Técnicas antigas para colher ervas mágicas
Acredito que, durante boa parte da existência da humanidade, um trabalho importantíssimo sempre foi o de fazer algum tipo de mediação entre as esferas do mundo humano e do mundo dos poderes naturais. Entendo que o trabalho dos xamãs era essencialmente este, mas outras soluções foram sendo procuradas também conforme as sociedades foram crescendo e substituindo o papel do xamã pelo do sacerdote. É muito triste que a gente tenha perdido isso, no geral, e nem preciso falar do quanto vem sendo catastróficas as consequências desse descompasso.
Podemos dizer que a ideia de que algum tipo de mediação com o mundo natural se faz necessária deriva do fato de os antigos não terem a visão de mundo desencantada que ganha espaço com o protestantismo, o cientificismo iluminista e o capitalismo no ocidente. Ou, pelo menos, eles não partilhavam dessa visão na escala que se tem hoje. Considerando que é bem conhecido que a antiga Mesopotâmia já chegou a sofrer com os efeitos de mudanças climáticas aparentemente causadas pela ação humana, seria ingênuo supor que eles eram todos amantes da natureza (o poder político tem dessas). Mas não vale a pena entrar nessa digressão agora.

A partir do momento em que identificamos uma consciência, um sujeito, no mundo natural, fica inviável tratá-lo mais como um mero objeto, que possa ser manipulado à vontade. Algumas ontologias vão se dirigir, por exemplo, às árvores e plantas como uma entidade consciente, mas também é possível falar em termos do(s) espírito(s) e seres elementais das árvores e plantas, às vezes conhecidos como dríades, ninfas e coisas assim. Mas a ideia é mais ou menos a mesma: há uma consciência e um poder nas plantas, um poder inclusive que pode ser útil para a gente. E, se quisermos fazer uso disso, então é bom aprendermos a negociar. O texto de hoje, portanto, é sobre algumas técnicas de fontes antigas que eram usadas para colher plantas para propósitos mágicos e medicinais.
Nossa primeira parada é Astral Magic in Babylonia, da Erica Reiner, um livro fenomenal que eu sempre vou indicar para todo mundo, disponível de graça no Internet Archive, clicando aqui. Reiner aqui cita umas instruções interessantes contidas numa tabuleta bilíngue, em sumério e acadiano. Diz ela na página 36:
Procure uma abóbora que tenha crescido sozinha na planície
quando o Sol tiver se posto,
cubra sua cabeça com um lenço,
cubra a abóbora também, desenhe um círculo mágico com farinha ao seu redor,
e, de manhã, antes de o sol sair,
arranque-a de onde ela está,
e pegue sua raiz…
(A tabuleta está registrada como CT 17 19 i, linhas 17-24. A palavra em babilônico traduzida como “abóbora” é tigillâ, que também pode ser cabaça, pepino ou até melão).
Ou seja, segundo os antigos, ao se colher uma planta para usos mágicos e medicinais, se você quiser preservar a totalidade do poder da planta e se poupar de possíveis efeitos adversos, não é o suficiente apenas ir lá e arrancá-la a qualquer hora. Tem algumas coisas aí. Primeiramente, recomenda-se que seja uma planta solitária, porque essas plantas seriam mais potentes (eu penso numa lógica meio que nem videogame: você chega num lugar e tem uma única planta lá, é claro que vai ser mais significativo, gritando “me pegue”, do que se estiver junto com outras). Outras possibilidades incluem plantas que brotam em tumbas e sepulcros (tabuletas AMT 102:38, AMT 99,3 r. 15, o que também aparece na poesia de Horácio, no Epodo V, v. 17) e plantas que crescem em montanhas.
Depois, é importante que o sol não veja a planta (essa instrução aparece em outras tabuletas também, como BAM 396 III 7 e BAM 575 III 25) e que seja feito um círculo mágico com farinha ao seu redor. Reiner interpreta esse gesto como um tipo de ato de compra ou compensação. A farinha não é totalmente natural, mas um fruto da natureza, que é o grão, que foi manufaturado, o que faz da farinha uma criação humana. Enquanto oferenda a espíritos da natureza, é possível entender uma criação humana como algo mais interessante do que algo inteiramente natural. Tem algo de nós e do nosso esforço e energia envolvidos nesse ato.

Reiner aqui também cita o filósofo grego Teofrasto, da escola peripatética. Aparentemente, na época dele era comum deixar oferendas de bolos ao cortar plantas medicinais (o que o filósofo, no entanto, rechaça e considera absurdo).
Uma outra tabuleta (BAM 248 iv 34), para se colher arbustos de acácia, indica uma prece a ser feita, em acadiano: ŠE.KAK tašabbuš ina šapal Ú.GÍR ša eli pitiqti aṣû tatabbak kīam taqabbi umma attama qīštaka mahrata šamma ša balati idnamma (“Tu recebeste o presente que te foi designado, agora entrega-me a planta da vida”). Há outros paralelos com Plínio (História Natural 25.145) e até mesmo com monges cristãos que saudavam as plantas ao recolhê-las: “All hail, thou holy herb, __ growing on the ground“1.
Por fim, uma última instrução é a de que não é recomendável usar instrumentos de ferro para cortar a planta, o que aparece igualmente em Plínio. O ferro é um metal que aparece com frequência no folclore, por suas propriedades agressivas, geralmente sendo uma arma contra seres feéricos e afins. Aqui a gente sai da explicação acadêmica para a explicação esotérica, mas, segundo John Michael Greer, isso é porque o ferro tem a capacidade de dissolver padrões etéricos (o etérico sendo o plano da realidade imediatamente mais sutil do que o físico, mas mais denso do que o astral), o que permite “ferir” seres que têm no etérico o seu corpo mais denso. Nesse contexto da colheita, podemos pensar que essa proibição tem ligação a esse cuidado, para não ferir os elementais, mas também com o cuidado para não dissipar os padrões da planta que serão usados magicamente.

Uma técnica para colher plantas para propósitos mágicos também aparece nos nossos amados Papiros Gregos Mágicos. Cito:
PGM IV. 286–95 (Betz, p. 43)
Feitiço para colher uma planta: Use-o antes do nascer do sol. O feitiço a ser recitado: “Eu estou te colhendo, planta tal e tal, com os cinco dedos da minha mão, eu, NN, e estou te trazendo para casa para que trabalhes para mim para certo propósito. Eu te adjuro pelo nome imaculado de deus: se tu não prestares atenção a mim, a terra que te produziu não será mais irrigada no que diz respeito a ti — nunca mais na vida, se eu fracassar nesta operação, MOUTHABAR NACH BARNACHŌCHA BRAEŌ MENDA LAUBRAASSE PHASPHA BENDEŌ, cumpre para mim o encanto perfeito.
De novo aqui aparece a instrução de que o feitiço deve ser feito antes do nascer do sol. O praticante se dirige à planta, se apresenta e diz o propósito (eu presumo que, após o “para certo propósito”, é para a pessoa falar o que vai fazer com ela). O que os PGM acrescentam aqui são duas coisas: 1) a fórmula MOUTHABAR NACH, etc., que é um exemplo típico de voces magicae dos PGM, apesar de ser uma fórmula que aparece apenas nesse contexto; e 2) uma imprecação contra a planta: entregue o seu poder de boas, senão… Considerando o tom coercitivo que a gente observa em vários outros momentos nesse material, também não é de todo de se surpreender. Pode parecer meio excessivo, porém, como comenta Britta K. Ager, em sua tese Roman Agricultural Magic, aqui estamos falando de plantas silvestres, entendidas como seres misteriosos e poderosos, por isso faz sentido que elas sejam tratadas como alguém trataria um animal ou um espírito selvagem, ctônico, com algo de força e intimidação.
Um último exemplo eu encontrei no volume Dreams, Healing, and Medicine in Greece: From Antiquity to the Present, editado por Steven M. Oberhelman, que é uma fórmula cristã registrada pelo pesquisador Papadogiannakês. Nela, o autor se desvia um pouco das outras tradições, porque é um feitiço que usa ferro na forma de uma faca, mas precisa ser uma faca recém-construída e jamais usada para cortar qualquer outra coisa. E aí a planta deve ser colhida no quinto dia da Lua minguante. Você traça círculos (de novo o círculo!) ao redor dela, diz “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” e depois corta a sua raiz. No caso, é um feitiço específico, a planta é a Plantago lanceolata (conhecida como língua-de-ovelha) e há instruções para se fazer certos cortes enquanto reza com a intenção de curar hemorroidas (tem um elemento de magia simpática: assim como a planta é raspada, que as hemorroidas também sejam. Ai).

O que podemos tirar disso? O negócio da magia natural é que o que se entende por boas práticas varia imensamente de região para região. Embora me pareça que essas técnicas (ou outras semelhantes) poderiam ser necessárias para se colher plantas selvagens com intenções mágicas e medicinais do melhor modo possível (i.e. mantendo a potência plena da planta e sem despertar efeitos colaterais nocivos), entendo que elas não são necessárias no caso de plantas domésticas, aquelas que a gente mesmo plantou ou encontrou num contexto rural ou urbano… até porque milhares de pessoas todos os dias fazem usos mágicos dessas plantas tranquilamente sem seguir essas instruções.
Ao mesmo tempo, entendo que fazer uso desse conhecimento não faz mal. Greer, em sua Encyclopedia of Natural Magic, oferece um método que mantém vários desses lugares-comuns antigos, ao mesmo tempo em que inclui mais alguns passos. Eu não tenho uma vasta experiência com magia natural, mas nas vezes em que eu brinquei disso num contexto de magia astrológica, criando talismãs simples a partir de plantas, eu usei esse método e fui bem-sucedido. Ele instrui o praticante a: fazer a colheita antes da alvorada, traçar um círculo na terra com uma vara ou cajado de madeira e evitar usar objetos de ferro ou aço. Mas Greer acrescenta ainda fazer uso de eleições astrológicas (por exemplo, colher uma planta para um talismã ou feitiço solar na hora do Sol num período em que o Sol esteja astrologicamente forte), evitar que a planta entre em contato direto com sua pele, evitar estar contra o vento na hora de colher a planta e, o mais importante, sentar para conversar com a planta, dias antes de colhê-la, para pedir sua permissão. E, caso você retire a planta inteira, é de bom tom deixar uma pequena oferenda no buraco (grãos com mel ou tabaco) para propiciar os espíritos da terra e elementais.
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- “Todos te saúdem, Ó erva santa (nome da erva), tu que brotas do chão”. O exemplo usa a planta verbena, mas imagino que seria possível usar essa fórmula para outras ervas. ↩︎