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Uma prática com quatro guardiões dos PGM

Uma prática com quatro guardiões dos PGM

Leitura em 11 min
Fonte: O Zigurate

Eu escrevi um texto aqui um tempo atrás sobre a magia das quatro direções. Foi um desses meus textos mais reflexivos, em que a gente traz à tona um monte de informação para comparar, em vez de passar algo mais prático. Nosso ponto de partida na ocasião foi o Ritual menor do Pentagrama e a sua distribuição bem conhecida dos quatro arcanjos nas quatro direções de acordo com os elementos. Naquele texto, vimos algumas outras atribuições elementais possíveis e a lógica por trás delas, incluindo a do sistema hindu e do sistema da Quareia.

Para quem se diverte em desconstruir sistemas mais fechados, recomendo ainda um post do Jacobus Swart em que ele aponta para a existência de vários outros modos ainda de distribuição dos quatro arcanjos de acordo com os elementos e direções cardeais… por isso, se você é como eu e também acha estranho Uriel, literalmente o fogo de Deus, ser um anjo de terra, sinta-se justificado. No fim, a conclusão à qual eu cheguei era que, se você não estiver trabalhando com um modelo fixo, talvez o mais produtivo seja partir do pressuposto que a distribuição dos elementos varia conforme o local onde você está trabalhando, e aí agir de acordo.

Quem nos orientou naquela ocasião foi a Benebell Wen, autora de um post muito ilustrativo sobre o assunto que me serviu de base, onde faz a comparação entre diferentes sistemas… e novamente vou citar o nome dela aqui (que está rapidamente virando uma referência para mim dentre autores recentes), porque esses dias eu andei lendo o seu The Tao of Craft: Fu Talismans and Casting Sigils in the Eastern Esoteric Tradition. Nesse livro, que tem como tema a construção de talismãs daoístas, aparece uma fórmula também para o trabalho com as direções, já que se trata de uma prática recorrente entre tradições variadas. Na tradição daoísta da qual Wen parte, trabalha-se com quatro guardiões conhecidos como os Senhores dos Quatro Palácios Imperiais: a Tartaruga Negra, a Fênix Vermelha, o Dragão Azul (ou Verde) e o Tigre Branco. Cada um deles está associado a certos poderes (clarividência, clauriaudiência, o poder de causar mudanças e de controlar eventos), a um dos cinco elementos do sistema Wuxing e a uma das direções, sendo invocados numa prece preliminar para inaugurar os trabalhos.

Sì Xiàng, os quatro guardiões ou quatro símbolos (fonte).

A prece é bastante simples e começa com o praticante declarando seu nome mágico e sua linhagem, se houver, e então dirigindo-se aos guardiões, um por um: “Espírito da Fênix Vermelha, comandando o Fogo no Sul, eu te invoco agora e presto homenagem a ti. Envia-me o poder de criar mudança e causar crescimento. Espírito do Dragão Azul, comandando a Madeira no Leste, etc, etc”. Deu para entender como funciona. Para quem tem interesse em mergulhar mais fundo no assunto, fica aí a indicação do livro dela, que é dos mais fascinantes.

Eu já vinha pensando e experimentando modos de trabalhar com forças guardiãs das direções que não fossem os quatro arcanjos e entre esse livro da Wen e algumas coisas que andei vendo nos Papiros Mágicos Gregos, tive um insight que resultou no roteirozinho que vou passar para vocês agora. A ideia aqui é trabalhar com dois componentes principais: 1) certos nomes que aparecem nos Papiros Mágicos Gregos (Arbathiaō, Ablanathanalba, Sesengenbarpharanges e Akrammachamarei), 2) a distribuição das funções das direções de acordo com as 12 casas zodiacais e 3) montar um sistema que seja independente das correspondências dos elementos, que podem ser sobrepostos nesse esquema tranquilamente. Assim, eu esbocei as fórmulas e comecei a testar e fazer os ajustes. A versão a que eu cheguei é a que eu compartilho com vocês abaixo:

Papiro copta dos séculos V-VI d.C. contendo um amuleto contra febre (Cologne Inv. 10208). Nele aparecem os nomes Ablanathanalba e Akrammachamarei (fonte aqui).

Uma prática com quatro guardiões dos PGM

(Começar no centro do espaço, voltando-se para o leste. Entoar as vogais)1

IAŌ AŌI ŌIA AIŌ IŌA ŌAI

(Dar um passo à frente, no leste, fazendo a saudação com a mão direita erguida e o pé direito para a frente)

Eu te saúdo, Ó guardião do leste, direção onde nasce o sol, senhor da iluminação, abundância e sabedoria. Pela graça de IAŌ, eu te invoco, pois sei teu nome secreto, ARBATHIAŌ (sinal de silêncio, levando o dedo indicador direito aos lábios). No leste eu te saúdo, te invoco, presto minha homenagem e solicito tua proteção nos portais que, pela ordem divina, estão sob teu poder (toca o punho direito no peito).

(virar na direção horária para o sul, gesto de saudação)

Eu te saúdo, Ó guardião do sul, direção onde o sol se extrema, senhor do bom e mau dáimon, a dissolução do espírito. Pela graça de IAŌ, eu te invoco, pois sei teu nome secreto, ABLANATHANALBA (sinal de silêncio). No sul eu te saúdo, te invoco, presto minha homenagem e solicito tua proteção nos portais que, pela ordem divina, estão sob teu poder (toca o punho direito no peito).

(virar na direção horária para o oeste, gesto de saudação)

Eu te saúdo, Ó guardião do oeste, direção onde o sol se põe, senhor da terra sem retorno. Pela graça de IAŌ, eu te invoco, pois sei teu nome secreto, SESENGENBARPHARANGĒS (sinal de silêncio). No oeste eu te saúdo, te invoco, presto minha homenagem e solicito tua proteção nos portais que, pela ordem divina, estão sob teu poder (toca o punho direito no peito).

(virar na direção horária para o norte, gesto de saudação)

Eu te saúdo, Ó guardião do norte, direção onde o sol se extrema, senhor das raízes e desejos, boa e má fortuna. Pela graça de IAŌ, eu te invoco, pois sei teu nome secreto, AKRAMMACHAMAREI (sinal de silêncio). No norte eu te saúdo, te invoco, presto minha homenagem e solicito tua proteção nos portais que, pela ordem divina, estão sob teu poder (toca o punho direito no peito).

(fecha o círculo e volta ao centro, mão direita apontando para cima)

Por fim, assumo meu lugar no centro deste espaço, fazendo a ponte entre o céu e a terra. Que as bênçãos de Deus e todos os seres divinos estejam sobre os seres das quatro direções: leste, oeste, norte, sul. IAŌ SABAŌTH ARBATHIAŌ SESENGENBARPHARANGĒS ABLANATHANALBA AKRAMMACHAMAREI AI AI IAŌ AKS AKS INAKS.

* * *

Vamos agora explicar o ritual para vocês não acharem que eu estou tirando tudo da cartola. Para as fórmulas da distribuição que caracterizam cada direção, eu me orientei por um arranjo que distribui os grupos de casas astrológicas, haja visto que a astrologia é uma das artes herméticas, e os PGM são uma das bases da magia hermética. As principais casas de um mapa astral são chamadas de angulares e são a 1, referente ao ascendente, a 4, do IC (immum coeli, fundo do céu), a 7, descendente, e a 10, com o meio do céu. Mas em vez de usar subdireções para as outras casas, eu agrupei a função das outras casas na mesma direção, assim fica o leste com as casas 1 a 3 (a casa do eu, a das finanças e a da vizinhança e comunicação), o norte com casas 4 a 6, o oeste com 7 a 9 e o sul com 10 a 12. Assim podemos trabalhar atribuindo um sentido às direções sem dependermos dos elementos clássicos, o que nos oferece uma base estruturante menos variável. Isso também não é nenhuma inovação minha, mas tem já um precedente astrológico, pelo menos na astrologia védica. Já vou mencionar a utilidade dessa distribuição.

Agora, quanto aos nomes, como disse, eles derivam dos PGM. Se você examinar bem esse material, há uma duplinha que está sempre presente, Ablanathanalba e Akrammachamarei. Os dois nomes aparecem o tempo inteiro, frequentemente pareados, como nos exemplos PGM VII. 311-16, 643-51, 1017-26, PGM VIII. 1-63, PGM XII. 107-21, 153-60, 182-89, etc. Nos papiros cristãos, acontece de eles aparecerem juntos também, com o primeiro à direita do magista e o segundo à sua esquerda, como no feitiço 117, “Spell invoking Michael and the heavenly powers for business and other purposes” (texto Moen 3). Partindo da ideia de que você vai estar voltado para o leste, fica fácil distribui-los nas direções norte e sul. Um terceiro nome que volta e meia aparece junto, como Betz reconnhece, é Sesengenbarpharangēs (PGM III. 1-164, PGM XLIII. 1-27, PGM CVI.1-10). Aqui, no entanto, eu me desviei do papiro cristão, que põe o Sesen na frente e um outro nome atrás, Damdamenneos (que só aparece nele). E o motivo disso é porque estou usando como referência o “feitiço da contenção da luz” de PGM IV. 930-1114 e que aparece na conclusão do nosso ritual: IAŌ SABAŌTH ARBATHIAŌ SESENGENBARPHARANGĒS ABLANATHANALBA AKRAMMACHAMAREI AI AI IAŌ AKS AKS INAKS. Se entendermos o quarto nome como Arbathiaō, e pensarmos na sequência frente-trás, direita-esquerda (como é no RmP e na fórmula babilônica dos quatro deuses), chegamos a esse arranjo.

Ablanathanalba e Akrammachamar(e)i num talismã decrescente dos PGM.

É óbvio que não se trata de um sistema definitivo e inquestionável, porém, por estarmos lidando com uma matéria-prima que é naturalmente mais fluida como é o caso dos PGM, eu me sinto mais livre para experimentar (obviamente sob a orientação do Meu Pessoal… eu não faço nada na louca) do que com algo mais cristalizado. Importante mencionar também que o nosso querido Sam Block já ofereceu um ritual nessa linha (link aqui), mas imagino que ele não deva considerar um desrespeito ao trabalho dele eu oferecer uma distribuição dos nomes diferente da que ele usa. Como disse, os PGM oferecem essa possibilidade.

O motivo de eu disponibilizar esse tipo de ritual é porque não faz sentido eu desenvolver uma prática e mantê-la guardada só para mim, claro. Imagino que mais pessoas possam querer fazer algo nesse sentido, inclusive meus alunos… e eu mesmo tenho cada vez mais desencorajado o uso de rituais de mil e uma utilidades, como é o RmP, em prol de práticas mais atomizadas, com rituais separados e específicos para os guardiões das direções, para limpeza do espaço e da aura e trabalho preliminar anterior a uma conjuração. O que este ritualzinho faz é estabelecer uma relação com essas forças, sem ser num contexto angelical, demoníaco ou elemental. Ao saudar e homenagear os quatro guardiões, você vai firmando essa amizade, que também confere ao ritual mais poder e proteção, como se pede no texto dele.

No mais, há uma aplicação adicional aí. Como há funções distintas para cada direção, ligadas às funções das 12 casas astrológicas, temos aqui também, portanto, as direções cardeais nas quais podemos nos voltar ao fazer certos trabalhos. Como agrupamos a casa 2 junto com a 1 no leste, então um ritual de prosperidade (domínio da casa 2) seria feito virado nessa direção, ao passo que um trabalho amoroso poderia ser feito voltado para o norte (casa 5, dos prazeres) ou oeste (casa 7, do casamento). O norte também seria útil para um trabalho de cura (casa 6) e o oeste oferece a possibilidade ainda para práticas mais contemplativas (casa 9). Trabalhos tanto construtivos (casa 11) quanto destrutivos (12) ficam no sul, e assim por diante. Aí é apenas uma questão de se voltar para a direção mais apropriada ao trabalho a ser conduzido, dentro desse sistema, e pedir para o seu respectivo guardião abrir os portais para você, facilitando a passagem de espíritos e energias por ali.

Por fim, vale lembrar que este aqui não é um ritual de banimento, no sentido de ritual preliminar baseado no RmP. Ele não serve para limpar o espaço ou a sua aura, por exemplo, nem expulsar entidades ou trabalhar a alquimia interna do seu equilíbrio elemental. Para isso, recomendo o uso de rituais mais especializados, que serão, inclusive, mais eficazes nisso do que o RmP. Eu mesmo já ofereci algo nessa linha de um ritual de banimento usando elementos dos PGM, três anos atrás (neste post aqui) e, embora eu não renegue esse ritual que eu mesmo compus, usei e divulguei, meu entendimento dos rituais preliminares avançou e foi sendo refinado desde então. Hoje, em vez de um único ritual multiuso, acho mais produtivo, a longo prazo, ter rituais separados para cada uma dessas funções. Se você já tem uma técnica de limpeza no seu repertório e procura alguma prática de proteção e diálogo com as quatro direções, sem se comprometer a um arranjo específico dos elementos, eu te convido a testar o meu ritualzinho.

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Atualização: nosso amigo Petter Hübner, em seus experimentos com devoção helênica e magia dos PGM, testou o meu ritual e, a partir dele, elaborou o seguinte disco como sua representação, incluindo também os nomes dos ventos e o de Hera, a deusa que tem domínio sobre os ventos no Hinário Órfico. Ele o divulgou em seu perfil no tuíter e eu o estou reproduzindo abaixo:

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  1. Estamos partindo do sistema de pronúncia no qual a vogal marcada como Ō é pronunciada “ó” e o Ē como “é”. As voces magicae em maiúsculas eu enuncio de modo cantado. ↩︎
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