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Thelema: Ontem e Hoje

Thelema: Ontem e Hoje

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A primeira metade do século XX foi uma das épocas mais expressivas da Humanidade. Nestes anos viram-se duas Guerras Mundiais, o surgimento da Penicilina e da Era do átomo, o início e o fim do nazifacismo institucionalizado. O Neocolonialismo dividiu a áfrica e a partes da ásia em províncias dos grandes impérios europeus, eliminando a liberdade dos povos de lá. Foi a época da Quebra da Bolsa de Nova York que lançou o mundo na Grande Depressão e do “New Deal” de Roosevelt. Este clima de anti-liberalismo por todo o mundo resultou, talvez, no surgimento de várias ideologias de propostas libertárias, tais como o Socialismo e o Anarquismo.

No início de tudo isto, discretamente, na Cidade do Cairo, Egito, surgia também uma outra ideologia de propostas extremamente libertárias e igualitárias, não apenas no plano econômico ou social mas de forma geral. Com a escritura do Liber AL vel Legis nascia a filosofia de Thelema, buscando libertar o Ser Humano integralmente, não apenas de sistemas político-econômicos mas também dos grilhões religiosos e das ilusões do mundo e de si mesmo. Aprofundando as idéias Renascentistas, Thelema fazia mais do que colocar o Homem no centro do Cosmo mas alçava-o à categoria divina, colocano-o par-a-par com toda a legião de deuses já cultuados na História.

Em uma sociedade extremamente restritiva, cuja moral era ainda a vitoriana, na qual pernas de mesas eram consideradas indecentes e cobertas de panos apenas por serem pernas, esta ideologia manifestou-se pela pessoa o magista inglês Aleister Crowley, uma figura já então polêmica por suas atitudes na Golden Dawn e por sua vida privada; e que viria a ser tornar ainda mais polêmica por toda a sua vida e além. As idéias propostas no Livro da Lei eram tão perturbadoras para o pensamento vigente no início do século passado que mesmo o próprio Crowley chocou-se com ele. A idéia da sacralidade feminina, por exemplo, contrastava fortemente com o machismo de Crowley. Por conta disto, o Liber AL foi relegado ao esquecimento de um velho baú por anos.

Entretanto, o Eon de Hórus não estava fermentando apenas na mente daquele homem. Vários autores na época escreveram obras que, ainda que não abertamente trazendo a palavra Telêmica, traziam o núcleo das idéias e do pensamento de Thelema. E tentar deter a evolução é como tentar parar uma avalanche com as mãos. Assim, Crowley rendeu-se ao inevitável e, através da Ordo Templi Orientis de Reuss e Kelner e de sua Astrum Argentum começou a divulgação da Palavra de Anhk-f-na-Khonsu, o Sacerdote dos Príncipes. Não uma palavra trazida de um longínquo passado mítico mas sim a palavra viva daquilo que a humanidade como um todo está fadada a se tornar.

Thelema não é uma idéia de eliminação do antigo pura e simplesmente, de forma alguma esta é uma filosofia e uma ideologia iconoclasta. Pelo contrário, mostra-se uma filosofia de grande respeito a todo e qualquer tipo de conhecimento não-supersticioso e que busca trazer para si esta sabedoria acumulada pela Humanidade e reinterpretá-la à luz do conceito do Homem-Deus. É uma filosofia de quebra, porém, de conceitos arraigados, de morais ultrapassadas, de ilusões e de idéias já moribundas.

Na época de sua vinda ao mundo, a forma como estes conceitos manifestavam-se era, principalmente, através da liberalidade sexual, supremo tabú da Época Vitoriana. A liberdade artística também era extremamente valorizada, em um mundo onde a arte seguia normas rígidas e o Surrealismo ainda aguardava para se manifestar em plenitude. Vivendo por tais conceitos tão afrontantes para seus contemporâneos, os telemitas de então chocavam absurdamente a sociedade, tornando-se verdadeiros “centros de pestilência” no mundo obsessivamente organizado da época. Foi um dos motivos que levou o próprio Crowley a ser alcunhado por um juiz inglês de “o homem mais perverso do mundo”.

Mas o tempo passa.

A segunda metade do Séc. XX foi ainda mais surpreendente, em vários aspectos, do que a primeira metade. Principalmente se focarmos as décadas de 60 e 70, onde os movimentos Hippye e os sobreviventes dos beatniks mostraram todo o esplendor da Contra-Cultura. Drogas ampliadoras da mente, liberdade sexual, sociedades comunitárias, ecologia e a redescoberta das culturas orientais, principalmente as hindús, foram os pontos fortes desta época inesquecível para os que nela viveram. Mas, se o sonho contra-cultural não se estabeleceu de todo, a geração seguinte dos Yuppies restaurou em grande parte o conservadorismo e o movimentos como o Socialismo e o Anarquismo mostraram-se meramente utopias, o mundo estava irremediavelmente mudado. A semente da liberdade humana estava plantada em solo fértil e pouco-a-pouco ia germinando.

Thelema encaixa-se nesta mudança de mundo perfeitamente. Muitos destes movimentos influenciaram-se, ainda que sem que a grande maioria se desse por conta, pelo pensamento telêmico. “Imagine”, de John Lennon, é um grande exemplo disso. Lentamente Thelema vai infiltrando-se nas estruturas sociais, partindo de seu lar original, o próprio inconsciente humano. E, mudando o mundo, muda a si mesma.

As atitudes tão chocantes dos primeiros telemitas já hoje em dia não chocam quase ninguém. Hoje o sexo não é tabú e a luta pela liberdade e pelos direitos humanos é considerada natural e necessária, não uma aberração de alguns poucos. Os desafios que um telemita enfrenta hoje em dia são outros, não os que já foram conquistados pelos pioneiros e seus filhos. Hoje vemos o Ser Humano ser escravizado de formas mais sutis e indiretas. Não são meros conceitos morais ou religiosos que impedem o crescimento humano. São os próprios conceitos de “sucesso”, “realização” e outros que nos são impingidos desde a infância. São as necessidades consumistas aberrantes a que somos condicionados, os padrões estéticos absurdos que são impostos.

O telemita de hoje não choca tanto a sociedade quanto antes. O telemita é agora mais sutil, um rebelde consciente que luta com as armas que seus próprios opressores lhe fornecem. Luta dentro de si mesmo, antes de mais nada.

Thelema não é hoje vista como foi há cem anos. O Livro da Lei é ainda o mesmo mas sua leitura individual passa por outros conceitos mentais, provenientes da própria evolução das idéias e do conhecimento deste século. Isso torna a filosofia telêmica não a letra morta das mãos de Crowley mas a palavra sagrada de cada um de nós que luta pelo Sonho Telêmico, tão bela e vibrante quanto antes, ainda que com outras cores.

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