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O que é a Torá?

O que é a Torá?

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“No princípio, Deus criou os céus e a terra.”

Gênesis 1:1

Por que a Torá, a palavra de Deus dada a Moisés como Seu legado ao povo judeu, começa com a narrativa da Criação, passando pelos Jardins do Éden e pela Torre de Babel? Ela poderia, e talvez até devesse, ter começado do momento em que os judeus receberam seu primeiro mandamento como nação, após a saída do Egito – “Este será para vós o primeiro dos meses” (Êxodo 12:2), referindo-se ao mês de Nissan, quando Pêssach, a singular festa judaica que comemora nosso nascimento como nação, é celebrado. Afinal de contas, a Bíblia não é essencialmente um livro dos mandamentos? Assim questiona o Rashi no começo de seu comentário sobre o livro de Bereshit.

Eu gostaria de sugerir três respostas clássicas a essa questão, e cada uma delas traz uma contribuição importante à pergunta que inicia esse capítulo: O que é a Torá?

A resposta do Rashi a esta questão constitui a crença sionista.

Começamos com a narrativa da Criação porque, se as nações do mundo apontarem seus dedos para nós clamando que somos ladrões, dizendo que roubamos esta terra dos canaanitas e de outros povos nativos, nossa resposta será de que a terra e o mundo inteiro pertencem a Deus, por ter sido Ele quem os criou. Ele pode entregar qualquer parte da terra a quem, aos Seus olhos, a merecer. Sob essa perspectiva, o Rashi, de forma brilhante, deu a um versículo universalista uma interpretação nacionalista. Ele definiu nosso direito à Terra de Israel como uma consequência direta do primeiro versículo da Torá!

Podemos acrescentar às palavras do Rashi mais uma dimensão. Ele conclui essa interpretação afirmando: “Ele pode entregar qualquer parte da terra a quem, aos Seus olhos, a merecer.” Essas palavras podem significar ‘a quem Ele quiser’, isto é, a Israel, porque Ele fez essa escolha arbitrária, ou podem significar ‘a quem for moralmente merecedor desta terra’, o que implica que teremos direito a ela somente se nossas ações forem moralmente dignas. A história judaica ratifica essa segunda interpretação com o fato de termos sofrido dois exílios, sendo que o segundo durou cerca de 2.000 anos. Se essa é verdadeiramente a explicação adequada, as palavras do Rashi nos proveem uma advertência e uma promessa.

O comentarista Nachmânides também debate essa questão. Para ele está bastante claro que o fato de o mundo ter sido criado por Deus é o ponto central da nossa teologia e, assim sendo, era essencial que essa afirmação estivesse presente no primeiro versículo da Torá.

A Torá nos apresenta uma completa filosofia de vida. As sete primeiras palavras da Torá nos dizem, da maneira mais clara, que há um Criador do Universo e que o nosso mundo não é consequência de um acidente, “um conto relatado por um ignorante, repleto de estrondos e fúria, sem nenhum significado”, uma casual convergência de elementos químicos e de gases em explosão. É um mundo que teve um começo (e isso implica que também terá um fim), um propósito e uma razão de ser. Além disso, será que poderíamos existir, por um momento que fosse, sem a criação dos céus e da terra? Nossa própria existência depende do Criador, e, por nos ter criado, Ele tem o direito de cobrar que vivamos de uma determinada forma e cumpramos Suas leis. O primeiro versículo da Torá estabelece a base para tudo que se segue.

Antes de tudo, há um princípio; em segundo lugar, há um Criador que criou os céus e a terra; em terceiro lugar, tudo, nos céus e na terra, deve sua existência ao Criador; em quarto lugar, é plausível que haja comportamentos e ações que o Criador deseja e espera de Sua criação. Segundo Nachmânides, toda a nossa estrutura metafísica se baseia no versículo inicial da Torá. Afinal de contas, como Criador, Ele tem direitos de propriedade. Ele nos possui. Ele é o dono de nosso ser. Ele merece que vivamos nossa existência de acordo com Sua vontade e não meramente de acordo com nossos desejos subjetivos e, até mesmo, egoístas. Ele merece não só que O abençoemos antes de partilhar qualquer elemento que Seu universo nos ofereça, como também que assumamos o compromisso de manter o estilo de vida que Ele nos recomenda. Nachmânides continua e nos ensina que, do mesmo modo que Adão e Eva foram exilados do Jardim do Éden após comerem do fruto que lhes fora proibido, a punição por desobedecermos Suas leis será a alienação e o exílio, processo experimentado com muito sofrimento pelo povo de Israel. Essa afirmação é também um elemento crucial da teologia judaica.

Midrash (Bereshit Rabá 12) oferece uma terceira explicação. No versículo inicial está implícito o princípio fundamental de que devemos viver: “No princípio, Deus criou os céus e a terra.” Nessa sentença, ‘criou’ é o verbo; o mundo nos revela a função criativa do Divino. Partindo do princípio de que devemos seguir Seus caminhos, nosso primeiro contato com Deus nos ensina que, assim como Ele criou, nós também devemos criar; assim como Ele, pairando sobre o abismo da escuridão, criou a luz, também nós, criados à Sua imagem e semelhança, devemos remover todos os bolsões de escuridão, caos e vazio, e introduzir neles luz, ordem e significado. Desse modo, o primeiro versículo do Gênesis é também o primeiro mandamento, uma ordem emitida por Deus para todos os seres humanos criados à Sua imagem: devemos criar, ou melhor, recriar o mundo, tornando-o mais perfeito, em virtude da “imagem de Deus” pela qual fomos criados. O Midrash vê os seres humanos, de uma forma geral, e os judeus, em particular, como uma força criativa. Nossas energias criativas – religiosas, éticas, científicas e artísticas – devem trabalhar em harmonia com o Todo-Poderoso para aperfeiçoar um mundo que ainda não está perfeito, para trazer de volta a paz e a harmonia que existiam no Éden.

Frequentemente, os críticos da Bíblia cometem dois erros. Eles desvestem a Torá de seu contexto e de seu subtexto, perdendo de vista o que a Torá realmente quer dizer. Destacam a mecânica gramatical das palavras e desprezam sua majestade, a chama, a visão e a mensagem. O que devemos lembrar é que, essencialmente, a Bíblia não é apenas um livro de leis, por mais importantes que elas sejam, e certamente não foi escrita por um ser humano em sua débil tentativa de compreender Deus e a Criação. É, na verdade, o Livro dos Livros, emanado de Deus, que nele dá instruções e direção para nossas vidas. Ela revela não somente o que a humanidade é, mas, muito mais do que isso, o quanto ela deve se esforçar para vir a ser; ela nos ensina que não devemos apenas nos encarregar do mundo, mas sim, trabalhar para tentar aperfeiçoá-lo e torná-lo digno da majestade do Divino.


Extraído da obra Luzes da Torá (Gênesis): Sobre Vida, Amor e Família, do Rabino Shlomo Riskin.
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