Revisão e a explanação verbal de toda a Torá
Brevíssima coletânea de comentários sobre a PORÇÃO DEVARIM extraída da obra torá interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer
Deuteronômio, Capítulo 1
1 Estas são as palavras que Moisés falou a todo o Israel, no deserto além do Jordão, na planície defronte de Suf, entre Parán, Tófel, Lavan, Chatserót e Di Zahav – 2 onze dias de Horeb [Chorev] até Cadesh-Barnêa, pelo caminho do monte Seír.
- Estas são as palavras. A menção às “palavras” que foram proferidas por Moisés “de além do Jordão” não se refere apenas ao que foi dito diretamente na sequência, nem tampouco ao que foi relatado nesta porção Devarim, mas concerne a tudo que será falado nesse quinto e último livro da Torá, o Deuteronômio. Na sequência dos últimos capítulos de Números, que abordaram os mandamentos relacionados à conquista da Terra de Israel, o Deuteronômio (DT) se configura como um longo discurso de despedida por parte de Moisés, uma vez que dali em diante o povo deveria seguir o seu caminho e herdar a Terra Prometida sem contar com a presença e as orientações do seu líder.
defronte de Suf. Dada a importância histórica do derradeiro discurso de Moisés, a Escritura se empenhou em situar neste e no próximo versículo o local exato em que Moisés o proferiu, indicando diferentes referências geográficas que pudessem nos ajudar a precisar aquele ponto que não era demarcado e tampouco conhecido por alguma característica particular. Haja vista que a vida e a obra de Moisés não estão relacionadas a um lugar específico, que o local de seu sepultamento não é conhecido e que nenhum monumento foi erigido a fim de celebrar fisicamente a sua memória, o único lugar que pode ser relacionado a Moisés é o local em que proferiu seu último discurso, onde foi visto pela última vez por seu povo e onde concluiu sua vida.
Nesse sentido, o discurso de despedida de Moisés tem a maior importância. Cada uma de suas palavras expressa sua profunda conexão sentimental com o povo e demonstra toda sua preocupação quanto ao futuro de seus irmãos, como se ele estivesse compartilhando seu espírito com todos a fim de oferecer as condições necessárias para a superação das dificuldades e pr24ovações que viriam adiante. Portanto, a Torá trata de nos informar o local em que este discurso foi proferido para que, caso no futuro um dos descendentes do povo de Moisés chegue a esse lugar, seus ouvidos hão de ouvir uma voz celestial com estas palavras, e isso o despertará a segui-las fielmente, para o seu bem pessoal e para o bem do seu povo.
Suf. Não parece que Suf seja uma referência ao mar Vermelho, pois em nenhum outro lugar este mar foi chamado simplesmente de Suf, mas sempre de iam Suf (mar Vermelho). Portanto, o termo Suf indica um local, e não um rio ou um mar de mesmo nome. E o mesmo se aplica a Tófel e Lavan que também não foram citados nenhuma outra vez na Escritura.
De acordo com uma opinião dos nossos sábios (Sifrí), os nomes das localidades citadas aqui aludem a pecados cometidos pelo povo no decorrer de sua jornada pelo deserto. Eventualmente, esses lugares nas cercanias do vale em que o Moisés passou as últimas semanas de sua vida admoestando o povo eram conhecidos anteriormente por outros nomes, sendo renomeadas por Moisés e pelo povo com nomes que aludissem aos fracassos nacionais ocorridos no passado como uma forma de recordar os pecados do passado e fomentar o aprimoramento dos seus atos no futuro.
- onze dias. Este local se encontrava a uma distância de onze dias de Horeb, pelo caminho das montanhas de Seír.
- conforme tudo que o Eterno ordenara para eles. Não está escrito que Moisés transmitiu “tudo que o Eterno ordenara”, mas sim, “conforme tudo que o Eterno ordenara”. Ou seja, nas semanas que antecederam a sua despedida, Moisés não só repetiu tudo que o Eterno havia ordenado até então como também explicou “como” esses preceitos deviam ser cumpridos. Com sentenças precisas, ele repetiu as leis essenciais da Torá e as explicou novamente em detalhes, bem como os diferentes aspectos relativos ao cumprimento das mesmas. E é isso que foi sintetizado adiante (versículo 5) quando foi dito que “Moisés começou a explicar esta Torá”.
Entretanto, o principal propósito deste livro não é revisar ou explicar os preceitos que já haviam sido escritos nos livros anteriores. Afinal, dos mais de 100 preceitos trazidos nele, mais de 70 são preceitos novos que não foram incluídos nos livros anteriores, e portanto não podem ser considerados repetições ou explicações.
A relação completa desses 73 preceitos novos encontra-se no Apêndice, página 666.
Para entendermos o motivo de a Escritura ter trazido somente aqui alguns novos preceitos e recordado alguns que já haviam sido ordenados anteriormente é importante lembrarmos que todo o DT foi proferido durante o período de algumas semanas que precederam o falecimento de Moisés ao final dos 40 anos em que o nosso povo esteve condenado a vagar pelo deserto. Assim, todo o livro está voltado à instituição das leis e dos mandamentos relacionados à verdadeira mudança de paradigma que estava prestes a ocorrer – o fim do período no deserto e a iminente entrada na Terra de Israel.
Como amostra de como o DT foi todo pautado à luz do momento histórico em que foi proferido, convém examinarmos os mandamentos sobre as festas judaicas mencionados apenas parcialmente nele. Ou seja, de todas as festas ordenadas no Levítico 23, as festas de Pêssach, Shavuót e Sucót foram reiteradas aqui (16:1-17), ao passo que as leis referentes ao Shabat e às festas de Rosh Hashaná, Iom Kipúr e Sheminí Atséret, não.
Quando analisamos o que há em comum entre as quatro festas não lembradas nesse livro, encontramos que todas elas possuem um caráter que realça a ligação individual de cada pessoa com Deus, de modo que sua celebração poderia ser cumprida no deserto sem o menor prejuízo. Sendo assim, a iminente entrada na Terra de Israel não acarretava a necessidade de se revisitar tais leis, como de fato não aconteceu.
Por sua vez, as festas de Pêssach, Shavuót e Sucót – que possuíam um caráter diretamente relacionado à terra e ao ciclo das estações – não tinham como ser vivenciadas devidamente pelos judeus que estavam no deserto antes da conquista da Terra de Israel. A festa de Sucót, por exemplo, que rememora a estadia do povo no deserto, não faria sentido se fosse celebrada antes de o povo ter deixado a sua condição nômade e antes de passar a habitar em casas. Da mesma forma, o mandamento do lulav (palma de palmeira) só poderia ser praticado com a entrada na Terra de Israel, pois sua realização seria completamente inviável na condição de escassez do deserto.
Além disso, um dos pontos mais centrais das festas de Pêssach, Shavuót e Sucót era a obrigação de peregrinar a Jerusalém e se reunir no Templo, o local de concentração nacional, o que só poderia vir a ser realizado depois que os judeus tivessem conquistado a sua soberania em Israel. Por isso, quando as leis de Pêssach, Shavuót e Sucót foram revisadas no DT, os aspectos mais realçados foram aqueles relacionados à Terra de Israel, como as datas em que tais festas deveriam acontecer, visto que estavam ligadas às estações climáticas e às fases do plantio e da colheita, bem como ao lugar central “que escolher o Eterno” (adiante 16:6-7) no qual elas deveriam acontecer – no Templo Sagrado de Jerusalém. Entende-se, assim, por que algumas festas foram repetidas aqui e outras não.
Esse mesmo ponto de vista também nos ajuda a entender em linhas gerais qual foi o motivo que levou a Escritura a mencionar os demais preceitos deste livro: uma vez que a entrada na terra acarretaria o contato dos judeus com os povos idólatras que habitavam a região, a proibição da idolatria e suas diferentes implicações tiveram de ser reiteradas e detalhadas repetidas vezes no DT, como o estabelecimento das leis que condenam a cidade pervertida pela idolatria, os castigos ao incitador à idolatria, a proibição de tirar proveito da idolatria, a regulamentação das diferentes formas de práticas proibidas, e assim por diante.
Seguindo a lógica do atendimento à realidade histórica de então, o povo foi ordenado a acatar a liderança de um novo líder após a morte de Moisés, bem como foi instruído a implementar um sistema judicial dentre outros mandamentos na mesma direção. Do mesmo modo, foram dadas as leis relacionadas à guerra, as leis que regem o consumo de carne animal que apenas então passou a ser permitido, a proibição de se oferecer sacrifícios fora do Templo, o conjunto das leis que normatizam o convívio social e as relações empregatícias, as leis que abordam o aspecto jurídico do casamento, entre várias outras leis que passariam a incidir depois da entrada na Terra de Israel e que, por isso, encontraram o seu lugar neste quinto livro da Torá – tanto de forma inédita quanto de forma repetida.
Na nossa opinião, tais explanações são óbvias e não artificiais, e podem explicar por que esses grupos de preceitos foram escritos no quinto livro da Torá. E uma vez que os preceitos trazidos aqui para a nossa deliberação geral representam a maioria absoluta do livro, podemos afirmar que uma hipótese semelhante leva à inclusão de todos os demais preceitos que surgem no DT.
Além dos mandamentos práticos que precisavam ser ensinados ou revisados no DT, Moisés também apresentou aqui um discurso especial sobre a missão, valores e princípios do judaísmo. E diferentemente do discurso oral acerca dos mandamentos práticos cuja reprodução por escrito foi apenas parcial, conforme mencionamos, a dissertação acerca dos valores e princípios do judaísmo foi registrada aqui em sua integralidade. Dessa forma, os primeiros 11 capítulos deste livro trataram de recapitular a trajetória do nosso povo em seus pontos mais importantes, marcando assim os acontecimentos e ensinamentos que deveriam ser retidos na memória daquela e de todas as próximas gerações do nosso povo. E visto que este é um discurso que também contém as bases conceituais do amor e do temor a Deus à luz do princípio da unicidade Divina, cada indivíduo tem a obrigação de apreendê-lo em seu espírito e em sua alma.
No intuito de promover a aplicação prática dos valores espirituais transmitidos neste livro, o povo judeu recebeu então os mandamentos de estudar a Torá e de transmiti-la a seus filhos, os mandamentos da recitação do Shemá (a prece “Ouve, Israel!”), da colocação dos tefilin, da fixação da mezuzá, da recitação do bênção de graças (bircat hamazon) e de lembrar diariamente o Êxodo do Egito. E uma vez que o povo estava prestes a perder uma referência tão central como Moisés, passando a viver na Terra de Israel de forma independente e individual, tais mandamentos passariam a funcionar como gatilhos a serem disparados diariamente no coração de cada judeu com o intuito de despertá-lo às suas obrigações e à busca da moral e da nobreza próprias de sua vida e de sua história.
Em suma, o DT é um resumo dos preceitos em relação aos quais havia uma necessidade especial de recordá-los – seja para os líderes, seja para cada indivíduo – na transição da vida no deserto para a vida assentada na terra. Parte desses preceitos deliberadamente não havia sido colocada por escrito até agora; outros, que já haviam sido lembrados no passado, retornaram e foram reescritos pelo fato de seu conteúdo ser considerado necessário para o objetivo requerido.
Para concluir, o DT é comumente chamado de Mishnê Torá (Revisão da Torá), sendo corrente a concepção de que se trata de uma mera releitura da Torá. Contudo, devemos nos lembrar que este é um entendimento incorreto, como fica patente pela grande quantidade de mandamentos e ensinamentos inéditos contidos nele. Por conseguinte, a melhor forma de o entendermos como uma “Revisão da Torá” é esta: o DT conta sobre a revisão e a explanação verbal de toda a Torá com as quais Moisés encerrou seu trabalho neste mundo em prol do seu povo. Dessa revisão oral foram escolhidos os preceitos contidos neste livro dos quais uma parte aparece aqui pela primeira vez e outra já havia sido escrita nos livros anteriores.

Brevíssima coletânea de comentários sobre a PORÇÃO DEVARIM extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.