A Tábua de Esmeralda de Hermes Trismegisto
“É verdade, sem mentira, certo e muito verdadeiro” — assim começa um dos textos mais famosos do ocultismo. Mesmo que não tenha quase nenhum conhecimento do assunto, você certamente já ouviu alguma variação de “o que está em cima é como o que está embaixo”, que é uma das máximas herméticas presentes neste texto e com a qual todo metaleiro (ou fã do Jorge Ben) está bem familiarizado. Eu não sei porque ainda não falei dela até agora — talvez seja por ser uma obra com uma história profundamente conturbada e cujo texto, apesar de famoso, vem deixando perplexos os seus intérpretes há séculos, entre alquimistas, teurgistas e hermetistas no geral. Então, bote aí a sua trilha sonora favorita, que hoje nós vamos dar uma olhada nisso.
A Tabula Smaragdina, como ela é chamada em latim, ou Tábua de Esmeralda, é uma obra complexa, que condensa muita informação em pouquíssimas palavras. Sua autoria é atribuída ao sábio Hermes Trismegisto (Três-Vezes-Grande), a figura sincrética divina ou semidivina constituída pelo Hermes grego e o Djehuty egípcio (chamado de Thoth em grego) em meio ao caldo cultural que se formou no Egito do período helenístico, especialmente em cidades como Alexandria, mas que não é necessariamente nenhum dos dois deuses e sim uma outra coisa — um tipo de mestre espiritual que legou à humanidade os textos de base de sua doutrina, que ficou conhecida como o hermetismo, por motivos óbvios. Mais tarde, no mundo árabe medieval, profundamente impactado pela literatura hermética e pela filosofia grega no geral, surgiram duas noções curiosas também, como a de que ele poderia ser outro nome para Idris, um sábio da tradição islâmica equivalido ao patriarca Enoque, e a de que houve mais de um Hermes, com múltiplas encarnações. Sim, é uma zona.
Durante a Renascença, quando os textos herméticos começaram a ser redescobertos pela Europa ocidental (o padre humanista Marsilio Ficino foi o responsável por compilar e traduzir para o latim os textos que ficaram conhecidos como o Corpus Hermeticum), acreditava-se que eles eram muito, muito antigos e que Hermes teria sido contemporâneo de Moisés, com quem este teria aprendido as artes espirituais — Hermes, afinal, era um sábio egípcio e Moisés, segundo a narrativa do Êxodo na qual as pessoas acreditavam literalmente, cresceu no Egito, então fazia sentido na época traçar essa associação. Inclusive, essa ideia foi motivo para vários pensadores acreditarem que a Cabala teria origem egípcia (e a partir daí teve gente depois também enfiando o tarô no meio). Durante muito tempo essas ideias sobreviveram na cultura europeia, na medida em que não havia grande separação entre o que hoje consideramos um pensamento esotérico e a filosofia natural (i.e. a ciência material). O polímata jesuíta Athanasius Kircher, por exemplo, tinha grande interesse no assunto, tendo arriscado uma tentativa de decifrar a escrita hieroglífica em seu Oedipus Aegyptiacus por conta dessas questões espirituais, mas sua obra contava também com estudos em geologia, biologia, medicina e mecânica. No entanto, a fama do sábio mais velho que Moisés começou a se dissipar a partir do século XVII, já no tempo de Kircher, após Isaac Casaubon demonstrar que esse material textual que entendemos como a base do hermetismo clássico — o Corpus Hermeticum, o Asclépio e os fragmentos variados — era muito mais recente do que se acreditava. No século XVIII, com o divórcio das ciências espirituais e materiais que deu origem à química a partir da alquimia e à astronomia a partir da astrologia, o hermetismo já saía de moda e a sua filosofia, que durante muito tempo teve uma profunda influência sobre a cultura ocidental como um todo, foi relegada a esse lado marginalizado do pensamento que é o esoterismo. Mas basta já de contexto histórico.

Para quem tiver curiosidade sobre o hermetismo, eu recomendo, de novo, a leitura[1] do livro Hermetica: the Greek Corpus Hermeticum and the Latin Asclepius in a new English translation with notes and introduction, de Brian Copenhaver ou, em português, o Corpus Hermeticum em tradução e comentário de Américo Sommerman, editor-chefe da Polar Editorial. Essas obras abrangem o principal da literatura filosófica hermética, mas há outros fragmentos também no volume Hermetica II: The Excerpts of Stobaeus, Papyrus Fragments, and Ancient Testimonies in an English Translation with Notes and Introductions, de M. David Litwa. Foi nesse volume que eu baseei uma das minhas traduções da Tábua, que veremos logo abaixo. De resto, existe ainda um outro texto, encontrado na biblioteca de Nag Hammadi (cuja maior parte do material é gnóstico, mas não é como se houvesse separações rígidas entre hermetismo e gnosticismo na antiguidade), chamado O Discurso sobre o Oitavo e o Nono ou Discurso sobre a Ogdóade e a Enéade (NHC VI, 6), que parece fazer uma ponte entre os textos herméticos mais teóricos e as técnicas rituais dos Papiros Mágicos Gregos, como o uso de palavras bárbaras e entoar vogais.
E, para quem tem um interesse mais prático, o Sam Block, do blog The Digital Ambler, tem um texto em quatro partes, no formato de uma F.A.Q. sobre hermetismo, que abrange questões de visão geral e história, textos, doutrina e prática. Ele também esteve num episódio, em duas partes, do podcast What Magic is This?, do Douglas Batchelor, junto com o Reverendo Erik Arneson, do blog e podcast Arnemancy, que eu recomendo imensamente para quem tem facilidade com o inglês.
Ainda quanto à bibliografia, o que eu não recomendo de forma alguma é um livrinho chamado The Emerald Tablets of Thoth the Atlantean, de um tal Dr. Maurice Doreal (nome real Claude Doggins), publicado na década de 1930 como a tradução não apenas de uma tábua, mas várias tábuas, que teriam sido escritas na data ridícula de 36.000 a.C. (mais de 30 mil anos antes da invenção da escrita). Esse livrinho, inteiramente inventado por Doggins, perpetua a fantasia, absurda e meio racista, mas popular na época, de que Hermes seria um Rei-Sacerdote que fugiu da Atlântida quando esta afundou e então criou uma colônia atlante no Egito (porque, óbvio, um povo africano jamais poderia produzir uma civilização tão avançada sem a intromissão de povos lendários ou alienígenas). A ideia, comum em alguns meios esotéricos hoje, como se observa em vários vídeos do YouTube, de que a fórmula ZIN-URU seria um mantra hermético de poder deriva desse livro, por exemplo. Eu não gosto de arriscar ser injusto, não vou dizer categoricamente que essa obra é 100% desprovida de valor, mas qualquer um que esbarre nela procurando entender a Tábua de Esmeralda real vai sair mais confuso do que qualquer outra coisa. Qualquer mérito que esse livro possa ter deve ser julgado com base apenas numa leitura detida de suas palavras (que eu não tenho tempo, nem disposição para fazer agora) e não nas suas alegações de antiguidade ou de afiliação com o hermetismo mais amplo.
Eu pessoalmente gosto de pensar em Hermes Trismegisto como algo semelhante ao Padmasambhava oriental, o fundador do budismo tibetano. Assim sendo, mesmo que os antigos textos herméticos não tenham sido literalmente escritos por uma entidade histórica chamada Hermes Trismegisto — e, a bem da verdade, nem sempre concordem em tudo entre si — , é possível identificar algo como sua inspiração neles e sua presença serve para unificar a egrégora, por assim dizer. Eu começo falando já disso, porque é importante ter essa noção em mente, afinal, como muitas coisas no ocultismo mais clássico, a história em torno da Tábua de Esmeralda é fantasiosa ao extremo e eu não quero que esse caráter lendário (que é difícil de levarmos a sério hoje) leve alguém a desconsiderar o material. Eram outros tempos, e eu acredito que estamos num ponto da história em que a historicidade de um dado texto ou prática não tem necessariamente qualquer peso sobre a sua validade. Teve uma época em que essas alegações de antiguidade eram necessárias para convencer os seus praticantes, como observamos desde os maçons, que alegavam descender dos construtores do Templo de Salomão, até os primeiros wiccanos, que acreditavam estar praticando um culto ancestral de bruxas que nunca existiu… e, bem, o livro do Doggins também entra nesse balaio[2]. Mas hoje essas coisas não são mais necessárias. A própria Bíblia é um material bem menos antigo e com uma história de composição bem mais mundana do que se imagina, mas isso não faz desse texto menos poderoso, em todos os sentidos da palavra.
Agora sobre a tábua de fato: reza a lenda que o filósofo neopitagórico Apolônio de Tiana, que viveu no séc. I d.C., teria encontrado uma câmara secreta sob a estátua de Hermes em sua cidade, Tiana ou Tuwanuwa (hoje território da Turquia). Nessa câmara, um cadáver sentado num trono de ouro tinha em mãos uma tábua constituída de uma pedra verde, talvez esmeralda ou mesmo turquesa, de onde deriva o texto em si, posteriormente publicado em uma obra assinada por “Balinas”, que é o nome de Apolônio em árabe. Essa obra se chama Kitāb sirr alḫ alīqā (Livro dos Segredos da Criação) e teria sido composta entre 600 e 750 d.C., mas não se sabe se é uma obra original em árabe ou se ela se baseia em algum texto grego perdido. Durante muito tempo, os ocultistas tentaram atribuir a esse livro uma origem antiga, que fosse condizente com a suposta antiguidade atribuída ao próprio Hermes, mas nunca surgiram evidências que pudessem comprovar isso. Para quem tiver interesse na história do texto, o Dr. Justin Sledge, que toca o canal Esoterica no YouTube, tem um videozinho de meia hora excelente sobre o assunto, que eu recomendo também a todos os interessados sobre o assunto, porque não quero ter que repassar tudo neste texto. É coisa demais e a história é muito complicada. Há um outro texto árabe posterior que apresenta uma versão mais resumida da Tábua, tem um verso, por vezes omitido, que ninguém entendeu muito bem o que queria dizer (como se o resto do texto fosse tranquilo, né), e a sua recepção no mundo europeu também não foi fácil.
O texto da Tábua foi depois reproduzido em outros livros árabes, com algumas variações, e traduzido para o latim por mais de um tradutor, mas especialmente um certo Hugo de Santalla, tradutor espanhol do séc. XII responsável por trazer ao mundo europeu diversos textos de filosofia, magia, astrologia e alquimia do mundo árabe. Outras traduções latinas posteriores foram surgindo, e teve ainda a ocasião em que ninguém menos que Isaac Newton realizou uma tradução do latim para o inglês. Enfim, como dito, para quem gosta de acompanhar as complicações de sua recepção textual, convém conferir o vídeo do Dr. Sledge.
Sem mais delongas, portanto, a minha tradução do texto… que na verdade são duas. A primeira versão é o texto que aparece tal como publicado em Nuremberg em 1541, que serviu de base para a tradução de Newton. A segunda tradução é a que consta no volume de Litwa, baseada na tradução latina do século XII, porém corrigida com consultas ao original árabe.

A Tábua de Esmeralda de Hermes Trismegisto
Primeira versão
É verdade, sem mentira, certo e muito verdadeiro:
O que está embaixo é como o que está em cima e o que está em cima é como o que está embaixo, para realizar os milagres de uma única coisa.
E assim como todas as coisas são e surgiram por contemplação do Uno, todas as coisas nascem deste Uno, por adaptação.
O Sol é o pai, a Lua é a mãe, o vento o carregou em seu ventre, a Terra é sua nutriz.
O Pai de toda perfeição do mundo está aqui. Seu poder é pleno, se convertido em Terra.
Separarás a Terra do Fogo, o sutil do denso, suavemente e com grande perícia.
Sobe da Terra para o Céu e desce novamente à Terra e recolhe a força das coisas superiores e inferiores.
Desse modo obterás a glória do mundo. E toda obscuridade há de se afastar de ti.
Sua força está acima de toda força. Pois vence todas as coisas sutis e penetra em tudo o que é sólido.
Assim foi o mundo criado.
Esta é a fonte das adaptações milagrosas aqui estabelecidas. Por esta razão sou chamado Hermes Trismegisto, pois possuo as três partes da filosofia do mundo inteiro.
O que eu disse da Obra Solar está findo e completo.
Segunda versão
É verdade, sem mentira, certo e muito verdadeiro: O que está em cima é como o que está embaixo e o que está embaixo é como o que está em cima, para realizar os milagres de uma única realidade.
E assim como todas as coisas são e surgiram por intermédio do Uno, todas as coisas nascem deste Uno, por um único processo de adaptação.
O Sol é o pai, a mãe é a Lua.
O vento o carregou em seu ventre, a Terra é sua nutriz.
O Pai de todos os talismãs do mundo está aqui. Seu poder é pleno.
Se voltada à Terra, separará a Terra do Fogo, o sutil do denso.
Suavemente e com grande perícia, ela sobe da Terra para o Céu e desce novamente à Terra e recolhe a força das coisas superiores e inferiores.
Desse modo obterás a glória do esplendor do mundo; toda obscuridade, portanto, há de se afastar de ti.
Esta é a forte força de toda força, pois conquista toda realidade sutil e penetra em tudo o que é sólido. Deste modo foi o mundo criado.
A partir desta fonte derivam as correspondências maravilhosas cujo modo de operação está aqui estabelecido.
Por esta razão sou chamado Hermes Trismegisto, pois possuo as três partes da filosofia do mundo.
Agora, o que eu disse da operação do sol está completo.
Comentário
Bem, não é fácil comentar ou traduzir um texto tão conturbado, para o qual sequer temos uma versão definitiva. Foi por esse motivo que eu decidi oferecer duas versões, entre as quais há muita coisa em comum, mas algumas divergências significativas, e vale a pena tratarmos delas aqui. A interpretação mais recorrente é a de que a Tábua descreve o processo para a preparação alquímica da Pedra Filosofal. Litwa, em nota, cita um parágrafo de Bernard D. Haage, em Dictionary of Gnosis & Western Esotericism:
A Pedra Filosofal tem o Sol (Fogo, o Enxofre dos filósofos, que confere uma cor dourada) como seu pai, a Lua (Água, o Mercúrio dos filósofos, que confere uma cor prateada e é a matriz da Pedra) como mãe. O vento (Ar, o “Volátil” que é o vapor que sobe de uma destilação aquecida) faz com que a Pedra paire como uma semente aérea, e a terra (…onde desenvolvem-se os minerais, como o húmus mercurial da Pedra) alimenta a Pedra e a leva à sua maturidade.
Isso permite entender o miolo do texto, com a presença dos quatro elementos e os princípios alquímicos centrais (ouro e prata, sal, mercúrio e enxofre). É a Pedra que separa a Terra do fogo, o sutil do denso, recolhe as influências superiores e inferiores, vence todas as forças sutis e penetra em tudo que sólido. Vale lembrar que a alquimia era não apenas um trabalho materialista para se obter ouro, nem uma disciplina puramente espiritual ou psicológica, como costuma ser uma certa leitura moderna (o canal Esoterica tem um outro vídeo sobre o assunto também), mas ambas as coisas ao mesmo tempo, e a Pedra Filosofal descreve tanto uma substância milagrosa quanto algo que poderíamos considerar equivalente à ideia oriental de Iluminação.
Entre as duas versões, a principal divergência nesse sentido é na quebra de frases – “seu poder é pleno, se convertido em terra. Separarás… etc” versus “seu poder é pleno. Se [a pedra] for voltada à terra, separará… etc”. Essa ambiguidade entre o uso da segunda e a terceira pessoa pode parecer problemática, mas quem tiver qualquer familiaridade com o Sepher Yetzirah não há de estranhar a ideia de manter as duas possibilidades em mente ao mesmo tempo – o próprio Yetzirah, como comenta Kaplan, é ambíguo de modo que é possível lê-lo como uma descrição de como Deus moldou o mundo e como instruções para fazer o mesmo. Não vou dizer de um ponto de vista acadêmico que é isso que acontece textualmente aqui, mas, de uma perspectiva esotérica, eu acho a ambiguidade interessante. Afinal, “assim foi o mundo criado” – e recorrendo a essas técnicas, você igualmente será capaz de moldar a sua realidade.
No mais, a grande diferença entre as duas versões é que a primeira fala em “o pai de toda perfeição” e a segunda diz “pai dos talismãs”. De novo, apesar de essa confusão ser meio perturbadora, ela faz algum sentido. O original, pelo que se entende, de fato dizia talismãs, esta sendo uma palavra árabe (tilasm, tilsim ou tilism) que denota objetos mágicos – geralmente, no contexto da magia árabe, imagens usadas para captar as energias superiores dos planetas, como se encontra no Picatrix. Porém, “talismã” deriva do grego télesma, “completude” ou “consagração”, ligado ao verbo teleo, “eu conclo” e télos, “fim, objetivo”. Provavelmente este é o motivo para o desencontro nas traduções.
De resto, os princípios monádicos do hermetismo, a união suprema da divindade que faz a interconexão de todas as coisas – que é, inclusive, o que possibilita que a magia funcione, a partir de uma perspectiva hermética – estão bem expressos em qualquer versão desse texto.

Aplicações
Beleza, tudo muito bonito, muita sabedoria, mas agora o que a gente faz com isso? Eu imagino que ninguém aqui pratique alquimia clássica, então essa parte aí vai ter que ficar de fora. Bem, além de usarmos esse texto para orientarmos nossa filosofia mágica, é possível empregá-lo na prática. Por exemplo, Dennis William Hauck, que toca um canal sobre alquimia no YouTube, tem um texto que trata da meditação contemplativa sobre a Tábua de Esmeralda em que desmembra a simbologia da arte Tabula Smaragdina, de Matthieu Merian, presente em Opus Medico-Chymicum (1618), de Daniel Mylius – uma meditação por meio da qual seria possível “absorver parte de seu poder”, como ele diz.
Quanto ao uso recitativo do texto em si, a primeira vez que eu vi algo do tipo foi no blog de um ocultista chamado David Crowhurst chamado Septentriones, em que ele recomenda recitar a Tábua em rituais associados a magia astrológica — a saber, rituais de magia com as estrelas fixas. Na época eu achei um pouco estranho quando li, mas depois pensei “por que não?”. Fórmulas verbais enigmáticas, de forte teor poético e conteúdo cósmico, não apenas mobilizam nossos afetos como constituem padrões que permitem direcionar as energias mágicas manifestadas em um ritual – vide os salmos ou os hinos órficos. Para quem pratica rituais de inspiração hermética, como magia astrológica, invocar o poder da Tábua de Esmeralda por meio de sua recitação, possivelmente repetida, pode ser uma forma de partilhar do poder do próprio Hermes, cuja reputação por comandar espíritos e manipular forças celestes é bem conhecida na tradição. Quem quiser pode usar uma das minhas traduções, elaborar a sua própria ou recorrer a alguma das versões em latim.
Uma outra possibilidade diz respeito à invocação de Hermes como um tipo de mestre espiritual. Nas tradições do Oriente, é comum que um guru (não no sentido de um mestre encarnado, mas as grandes cabeças por trás de tradições e linhagens inteiras) seja invocado por meio de mantras e preces específicas, como é o caso de Padmasambhava, por exemplo. Algo semelhante pode ser feito com Hermes Trismegisto – Sam Block comenta como Hermes pode ser um objeto de devoção, como um tipo de “herói-profeta deificado” – e a Tábua de Esmeralda fornece um belíssimo material para esse trabalho diário, complementando a prece de Hermes a Deus que aparece no Poemandro. Quem tem interesse no hermetismo, mas chegou a ele pela leitura mais clássica (em vez de obras neo-herméticas como Bardon ou a magia da Golden Dawn) pode se sentir meio perdido pela falta de um passo a passo prático de “como ser um hermetista” e aí esse tipo de prática diária pode servir para começar e criar afinidade com a egrégora.
***
[1] O livro mais famoso associado popularmente ao hermetismo é o Kybalion e, bem, há toda uma polêmica em torno dessa obra, que não é representante do hermetismo clássico, apesar de sua roupagem e popularidade, mas sim uma releitura da Tábua de Esmeralda pelo viés do New Thought, uma corrente esotérica do século XIX. Eu já comentei a minha opinião sobre ele previamente, por isso não preciso me repetir.
[2] Eu sei que corro o risco da contradição ao afirmar que não tem problema se os textos clássicos do hermetismo não foram escritos pelo próprio Hermes, pois podem contar com a sua inspiração como mestre espiritual, e aí menosprezar um texto moderno que poderia também ser interpretado por linhas semelhantes. Por isso, OK, enquanto eu não faço uma leitura ou investigação (mágica, inclusive) mais detida, eu posso dar o benefício da dúvida ao material do Doggins, ao mesmo tempo em que mantenho um bom grau de ceticismo. Vale lembrar, porém, que a prática da pseudiepigrafia era comum na antiguidade, mas no séc. XX cheira à golpe ou desonestidade intelectual, por isso a minha má vontade em relação a essa obra. Também não ajuda que tanto jovem místico New Age tenha lido esse volume de forma totalmente acrítica.