Transe e Possessão
Luis da Câmara Cascudo
trecho de Meleagro
No Catimbó não se diz que um “mestre do Além” se materializou ou se incorporou. Diz-se “acostou” e “desacostou”.
Outrora somente o “mestre”, o “mestre da mesa”, tinha a honra de ficar atuado, servindo seu corpo para à comunicação com um “mestre do Além”, invisível e sabedor. Só o “mestre” cantava, falava, receitava e dirigia. Hoje os “mestres do Além” democratizaram-se, “Acostam” em muita gente mas são sempre orientados, perguntados pelo “mestre da mesa”. As receitas medicamentosas são privativas do “mestre curador” e este só age por intermédio do “mestre da mesa”. Um “mestre do Além” conversa, pilheria ou ameaça, através de uma de- vota; mas, se for indicar remédios, “desacosta-se” e vai “acostar” ao “mestre da mesa”, elemento de respeito habituado ao transe e ao processo de transmitir os “bons saberes”,
A vinda do “mestre do Além” é a “manifestação” do Espírito nas sessões espíritas. Não há a espetaculosidade sugestiva da “caída do santo” num terreiro de Candomblé. Vezes apenas a mudança do timbre de voz denuncia que um invisível “acostou” e “quer comunicar”, aproveitando o estado de receptibilidade de um assistente, Pela fisionomia do “mestre da mesa” esses “acostamentos” não são muito agradáveis. Um “mestre do Além” pode estar possuído pela mania de ser engraçado e ninguém achar graça no seu palavreado. Também, por mera coincidência, certos recalques pessoais são sublimados durante essas atuações hiperterrenas. E o alvejado pelos desaforos não pode reagir porque não se trata de “criatura de sangue” mas de um ser poderoso, do Além, com as “forças”.
No “mestre da mesa” o transe é sempre provocado pelas profundas inalações do fumo ou respiração forte, cadenciada, olhos fechados. Não há, como no ritual dos Candomblés gegê-iorubanos da Bahia, o privilégio das iauôs, filhas-de-santo, receptoras dos Orixás. Com a in- fluência banto, o Catimbó é menos exigente, possibilitando a possessão do “espírito” em qualquer pessoa, iniciada, isto é, crédula frequientadora, ou não. Vezes há em que um consulente é “acostado” e vira “médium”.
A mãe-do-terreiro, um babalorixá pernambucano, precisaria “estudo” para dirigir uma “mesa” de Catimbó, administrando a sucessão dos “acostamentos” inesperados e atrapalhantes para sua autoridade religiosa.
Nunca assisti no Catimbó às manifestações do “acostamento” com a dramaticidade dos Candomblés baianos ou das Macumbas do Rio de Janeiro. Nesses, a filha-de-santo logo que atuada se modifica, desmaia, estorce-se, com explosões de movimentos sacudidos, ou fica estática, braços para cima, fazendo caretas, roncando, sendo car- regada para o peji onde então falará, mais serena, pela voz do Orixá, em plena possessão do deus africano. O “cair no santo”, com suas convulsões ou imobilidades impressionantes, está bem longe do cerimonial amável de um “mestre” na visita cordial a um Catimbó nordestino.
Sucede, naturalmente, que há “mestres” ferozes, sem piedade para o “aparelho” que os hospeda, e dão para pular, berrar, tremendo em coréias sem fim, agredindo o auditório com obscenidades ou caindo espetacularmente ao solo, com espuma na boca, membros crispados, gargarejando ameaças. Aí intervém o “mestre da mesa” com sua ciência para “desacostar” o deseducado, indo desde a persuasão doutrinária até a ordem imperiosa, fundada no prestígio que possuirá de um outro “mestre”, mais poderoso no Além.
Vezes o “acostamento” subitâneo de um “mestre” leva o “mestre da mesa” a situações perigosas. Como não há, na espécie, ninguém com mais “força” que ele próprio, a luta se dará intimamente, entre a violência dos esconjuros e orações fulminantes, mas a assistência, vê apenas uma tempestade de movimentos e uma verdadeira explosão sonora de palavras pronunciadas com alucinante velocidade.
A atenção fatigada, sugestão oral, saturamento pela sedução ambiental, estado personalíssimo de morbidez, predisposição, explodem, numa soma, de fatores imponderáveis, no fenômeno da possessão . A impressionabilidade mestiça, aguda e plástica, está nos Catimbós diminuída pela ausência do ritmo, tão poderoso nos Candomblés e Macumbas. Não há instrumento nos Catimbós e apenas música cantada, em uníssono, atua como elemento de transbordamento, possibilitado pelo contagium psychicum da mesa”, que chamam popularmente “catimbozeiro”, embora seja insultuoso, desperta, espontaneamente porque ninguém possui a ciência para “desacostá-lo”. Noutros fiéis que estão “acostados , o “mestre despede o “espírito” batendo-lhe a mão espalmada na testa e dizendo, alto: Trunfei! Trunfá! Trunfa Real!
O ambiente em penumbra, a assistência silenciosa e crédula, o aspecto do “mestre”, hirto e solene, com a “marca” evocadora, o canto das “linhas”, algumas de penetrante melodia embriagadora, as doses repetidas de aguardente, terminam obtendo um estado de apatia, de prostração, de curiosidade assombrada, de pavor inconsciente. A personalidade se dissipa vagarosamente no contato coletivo e terminamos sendo apenas mais um ele- mento de repercussão nervosa, um transformador psíquico para as altas tensões do mistério natural e da simulação espontânea do Catimbó.