação criativa com a sombra”, pois entende-se que, ao mesmo tempo, haveria qualidades positivas enterradas entre as sombras também, sobretudo na forma de “talentos e dons subdesenvolvidos” — o lúdico e o criativo são tanto uma potencialidade produtiva das sombras quanto um modo de lidar com elas, portanto. A nona e última parte desse livro, não por acaso, se chama Shadow-Work: Bringing Light to the Darkness Through Therapy, Stories, and Dreams. Tudo muito junguiano.

Jung, é claro, não tirou da cartola esse conceito da sombra. Ele já estava imerso numa cultura em que essa ideia pairava no ar e então lhe deu uma forma para que pudesse ser tratada dentro de sua linha clínica da psicologia analítica. Eu identificaria as raízes da coisa toda em dois elementos: o primeiro é a ascensão da introspecção, fomentada pelas tecnologias associadas à escrita, desde a invenção da leitura silenciosa[1] até o surgimento e popularização de livros impressos ao longo dos séculos XVI e XVII. Depois tem o surgimento do conceito de privacidade — algo estranho tanto aos nobres de outrora, que contavam com criados até para ajudá-los a se vestirem e irem no banheiro, quanto aos pobres, que muitas vezes dividiam uma mesma cama para a família toda. Como se sabe, isso se dá com a ascensão da burguesia, por volta do século XIX . Uma das manifestações mais visíveis do conceito da privacidade é arquitetônica, pois as casas passam a ter corredores conectando a vida pública (as salas) à privada (quartos).

Ilustração alquímica representando a fase de Nigredo

Com a ideia da privacidade, surge também a noção de cada um de nós ter duas personas, uma visível e social, por meio da qual tentamos mostrar o melhor de nós mesmos (vide o Instagram), e aquele nosso lado que se manifesta quando ninguém está olhando e que coça o saco, peida e procura gratificação sexual de formas que outras pessoas consideraram asquerosas, que podem ou não envolver cordas, partes do corpo inusitadas e vegetais. A literatura vitoriana processou essa cisão da mentalidade moderna concebendo criações fantásticas como O Médico e o Monstro, de R. L. Stevenson, a história de um homem respeitável que desenvolve uma persona monstruosa, mas capaz de realizar todos os seus desejos proibidos. Só que este não foi, nem de longe, o único caso desse tratamento literário dado ao tema. Fala-se, com frequência, do lugar-comum do duplo na literatura, e a obra de Stevenson se encaixa nessa categoria, ao lado de William Wilson, de Edgar Allan Poe, O Duplo, de Dostoiévski, e O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Tudo isso já está bem documentado e não faltam comentários de teóricos da literatura sobre o assunto.

Podemos encontrar outro antecessor à ideia da sombra no conceito judaico do Yetzer HaRa, a “Inclinação para o Mal”. Como comenta o Dr. Alan Morinis num texto sobre isso, o Yetzer HaRa deriva de nossos impulsos “inferiores”, i.e. ligados ao nosso lado mais animalesco. Ou seja, por um lado ele é perigoso, pois seu objetivo é perverter o nosso lado superior e desviá-lo do caminho espiritual, que o judaísmo compreende como o cumprimento dos deveres do judeu, os mitzvot. Por outro lado, sem o Yetzer HaRa ninguém conseguiria fazer nada, “ninguém construiria casas, ninguém se casaria, teria filhos, nem faria negócios”. Apesar de tudo, então, essa influência tem uma função cósmica e nosso papel seria não matá-la, mas dominá-la, como você dominaria, por exemplo, um cavalo. 

Há outras duas questão interessantes ainda, dignas de nota: a primeira é que o Yetzer HaRa é criado sob medida para cada um e, quanto mais justa a pessoa, maior o seu Yetzer HaRa! A segunda é que as suas estratégias não são estúpidas, pela força bruta, mas sedutoras, recorrendo ao que o Rabbi Yosef Yozel Hurwitz chamou de “aberturas justas”. Entende-se que um ato perverso não necessariamente começa com uma vontade de cometer um ato perverso, mas como um impulso de fazer algo que, à primeira vista, parece bom — o famoso “que mal pode haver nisso?” 

Outro exemplo que chama a atenção é um trecho que observamos no texto do Ritual Mágico do Sanctum Regnum, de Éliphas Lévi, publicado em 1895, quando Jung era jovem (perdão do trocadilho), mas escrito muito antes. Esse texto, que eu já comentei brevemente num momento anterior, é uma série de reflexões, com alguns rituais, sobre os 22 arcanos maiores do tarô. Ao falar d’O Diabo, Lévi diz o seguinte: “É a síntese das forças desequilibradas: um demônio. O demônio é uma verdadeira força cega. (…) O demônio, um dia, com o desejo de parar o progresso de um adepto, rompeu uma roda de seu carro, mas o adepto obrigou o demônio a enrolar-se na roda e a agir como roda para ele, e assim continuou conduzindo, e alcançou sua meta inclusive mais cedo do que teria feito se o demônio o tivesse deixado só”.

Eu acho hilária a ideia de alguém usar o capeta como uma roda, mas parece muito claro que ele está descrevendo aqui algo que lembra muito o que viria a ser o tal shadow-work. É importante enfatizar, porém, que isso não significa que o trabalho de sombras é tão atemporal quanto alguns junguianos podem querer sugerir. Esse é um problema sério de qualquer disciplina que se pretenda resolver todos os problemas do mundo, pois vira o proverbial martelo diante do qual tudo vira prego. Por isso, eu tenho sérias objeções a aplicar seus conceitos para qualquer coisa que não seja a sociedade burguesa moderna, especialmente quando se trata de conceitos míticos ou religiosos anteriores à época de Jung.

O Yetzer HaRa judaico, apesar das semelhanças que permitem colocar ambas as coisas num mesmo campo conceitual, não é a mesma coisa que a sombra junguiana, nem deve ser entendido assim – não há nenhuma menção, até onde eu sei, ao Yetzer HaRa ser moldado em nossa fase formativa, por exemplo, nem ser criado pelo que rejeitamos. Por esse mesmo motivo, eu também não acho válido dizer que a “noite escura da alma” de São João Batista, que descreve um ponto no caminho do místico, necessariamente tem a ver com isso também, nem afirmar que um mito como o da Descida de Inana ao Submundo seria um poema escrito para tratar do confronto com a sombra. Ele pode ser usado alegoricamente para isso (a alegoria é, por definição, anacrônica), mas é preciso reconhecer, nesse gesto, que você está projetando um conceito moderno no passado. E isso nos leva à nossa próxima questão que é…

O problema do senso-comum

Modas e tendências são uma coisa bastante complicada, porque, por um lado, levam conceitos e ideias potencialmente interessantes a pessoas que, se não fosse pela moda, talvez pudessem acabar nunca tendo contato com elas… no entanto, ao mesmo tempo, isso se dá de forma diluída e não muito bem pensada, por via do senso-comum. Quando o senso-comum se apodera de um conceito, a impressão que se tem é que ele costuma esquecer que esse conceito não caiu do céu, mas sim surgiu na obra mais ampla de um autor ou autora, onde dialoga com vários outros conceitos dentro da teia maior de significados que é o seu sistema de pensamento — e, o que é pior, é preciso lembrar ainda que se trata de uma pessoa cuja existência estava inserida num dado contexto biográfico, histórico e social. Isso é irrelevante para conceitos ligados às ciências materiais: o meio social em que Newton, Boyle, Darwin ou Curie estavam inseridos não ajuda muito a entender a gravidade, a tabela periódica, a evolução das espécies ou a radioatividade… mas há um grau maior de complexidade quando tratamos de conceitos de humanas, ainda mais algo tão intangível quanto a psiquê. Por isso é preciso tomar muito cuidado, a fim de não confundir o mapa com o território, que é o que acontece quando esquecemos que os conceitos têm origens pontuais e passíveis de questionamento e passamos a tratá-los como fatos incontornáveis.

Eu peguei esse diagrama do Reddit e fico com a impressão de que, apesar de elegante, rola uma simplificação meio pesada aqui

O efeito negativo da diluição de um dado conceito como “trabalho com sombras” é que 1) a ideia deixa de ser entendida como um conceito potencialmente útil e passa a ser um fato – a sombra não é mais uma forma, dentre várias possíveis, de se entender a experiência humana, mas algo com uma existência objetiva; e 2) de repente, muita gente não necessariamente qualificada começa a querer ensinar essas coisas. Isso já é meio problemático dentro do âmbito da psicologia, porque temos vários casos da psicologia pop difundindo bobagens que a gente aceita como se fossem reais — tipo a tal da Síndrome de Estocolmo, por exemplo. Se quiser mais casos, basta sentar meia hora com um coach que você vai sair com material o suficiente para um livro inteiro.

Mas aqui, com o trabalho de sombras, temos uma situação ainda mais delicada que é essa interseção incômoda entre psicologia e magia, um território fértil tanto para magistas sem qualquer formação em psicologia quanto para terapeutas hippongos com cristais energeticamente imundos pendurados no pescoço. Por isso, com este texto, o que eu quero fazer é tirar um pouco essa aura objetiva em torno do conceito de sombra e trabalho de sombra, apontando para suas origens e desenvolvimento. Eu não tenho nada contra esse tipo de trabalho em si, a princípio, e acredito que possa ser muito produtivo, dentro de certos limites, mas me oponho fortemente a fazer coisas que você não sabe de onde vieram, ainda mais se isso vem após ter contato com elas via TikTok. Ao falarmos agora sobre o caminho que essas ideias fizeram, é possível, ao mesmo tempo, ter uma perspectiva mais ampla e chegar a uma bibliografia útil sobre sobre o assunto.

Uma recepção acidentada

A relação entre psicologia e ocultismo é bastante antiga. O próprio William James tem um livro interessantíssimo sobre misticismo (As Variedades da Experiência Religiosa), e vale lembrar que a hipnoterapia surgiu como um desdobramento das práticas de Franz Mesmer. Vários psicólogos do final do século XIX, como o próprio James, foram filiados à Society for Psychical Research, mas no começo do século XX, ainda mais depois de Freud, houve uma ruptura, a fim de que o estudo da mente humana pudesse ser levada a sério como ciência. O analista suíço Carl Gustav Jung (1875–1961), porém, foi na contramão, ao propor vários conceitos reconhecivelmente místicos, como o de sincronicidade e o que parece ser a dimensão metafísica dos arquétipos, além de ter interesse pelo estudo de assuntos como alquimia e gnosticismo. Por isso, ele é um candidato excelente para ser adotado como o psicólogo de estimação dos magistas… e, de fato, como diagnostica Nicholaj de Mattos Frisvold numa avaliação sobre o impacto de Jung no pensamento mágico moderno, “há algum tempo observamos uma epidemia junguiana no mundo das reflexões ocultistas, que adotam livremente termos e princípios junguianos como verdades vivas e realidades prontas que se encaixam perfeitamente à visão de mundo mágica”.

Apesar dessa relação de amor de Jung com o misticismo, a absorção junguiana pela magia não foi tão imediata como se poderia esperar. Spare é o grande exemplo de um magista da época que se apropriou de conceitos da psicanálise e sua relação (de amor e ódio) era com Freud. Diz Frisvold, a recepção de Jung na Europa foi muito pequena, na verdade, pois as principais correntes de pensamento do pós-guerra eram mais a teoria crítica, o marxismo e a hermenêutica, não havendo espaço para esse tipo de reflexão que Jung propunha. Foi do outro lado do oceano, na década de 1970, que Jung de fato explodiu. E isso faz todo o sentido.

Quando observamos as tendências da contracultura do final da década de 1950, que nos legou a obra literária dos beats como Ginsburg, Keroauc ou Burroughs, fica evidente a insatisfação dos jovens norte-americanos com o American Way of Life, as instituições tradicionais como o casamento, o exército e toda autoridade de modo geral, a repressão sexual e todas as tensões sociais que marcam a sociedade estadounidense do período. Tudo isso está muito bem documentado, acredito. Com os anos 1960 vieram também os experimentos com drogas psicodélicas de Timothy Leary e o surgimento da espiritualidade New Age de forma geral. Pela primeira vez, o norte-americano médio, de criação protestante e criado para ser um materialista, estava tendo contato com a espiritualidade hindu, com a meditação Zen, com o xamanismo, e tudo isso entra nesse caldo cultural que estava cozinhando na época. O materialismo, no entanto, é uma força muito difícil de dobrar, ainda mais quando aliada ao individualismo, e o resultado disso tudo foi muito dúbio, mas já falamos disso num outro momento.

Via de regra, quando a realidade prosaica se torna opressiva, observa-se uma tendência de recorrermos às grandes narrativas heroicas do mito (e também à magia), e talvez por isso a psicologia junguiana tenha se encaixado perfeitamente nesse novo contexto[2]. Um nome importante na divulgação de Jung foi ninguém menos que Joseph Campbell, autor do Herói de Mil Faces (1949) e proponente do conceito do monomito, a Jornada do Herói que seria o modelo arquetípico sobre o qual todas as histórias heroicas se constroem, supostamente. Há vários problemas com as ideias de Campbell e ele mesmo não é bem visto na academia, mas isso de modo algum diminuiu sua popularidade, ainda mais depois que George Lucas utilizou suas ideias reconhecidamente para compor o sucesso monumental que foi Guerra nas Estrelas.

Agora, o Dr. Robert Segal tem uma palestra de quase quatro horas sobre o porquê de Campbell não ser exatamente um junguiano, apesar de usar com frequência conceitos de Jung. Para o autor, há divergências consideráveis no pensamento entre os dois. Não vamos entrar em detalhes aqui, mas esse trecho da descrição de sua palestra já nos diz muito, eu acredito: “Campbell vê o mito como um antídoto à terapia; Jung vê o mito como um de seus aspectos”. Em todo caso, há uma crença no poder curativo da mitologia, o que pode se manifestar ritualmente na medida em que um ritual pode ser uma forma de encenação do mito. Quando colocamos Campbell na companhia dos psicólogos junguianos Ralph Metzner (que inclusive trabalhou com Leary e Ram Dass) e James Hillman, começa a surgir aí uma frente poderosa para a promoção do pensamento junguiano nos EUA desde a década de 1970. Não por acaso, quando Zweig e Abrams publicam o volume Meeting the Shadow, de que eu falei no começo deste texto, em 1991, Hillman e Campbell também fazem uma aparição dentre os autores convidados, com textos sobre trabalho de sombras (curiosamente a astróloga Liz Greene também está lá).

Passando agora para o lado mais reconhecidamente esotérico , um nome importante é o da junguiana Sallie Nichols, que publica em 1980, pela Samuel Weiser, grande editora do meio esotérico, o livro Jung e o Tarô: uma Jornada Arquetípica. Talvez esse tenha sido o grande divisor de águas. Nesse livro, Nichols, treinada no Jung Institute de Zurique, passa por todos os arcanos maiores do tarô, do Louco e do Mago ao Mundo, um por capítulo, onde fornece uma leitura aprofundada de cada arcano, entendendo-os como arquétipos, figuras ideais que encontram diversas manifestações neste mundo. Há comparações com a literatura, com as diversas mitologias, Cabala, alquimia, e o que mais for. Tudo que você pode esperar de junguiano está aqui… inclusive o conceito de sombra. Ao falar do Mago, ela diz o seguinte:

Mas a magia da consciência humana é uma arma de dois gumes. Podemos usá-la para modelar um corajoso mundo novo ou para abrir a caixa de Pandora de demônios escondidos e destruir o nosso mundo e toda a vida sobre o planeta. A tentação de abusar do poder é um aspecto oculto de qualquer figura arquetípica; mas visto que os poderes do Mago são tão primitivos, essa tentação é a sua bete noire especial. É talvez em reconhecimento desse fato que a “besta negra” do Mago seja especificamente retratada na carta número quinze, onde a conheceremos como a sombra do Mago, o Diabo.

Ela fala em “magia da consciência humana”, porque, apesar de estar publicando seu livro numa editora esotérica, Nichols parece não acreditar nas possibilidades da magia enquanto um fenômeno literal. Em vez disso, como muitas figuras nesse espaço híbrido aberto pelos junguianos, a rejeição ao materialismo não implica adotar uma visão mágica do mundo e assim exalta-se os poderes da arte, da metáfora e da imaginação. “Todos os artistas são mágicos”, diz ela, e “a palavra ‘magia’ é afim da palavra imaginação, ingrediente necessário para toda a criatividade nas artes e nas ciências”. Essa postura é mais confortável (e menos danosa à sua reputação) do que aceitar as possibilidades da magia real. Como alguém que já adotou essa visão, eu não a critico, mas não acho que seja das mais aceitáveis para quem quer de fato mergulhar em práticas mágicas. “Paradigma psicológico” só faz sentido para diletantes e quem olha muito de fora. Bora sair de cima do muro, gente.

Dito isso, podemos chamar atenção para a descrição que a autora dá, no final do parágrafo, do Diabo, no tarô, como a sombra do Mago. De fato, a postura de ambos, no tarô RWS, é a mesma, com uma mão apontada para os céus e outra para a terra (no Marselha, vale frisar, o gesto do Mago é diferente, no entanto). O que a autora quer dizer com isso, ela explica nos parágrafos seguintes, comentando como a inventividade do arquétipo do Mago oferece as tentações do abuso do poder e do conhecimento da ciência, representados pelo Diabo. E, apesar de escrever uma década antes do livro de Zweig e Abrams, ela descreve claramente o processo de integração das sombras em termos muito próximos do que esses outros autores chamaram de shadow-work. Considerando o quanto esse livro é conhecido (na Amazon BR há nada menos que 800 avaliações da edição em português, publicada pela editora Cultrix em 1988), eu imagino que ele possa ter tido um belo impacto em popularizar esses conceitos no meio esotérico. No mínimo, serve como predecessor para material como Tarot Shadow Work: Using the Dark Symbols to Heal (2000), de Christine Jette, voltado ao público leitor de tarô, mais especificamente do rolê New Age.

Aliás, falando em New Age, no final dos anos 1990, possivelmente no rastro de obras mais sérias como Meeting the Shadow, temos o nome infeliz da Debbie Ford. Ford não foi nem psicóloga de fato, mas uma coach (ugh) e autora de autoajuda que publicou um livro chamado The Dark Side of the Light Chasers em 1998. Depois de aparecer no programa da Oprah, seu livro virou um tremendo bestseller entre 2000 e 2001 (a edição brasileira, O Lado Sombrio dos Buscadores da Luz, saiu em 2001), o que catapultou sua carreira e levou a parcerias com um grande nome do esoterismo New Age (e uma figura controversa, para dizer o mínimo), Deepak Chopra, com quem ela escreve, em coautoria, o volume The Shadow Effect (2009). E é aqui que a coisa chega a níveis de bobagem que rivalizam o TikTok.

Eu não tenho absolutamente nada de bom para dizer sobre este livro. A autora não sabe do que está falando, mal há meia dúzia de menções a Jung (e sempre é via citações superficiais e sequer comentadas), e seu livro serve um punhado de platitudes com o pior da postura fofuxa, simplista e apropriativa do New Age, além de várias histórias, num teor hagiográfico que eu acho muitíssimo suspeito, de como a autora ajudou as pessoas com sua sabedoria. Porém, é preciso mencioná-lo aqui, porque seu impacto e popularidade são inegáveis. Quando somamos isso à popularidade dos nomes já mencionados como Campbell, além de Jordan Peterson, um junguiano que também ganhou espaço na mídia nos últimos anos, em parte por conta de suas polêmicas e seu apelo a um público incel, fica fácil entender como essa tendência a um junguianismo diluído parece ter tomado conta do imaginário dos últimos anos.

Eu sei que este texto deve soar bastante severo (uuuh, será que essa severidade é a minha sombra se manifestando?), por isso de novo eu vou frisar que eu não me oponho necessariamente ao pensamento de Jung, nem ao trabalho de sombras. Eu mesmo fiquei deslumbrado quando era jovem e li O Poder do Mito, o texto da entrevista que Campbell deu a Bill Moyers em 1988 (apesar de tudo que veio depois, Campbell merece algum respeito por seu trabalho com o impenetrável Finnegans Wake, de Joyce), e acredito que há muita coisa boa que pode ser tirada daí. Por isso recomendo a quem tem interesse no assunto que procure a obra de Jung, amplamente acessível em português, e mesmo o Meeting the Shadow, que também tem tradução sob o título Ao Encontro da Sombra (ed. Cultrix). O livro de Nichols, apesar de alguns erros factuais, também é uma leitura interessante, especialmente no que ela traça de associações entre o tarô e a literatura.

Odilon Redon – Germination (placa 2 de Dans le rêve)

O problema é entrar nisso por conta de tendência do TikTok (que é um ótimo lugar para vídeo engraçadinho, mas da ala esotérica de lá sai cada aberração) ou se sentir pressionado porque todos os seus amigos místicos estão fazendo também. E, de novo, vale lembrar que essa é uma das formas de lidar com esse lado da experiência humana. Existe, como vimos, uma perspectiva judaica, que vai tratar do Yetzer HaRa, assim como existe também uma perspectiva yógica. E nesse sentido ainda, algumas amigas já me relataram terem passado por algo parecido (mas que não era necessariamente um trabalho de sombras junguiano) em suas experiências no terreiro. A Cura Prânica também, vale mencionar, tem uma abordagem que trata tudo mais como um processo de purificação do que “integração” – entende-se que é possível se livrar desses comportamentos, projeções e pensamentos obsessivos sem precisar ficar remoendo-os e reforçando-os com sua atenção. É importante manter em mente que existe uma pluralidade de abordagens e cabe a você decidir qual faz mais sentido para a sua experiência.

Essas são as minhas recomendações quanto ao trabalho de sombras. Infelizmente, para quem procura algumas dicas mais práticas, advindas da experiência, eu mesmo não vou poder sugerir nada, porque pessoalmente prefiro outras abordagens possíveis. Mas acredito que o material que eu descrevi até aqui há de ser útil aos interessados no assunto.

Há perigos no trabalho de sombras?

Pode parecer meio alarmista falar em “perigos”, ainda mais quando boa parte das práticas ensinadas por aí são coisas simples como fazer listas (de coisas que te incomodam, de defeitos, de momentos em que você sentiu sua sombra vir à tona), manter um diário ou escrever uma carta para sua sombra. Pois bem, acho muito difícil que essas práticas possam fazer mal a alguém[3], mas há certos riscos onde você menos espera, por isso é importante estar ciente deles antes de embarcar nessa jornada.

O primeiro risco do trabalho de sombras, enquanto prática de introspecção, é o risco inerente a toda prática solitária. Suponha que você comece esse trabalho: conforme você explora seus traumas e as piores características de si mesmo, sentimentos muito fortes podem ser suscitados. Então, com a resolução oferecida pelo exercício (por exemplo, ao queimar a carta que você escreveu para sua sombra), vem algo como uma catarse. A intensidade da experiência pode fazer parecer que você teve um grande avanço, um breakthrough, ainda mais quando isso se repete de novo e de novo. Você sente que foi longe…. mas curiosamente quem convive com você não percebe nenhuma mudança. Então houve avanço mesmo? Sem acompanhamento de um terapeuta e na falta de uma forma mais objetiva de mensurar esses avanços, é muito fácil se iludir e decidir que o trabalho está feito, tipo “parabéns pra mim mesmo, eu consegui me integrar com a minha sombra, olha como eu sou foda”. E aí a pessoa sai por aí achando que tem a moral para ensinar os outros.

Por esse motivo é importante você ter o acompanhamento de um terapeuta nesse processo (e se essa pessoa for junguiana, tanto melhor, pois aí sua abordagem não vai se chocar com o que você quer fazer). O problema é quando outra pessoa, sem qualquer qualificação, resolve fazer cosplay de terapeuta… o que aí é pior ainda do que o trabalho solitário. E esse pseudoterapeuta pode muito bem ser a pessoa do parágrafo anterior que fez o trabalho sozinha, se deu esse diploma e se sentiu qualificada para orientar os outros. Ou pior, pode ser alguma figura proeminente em um dado círculo esotérico. Então você se abre para essa pessoa, revela as coisas mais obscuras e nefastas do seu coração e ela passa a usar isso contra você, da forma mais antiética possível. Isso nunca me aconteceu pessoalmente, mas já ouvi histórias, e na mão de gente que já tem uma tendência para virar líder de seita, ser confidente de trabalho de sombras vira mais uma arma para controle, abuso psicológico e talvez até mesmo chantagem. Por isso tomem cuidado com as pessoas em quem vocês confiam.

E então temos os perigos no nível mais energético. De novo, as práticas mais simples de escrever listas, diários e cartas provavelmente não devem causar grandes problemas nesse nível, mas existem outras recomendações mais dúbias. O primeiro perigo aqui é o que diz respeito às emoções fortes que podem vir à tona no processo. Emoções fortes, especialmente ligadas à raiva, medo, desprezo e libido são um alimento excelente para elementais negativos, parasitas e o que mais for. Eu recomendo tomar muito cuidado se você reparar que está se “viciando” num ciclo de estouro de emoções e catarse. E, claro, é sempre bom recorrer a precauções básicas de limpeza energética, como tomar banho e limpar e defumar o espaço depois desse tipo de experiência.

Alguns autores por aí recomendam meditações que envolvem dar uma forma à sua sombra. Meditações guiadas são muito legais, mas eu não acho bom sair fazendo qualquer meditação por aí. A imaginação não é um brinquedo tão inócuo quanto as pessoas costumam achar, e há um grande poder em sua capacidade de criar formas, de dar imagem às coisas – não por acaso ela é tão usada para técnicas mágicas, desde o treinamento do Bardon até a criação de servidores. Pode ser que não dê em nada (de novo, não quero ser alarmista), mas me parece perfeitamente possível que uma meditação má conduzida, ainda mais se for feita várias vezes, crie um veículo para manifestar aquele monte de lixo que se encontra na sua sombra. No trabalho com divindades, por exemplo, alguns autores entendem que você não acessa as divindades em si diretamente, mas cria formas astrais, moldadas pela sua imaginação, que então são preenchidas por essa energia, e a mesma coisa pode acontecer aqui. É mais ou menos como pegar uma bexiga e encher de chorume. E a última coisa que você quer é isso na sua cola o dia inteiro.

Outra técnica comum de sites que “ensinam” a trabalhar a sombra é buscar certas divindades, no geral femininas, as famosas “deusas sombrias”. Os nomes mais populares são Inana, Kali, Lilith e a Morrigan. Inana/Ishtar é uma deusa relativamente “tranquila” de se lidar, que teve inúmeros adoradores por toda a Mesopotâmia na antiguidade, e a minha experiência com ela sempre foi positiva, por isso de todas as recomendações essa é a mais benigna. Agora, quanto a Kali, eu não vou dizer que ela deva ser temida e evitada, afinal é uma das maiores divindades tântricas que há, mas se você nunca fez um trabalho devocional com nenhuma divindade hindu, se você não conhece nada da religião e cultura, me parece uma má ideia se envolver justo com Kali para esse tipo de trabalho psicológico, como recomendação de gente aleatória da internet. Quanto a Lilith e Morrigan, eu nem vou falar nada. Existe uma tendência de ocultismo fofuxo que pinta o trabalho com essas forças como uma coisa fácil e não como a experiência potencialmente visceral e a profunda responsabilidade que é de fato.

Nesse sentido, é importante ainda mencionar o trabalho de Linda Falorio, autora do livro The Shadow Tarot: Dancing with Demons[4], resultado de uma série de trabalhos mágicos empreendidos entre julho de 1983 e fevereiro de 1988, com base nas obras The Nightside of Eden, de Kenneth Grant, e Liber CCXXXI, de Crowley. Tendo explorado os chamados Túneis de Set, o equivalente qlifótico dos 22 caminhos da Árvore da Vida cabalística, Linda oferece uma série de imagens que representam “nossas energias da Sombra: instintos e emoções de eras remotas quando o Feminino detinha o poder e os humanos mantinham diálogo com o Reino Negro de Ereshkigal”. Por esse motivo, sua obra parece uma escolha óbvia para quem quer conduzir algum tipo de trabalho nesse sentido.

O prefácio, de Fred Fowler, comenta as aproximações com a sombra junguiana, mas critica o conceito como “pessoal ou individual demais para capturar o que eu quero dizer com o lado negro (darkside)”. Em todo caso, os termos em que Linda trata da questão são muito próximos daquilo que vimos nos textos sobre shadow-work, enfatizando a importância de integrar esse lado “negativo”, “sombrio”, atávico representado pelo seu shadow tarot e enfatizando que é reprimi-lo que nos leva “aos pequenos horrores diários que nos tomam de assalto” (p. 12).

Os primeiros três arcanos, Amprodias, Baratchial e Gargophias, do Shadow Tarot, equivalentes ao Louco, Mago e Sacerdotisa.

Ao mesmo tempo, ela dá um aviso importante:

Porém, trabalhar nesse reino das sombras não deve ser feito de forma leviana. É desaconselhável mergulhar nessas imensas geografias interiores até que a consciência diurna do magista seja plenamente integrada, com fortes limites ao ego, pois este reino dos Antigos está repleto de terror, repleto de poder, e Ela, a Deusa sem Rosto, Portadora do Sangue, é o depósito sinistro daqueles instintos primordiais em massa que sempre espreitam por trás das ilusões que nosso ego gera quanto à humanidade individual.

E, para cada arcano, ela descreve os perigos do trabalho “desequilibrado”. Com Amprodias, o Louco, corre-se o risco da fragmentação do ego, com Baratchial, o Mago, o risco de “zumbificação” (tornar-se um escravo da ciência e da cultura de massas), com Gargophias, a Sacerdotisa, de perder-se nas fantasias interiores, e por aí vai. Então, se você tem uma predileção por essas coisas dark e essa obra chamar a sua atenção (e ela vai chamar a sua atenção, pois seu tarô é de fato fascinante), cuidado nunca é demais.

E, por fim, temos o que é o perigo mais propriamente para quem procura seguir o caminho espiritual. Como vimos, Jung compara o trabalho de sombras com a etapa de nigredo, ou putrefação, na alquimia. Nigredo é a primeira etapa, que ressalta tudo que há de podre e desagradável. Por esse motivo, eu entendo que os maiores benefícios aqui hão de se dar num estágio inicial do caminho, quando você sofre mais agudamente com os problemas trazidos à tona pelo seu lado reprimido – uma pessoa com problemas de explosão de raiva que tenha quebrado coisas caras em casa, por exemplo, ou que chegue ao ponto de passar mal fisicamente por conta de uma crise de ciúmes. Mas o perigo, que não é um perigo exclusivo do trabalho de sombras, mas de tudo que envolve essa busca pelo autoconhecimento nesses termos, é o de você acabar se prendendo demais à personalidade. Há uma preocupação exacerbada com o “eu”, com quais seriam os “meus” defeitos, a “minha” sombra, o que “eu” reprimi e como isso se manifesta na “minha” personalidade. Até um certo ponto, esse processo pode ser produtivo, como dito, afinal qualquer desvio de caráter que você tenha no começo da jornada vai ser amplificado mais adiante, e os diversos gurus que caíram em desgraça por conta de desejos por poder, dinheiro ou sexo estão aí para provar. No entanto é difícil estabelecer com nitidez quando você passa do ponto e a coisa toda vira um tipo de narcisismo: Você se encanta tanto por si que sua atenção vai se concentrar só nisso, como se estivesse cuidando de um jardim, de um bonsai ou de um daqueles navios dentro de garrafas. A metáfora do jardim é uma que eu já vi em autores New Age por aí e eu acho profundamente irônica, porque um jardim, diferente de um pomar (para achar outra metáfora possível), não dá frutos. Uma comparação pode ser feita com o corpo físico, que também precisa de cuidados (inclusive para práticas espirituais mais exigentes), mas se você ficar obcecado com isso, você perde o foco do que é importante e vai chegar num ponto em que só quer poder exibir os músculos – que vão voltar para a terra assim que esta encarnação terminar.

Greg Kaminsky, autor de PRONAOS: Reflections on the Preliminary Practices of Buddhist Tantra from a Western Perspective, em certo momento de seu livro comenta um diálogo entre Pico della Mirandola e Ouspensky sobre a questão do famoso aforismo grego gnothi seauton, “conhece a ti mesmo” (o tempo todo ele busca fazer essa ponte entre o budismo Vajrayana e o pensamento esotérico ocidental). A conclusão a que Kaminsky chega é que “conhecer a si mesmo não é conhecer as idiossincrasias e peculiaridades de nós mesmos enquanto indivíduos, mas sim conhecer aqueles aspectos de nós mesmos nos quais nunca reparamos e que são mais ou menos semelhantes ao de todas as pessoas que já viveram”. Esmiuçar as idiossincrasias e peculiaridades de nós mesmos é justamente o que se faz nessas aplicações mais esoterizadas ou mitologizadas de certas tendências da psicologia que viraram moda desde a década de 1960, como vimos. Um tema recorrente de diversas tradições espirituais é a união entre todas as coisas – a ideia de que nós somos, no limite, unos uns com os outros e todos unos com o divino, um fato que a nossa mente não percebe até o trabalho real ser feito. A personalidade individual é uma forma de separação (Aldous Huxley, em A Filosofia Perene, também dedica todo um capítulo sobre essa questão) e, assim, quanto mais ela for enfatizada, mais difícil se torna superar esse obstáculo no caminho para a comunhão. Fica muito fácil, assim, perder de vista o fato de que existem coisas maiores que o indivíduo, existe o serviço aos outros (um ponto que é enfatizado tanto pelo budismo quanto por escolas ocidentais como a Quareia) e existe o divino para além dos “arquétipos”. Polir continuamente a sua personalidade, assim como dedicar-se excessivamente ao corpo físico ou a qualquer outro hobby, pode ser uma forma de evitar fazer o trabalho mais avançado de desenvolvimento espiritual – uma forma ainda mais danosa, porque cria essa ilusão de progresso.

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[1] Sobre a questão do desenvolvimento da leitura silenciosa, sua expansão com a invenção da imprensa (em oposição ao modo de recitação e leitura públicas) e a sua relação com o fenômeno do individualismo e da introspecção, eu recomendo a obra de Steven Roger Fischer, A History of Reading, e Walter Ong, Orality and Literacy.

[2] A crítica de Sarah E. Bond e Joel Christensen a Campbell e à sua ideia de monomito que fez sua fama, no artigo “The Man Behind the Myth: Should We Question the Hero’s Journey?”, segue por essas vias: “Ele deu ao público leitor do pós-guerra um arquétipo aparentemente atemporal para essa marca registrada americana que é o seu ‘individualismo robusto'”. Também ajudou a criar um nicho para a interseção entre cultura pop e psicologia pop, preparando o terreno para as explorações menos agradáveis da narrativa por pessoas como Jordan Peterson.”

[3] Para alguns mestres mais severos, é importante frisar que esse tipo de prática também não é considerada inócua, mas eu não quero alarmar ninguém, porque a internet gosta de tirar as coisas de contexto e criar superstições. No mais também, as pessoas geralmente tem problemas mais urgentes para resolver antes de se preocupar com isso, mas, dependendo da força do seu sistema energético, é preciso sim tomar cuidado com o que você escreve.

[4] Outra obra que trata magicamente o que poderia ser descrito como “trabalho de sombras” inclui o capítulo sobre demônios do Condensed Chaos, de Phil Hine. Apesar de não utilizar o termo, muito do que ele diz ali segue nas linhas do que foi discutido neste texto. Curiosamente, a obra de Linda Falorio consta dentre a bibliografia desse livro.



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