Quem responde às nossas preces?
Vamos começar o ano tratando de uma questão cabeluda. O último curso que eu dei no ano passado foi o da primeira turma de Fundamentos da Construção de Rituais, e esse foi um problema que veio à tona. Estávamos falando de magia de salmos, quando surgiu a dúvida que inevitavelmente surge sempre que entramos no território das interseções entre magia e religião, entre esotérico e exotérico. Muita gente todos os dias vai nas igrejas de todas as denominações, rezam salmos, etc, mas não conseguem o que querem. Isso é por que Deus não atende às suas preces?
Pesado, né?
Da minha perspectiva, o problema já começa quando colocamos a pergunta nesses termos. Acho que tem um problema fundamental com o entendimento de o que é a prece, o que é o ritual, o que são as forças divinas. Vamos começar tratando disso.

Tudo começa com o divino. Mas, claro, o que é o divino? Resumir isso num texto de blog é claro que inevitavelmente vai ser uma simplificação grosseira – e mesmo que eu escrevesse mil páginas sobre o assunto, ainda assim seria inadequado, como qualquer místico é capaz de atestar. A inefabilidade da experiência mística é, afinal, uma das suas características, vide William James. Mas posso apontar para algumas referências e aí cada um pode ir fazer a sua pesquisa.
Encontramos no hermetismo uma concepção do divino em abstrato que é bastante útil, razoavelmente simples e que encontra ecos e ressonâncias em outras tradições esotéricas. O texto XII do Corpus Hermeticum define Deus como “energia e poder”, que “cerca todas as coisas e permeia todas as coisas” (sim, é um pouco como a Força em Star Wars). Em algumas concepções é também o Nous, a Suprema Consciência. Josephine McCarthy resume a questão como: “O Divino [Divinity] é o poder do qual tudo flui. É um poder cuja compreensão escapa ao nosso alcance” (Lição 1 do módulo 6 de Aprendiz, na Quareia). É aquilo com o qual nos conectamos por via do chakra da coroa, como explica o Master Choa nos livros da Cura Prânica.
Já as deidades [deities], na distinção da Josephine, são essas consciências que agem como pontos intermediários entre o Divino e a criação – e que, por isso, podem nos ajudar a estabelecer essa conexão (vide os rituais teúrgicos), já que são formas um pouco mais próximas de nós, em comparação com um Divino abstrato e inefável, e que permitem essa aproximação pela via do mito, que trata do divino em termos bastante humanos, que a nossa consciência limitada é capaz de apreender. Lon Milo Duquette, em Low Magick, também trata de como deidades individuais podem servir de interface para esse Divino abstrato.
A questão é que, deidades são, ainda assim, espíritos e consciências muito grandes. Como ocorre no mito grego em que a princesa Sêmele, que estava tendo um caso com Zeus, pede para vê-lo em toda sua glória e acaba morrendo incinerada, a gente não tem a capacidade de receber essa energia toda de uma vez. Seria como tentar ligar um eletrodoméstico diretamente numa linha de alta voltagem. O que a gente faz é ir estabelecendo uma conexão com a deidade, que é onde entra a prece, os hinos, as oferendas. E aí essa conexão vai se tornando mais forte de acordo com algumas variáveis – sua dedicação em fazer os ritos regularmente, seus sentimentos internos de devoção, sua capacidade de serviço aos outros, etc.
O Deus bíblico, cujo nome próprio é YHWH, é uma deidade que representa o Divino. Sendo o Deus de uma religião monoteísta, ele é uma deificação do próprio Divino, como explica Josephine… o que é bastante útil em termos místicos, mas gera uma série de problemas com os quais os teólogos passaram séculos se debatendo.
Assim, quando você faz uma invocação, você não está chamando aquela deidade, em toda a sua glória e poder, para o lugar onde você está. E quando você recorre a uma divindade para pedir alguma coisa específica, não é como se o deus saísse de lá do seu trono, viesse à sua casa e de lá fosse, por exemplo, cutucar pessoalmente um possível empregador para ele lhe dar um trabalho. Se você estiver fazendo as coisas direito, o que acontece é que você vai se ligar a essa força e conseguir puxar um tanto dessa energia, de acordo com o desenvolvimento do seu corpo energético e a relação que você possui com aquela deidade. Se não estiver fazendo as coisas direito, aí ou nada acontece (tipo tentar fazer uma ligação sem sinal) ou é capaz de você acabar se ligando numa outra força sem querer… o que é perigoso.

Preces com pedidos específicos são rituais de manifestação simples. Da forma como eu enxergo a questão, o que um ritual desse tipo costuma fazer é criar um padrão energético. Esses padrões são aquilo que é representado, por exemplo, em oráculos. Se você pergunta da sua vida amorosa para o tarô e tira A Torre, então significa que as influências que estão agindo nessa área da sua vida se comportam de um jeito que o vocabulário do tarô traduz como A Torre: ou seja, o padrão que você está seguindo vai levar a algum baque que vai demolir tudo que não está sólido aí. Por esse mesmo motivo, cartas de tarô são muito úteis como ferramentas mágicas, como ilustrações de padrões desejáveis para atrair ou indesejáveis para afastar. E aí, dependendo do quanto esse padrão possa estar mais ou menos cristalizado, é possível recorrer à magia para alterá-lo. Mas, como dito, depende. Práticas de cura e magia para saúde, por exemplo, são muito mais eficazes se você agir antes de aquilo se manifestar no físico ou logo no começo dessa manifestação. Esperar até estar num estágio terminal do câncer para agir é pedir para se frustar.
Assim sendo, todas as diretrizes que se aplicam a um ritual simples se aplicam para uma prece de petição. Se aquela pessoa de fato tem uma conexão pessoal com o Divino, se a congregação estiver sendo conduzida por um líder espiritual sério e se ela tiver algum talento para manifestação (como dom natural ou desenvolvido), então é possível que ela puxe um tanto dessa energia e que aconteça o que ela pede, contanto que o pedido seja minimamente viável. Nesse caso, mesmo uma forma-pensamento simples construída com grande concentração e força emocional, consoante com a emoção da reza, e alimentada com essa energia divina já consegue fazer bastante coisa. Agora, se essa pessoa é alguém que só vai na igreja para se sentir melhor que os outros e justificar barbaridades, tipo ódio a minorias, com a Bíblia, ou então, mesmo que ela pessoalmente tenha uma intenção sincera, mas esteja num ambiente contaminado por esse tipo de coisa – nesses casos fica muito difícil haver qualquer conexão, a não ser com entidades parasíticas que podem estar residindo no lugar e se alimentando de ódio e delírios egoicos diversos.
Por esses motivos, um fracasso em obter o que se deseja por esses meios não quer dizer que Deus, Senhor do Universo, Criador do Céu e da Terra, pessoalmente goste mais de fulano do que de cicrano, como um pai que mima o filho caçula. A explicação é, como espero ter demonstrado, um pouco mais técnica do que isso.
Agora, aqui estamos falando de divindades, anjos e outros seres muito grandes. Com espíritos menores, a interação se dá numa escala menor, como é de esperar, e mais pessoal. Seres elementais, espíritos da natureza, entidades feéricas, mortos, espíritos sublunares, etc…. com esses tipos de seres, a lógica é outra, e eles podem de fato ir lá fazer as coisas por você se você comandá-los ou pedir com jeitinho. E pode acontecer também de espíritos menores locais agirem alinhados a uma dada entidade superior. Nesses casos, você tem a dupla vantagem de o seu ritual contar com a energia dessa força divina ao mesmo tempo em que tem um espírito agindo aqui nas miudezas do nosso mundo físico. O casal Aaron e Carrie Leitch fala disso num episódio recente do podcast Glitch Bottle, quando mencionam os efeitos de seus altares aos 7 arcanjos planetários.

Para encerrar, eu gostaria de citar um trechinho do último livro do Jason Miller, Consorting with Spirits, lançado no ano passado (e que está apenas 10 reais no Kindle. Recomendo). Na seção “Manifestations of Resonance”, do Capítulo 2, ele trata de um tipo de interação com seres espirituais que é o que ele chama de ressonância, um conceito que eu achei particularmente útil. Segue esse trechinho traduzido por mim:
O primeiro espírito que eu já chamei na vida com a intenção de receber algo em troca deve ter sido Paralda, o Rei dos Elementais do Ar. Eu tinha quinze anos e usei os métodos do Helping Yourself with White Witchcraft, de Al Manning. Não é um livro que eu escolheria usar ou recomendaria hoje, mas eu não tinha nem idade o suficiente para dirigir e websites ainda não tinham sido inventados, por isso minhas opções eram limitadas.
Quando fiz o ritual, senti uma mudança generalizada na atmosfera, como se o ar tivesse ficado carregado de repente. Imagino que eu poderia desconsiderar isso como as fantasias de um cérebro adolescente que desesperadamente queria que a magia fosse uma coisa real, porque, fora isso, o espírito não fez nada para que sua presença fosse reconhecida. Não teve o vento abrindo a janela, nenhuma voz sussurrando “assim será feito” no meu ouvido. No entanto, o doido é que o meu pedido se realizou. A disputa pela qual eu o invoquei para que ele a influenciasse para mim foi resolvida a meu favor. A magia que eu lhe pedi para fazer deu certo.
Então, isso nos leva à questão: Será que Paralda, o Rei dos Elementais do Ar, esteve lá no meu quarto, em meio às minhas fitas cassete e revistas Thrasher jogadas pelo chão? Eu acho que não. Acredito que o que eu vivenciei foi o que eu chamo de uma manifestação de ressonância.
O que é ressonância? Em termos de som, é o reflexo de uma superfície pela vibração síncrona de um objeto vizinho. Se eu estiver numa sala repleta de guitarras e dedilhar um mi em uma delas, as outras vão entrar em ressonância. Algo semelhante acontece quando você reza. Não é como se um Deus de repente parasse o que estava fazendo para aparecer diante de você em toda sua plenitude, estilhaçando a sua sanidade e lhe dando cabelos brancos. Você entra em ressonância com aquele poder e o universo responde. Se aquela ressonância for firmada com ações, como a queima de velas ou ervas com as propriedades certas, escrevendo uma petição ou ritualmente cravando um prego, então a sua prece é elevada a um novo patamar: ao de um feitiço.
Esse nível de manifestação, a simples ressonância, é a manifestação mais corriqueira da influência de um espírito na sua vida. Provavelmente abrange cerca de 80% de magia. Mesmo alguns grimórios clássicos, que giram em torno de fazer os espíritos aparecerem, procuram apenas uma ressonância ativa. Há um manual confiscado durante a inquisição veneziana em 1636 repleto de feitiços que utilizam os sigilos de demônios que aparecem no Grimorium Verum, mas não exigem a aparição do espírito. Para atrair dinheiro, por exemplo, ele nos manda recortar círculos de pergaminho no formato das moedas desejadas e colocar o sigilo de Claunth nelas, dispô-las num círculo e recitar um breve encantamento dirigido a Claunth.
Claunth não precisa de fato aparecer, nem concordar com nada. Ele pode nem sequer estar consciente de que sua influência está sendo usada desse modo. Mas está, ainda assim. Tal qual a mulher que tocou a bainha da roupa de Cristo e puxou um pouco do seu poder para se curar, estamos agarrando o poder de um demônio e amarrando-o a esse ato mágico, o qual, com sorte, vai se manifestar.
Este é o menor modo de manifestação de um espírito, mas para deixar bem claro: muitas vezes só precisa disso. Só o fato de existirem modos mais fortes de um espírito se manifestar na sua vida não faz com que esses métodos sejam preferíveis. Às vezes eu vejo gente se gabando de cerimônias de evocação de duas ou três horas para manifestar um espírito em aparência visível para que ele realize algo que a maioria das pessoas conseguiria manifestar com facilidade usando folk magic ou mesmo uma solução não mágica.
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Enfim, isto é o que eu penso acerca do assunto também. Acredito que os conceitos de ressonância, da prece como um tipo de ato de conexão e o trabalho mágico como construção de padrões energéticos ajudam a esclarecer essa questão de um modo que faz mais sentido do que uma bobagem como “Deus não gosta de mim”. E, embora a ressonância já baste para um ritual de manifestação funcionar, outras formas mais complexas de rituais (como, por exemplo, as invocações teúrgicas dos arcanjos em Seven Spheres, do Rufus Opus) continuam sendo válidas como formas de criar relações poderosas com essas consciências e utilizá-las para promover mudanças profundas.
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