As funções da parafernália mística
Todo mundo curte uma quinquilharia, uns badulaques, uns penduricalhos. Numa notícia muito interessante do ano passado, arqueólogos descobriram um kit de ferramentas mágicas de uma possível feiticeira de Pompeia, incluindo amuletos, cristais e uma imagem do deus Dioniso. Dos trajes elaboradíssimos e tambores dos xamãs aos caldeirões de bruxas e artefatos do mago cerimonial, é difícil imaginar alguma tradição que não tenha pelo menos algum brinquedinho. Como eu costumo repetir, não é que seja obrigatório — existe, afinal, a variedade puramente mental de práticas rituais em que esse tipo de coisa não é tão necessário—, mas, assim como com o trabalho no mundo material, essas ferramentas ajudam muito. Pra que pregar um prego com a mão se você pode usar um martelo, não é?
Não, não é meu altar, eu peguei esta imagem daqui. Infelizmente, meu altar não é muito fotogênico.
Apesar de as ferramentas, em tese, estarem ligadas a sistemas específicos, há algumas tendências gerais que se pode observar no que diz respeito a função e forma de lidar com elas. A grande tendência é que, uma vez que você decide que a ferramenta será usada para magia, ela deverá ser usada só para isso, com raras exceções. É o que chamamos de consagração: o objeto é retirado de seu contexto profano e passado para um contexto sagrado. Você pode até pegar uma faca de carne da cozinha como adaga mágica, mas, feita essa transição, não é possível retorná-la à sua função mundana, depois usá-la de novo num ritual e esperar que fique tudo bem. Do mesmo modo, uma vez consagrada, uma ferramenta é parte de você e deve ser utilizada apenas por você e tratada com respeito e cuidado — algumas não devem nem ser tocadas por outras pessoas.
O ritual de consagração em si pode ser simples, meia dúzia de palavras só, ditas com foco e concentração, ou pode ser complicado, exigir eleições astrológicas específicas e demorar horas, invocando deuses e anjos — tudo depende da função da ferramenta, o poder que se espera que ela vai ter e, claro, o sistema ou egrégora com o qual se trabalha. Às vezes o ato de construir a ferramenta já é uma consagração (pense nos talismãs astrológicos de magia natural de que falamos antes) e via de regra, as mais poderosas são aquelas que você constrói pessoalmente. No entanto, como nem todo mundo tem as condições materiais e know-how para fabricar itens de carpintaria ou metalurgia, você pode pedir para alguém fazer e depois consagrar o item ritualmente ou comprar algo pronto e então marcá-lo de algum modo, se possível, e consagrá-lo.
Só tome muito cuidado ao misturar sistemas. Os triângulos e círculos cerimoniais, por exemplo, são multiuso, em algum grau, podendo servir para conjurar uma variedade de espíritos, mesmo que não derivem de um mesmo livro, mas essa promiscuidade não é regra. Tome cuidado especial ao misturar coisas de tradições mais abertas, como as da magia ocidental, com as tradições iniciáticas africanas e orientais. Nada de tentar consagrar uma guia de Obaluaê em casa com o hino órfico de Saturno, pelo amor de Deus. Não seja esse tipo de caoísta.
Por fim, um último comentário antes de passarmos aos itens individualmente: convém lembrar que as ferramentas costumam se tornar mais fortes com o uso. Nesse sentido, mesmo um objeto de origem humilde, como uma varinha feita de cabo de vassoura ou de uma colher de pau ou de uma antena, se usada todo dia, ao longo de um ou dois anos, pode adquirir uma aura poderosa. Assim, é recomendável ao iniciante, se quiser construir uma ferramenta para auxiliá-lo, que o faça com itens que serão usados com frequência, como uma varinha ou um japamala. Quanto aos itens de uso mais pontual, como um anel de proteção, por exemplo, ou um pantáculo de Salomão, eu sou da opinião de que é melhor deixar para fazer depois que se está mais desenvolvido.
Vamos à lista, então!
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Varinha e cajado: desde o Caduceu de Hermes e da varinha da semideusa Circe, na Odisseia, com a qual ela transformava homens em animais, até as de Harry Potter, esta é provavelmente a ferramenta mais clássica e famosa no imaginário popular. Entende-se que a varinha represente a Vontade do mago, auxiliando-o a direcioná-la e aplicá-la sobre o mundo. Um símbolo de autoridade, você pode usá-la para impor respeito com os espíritos, para direcionar energia e traçar símbolos no ar, como os pentagramas do RmP ou um círculo protetor. Há várias possibilidades para a construção de varinhas. Aos iniciantes, eu recomendo fazer uma varinha simples e multiuso para começar e depois pensar em algo mais especializado mais para a frente, como uma varinha com equivalências elementais ou planetárias. Para Goetia, há instruções bem específicas quanto às condições sob as quais a varinha deve ser construída, qual o tipo de madeira (avelaneira), o dia (quarta-feira) e os símbolos a serem gravados. Na tradição da Golden Dawn, utiliza-se uma varinha multicolorida chamada Lotus Wand, que, no entanto, além de feia, é trabalhosa de fazer e chata de manusear, recomendada apenas para quem realmente curte muito este sistema. Você pode experimentar com diferentes materiais, observando o lore esotérico de cada tipo de madeira ou então pensar ainda em varinhas de metal ou osso (para necromancia, por exemplo), e pesquisar os símbolos a serem gravados. Tem um trecho bem interessante no livro do Bardon sobre evocação que trata detidamente dos processos para a construção de uma varinha, linkado aqui porque acho que pode ser útil. Já o cajado costuma ser associado à varinha, mas, apesar dos ares semelhantes de autoridade e assertividade, segundo Patrick Dunn, os dois têm funções diferentes e o cajado serve principalmente para auxiliar em viagens astrais. Para Brother Moloch, o cajado deve ter a altura do praticante mais ou menos e é usado plantado no chão, como uma “antena”, por assim dizer, para receber e transmitir sinais psíquicos, enviando sua vontade ao universo ou ouvindo as mensagens dos espíritos.
Ferramentas para Goetia. Infelizmente também não são minhas. Fonte.
Adaga e espada: com frequência, são itens para agressão, proteção e autodefesa, ligados astrologicamente a Marte e a Saturno. Na Goetia, usa-se uma faca de cabo preto para se intimidar os demônios, especialmente quando eles não obedecem de primeira, e a Golden Dawn tem um ritual elaboradíssimo para se consagrar uma espada a Marte para uso de autodefesa também (nesse sentido, não tem muita diferença essencial entre adagas e espadas, exceto que adagas têm uma função específica no sistema da GD, como já vamos ver). Na Cura Prânica, facas de cristal são usadas para cortar elos energéticos negativos, e, no folclore, o ferro da lâmina é considerado tradicionalmente letal a certos seres incorpóreos, como fadas e demônios, tanto que John Michael Greer, inclusive, recomenda passar-se a lâmina de uma faca ou espada pelo corpo como método para se livrar de larvas etéricas. Um banimento feito com uma arma dessas tende a ser mais enfático do que com uma varinha, nesse sentido. Já na Wicca, a principal arma mágica é a adaga (athame), que assume a maioria das funções que eu atribuí à varinha, pois eles entendem que esse aspecto perigoso da adaga confere-lhe maior autoridade, enquanto a varinha é mais sutil — a varinha indica ao espírito aonde ir e o que fazer, enquanto a adaga coage.
Anéis: na lenda judaica, um anel com o nome de Deus era usado por Salomão para comandar demônios, conferindo-lhe proteção contra eles, como se vê na história em que Asmodeus o engana, tornando-o vulnerável então e expulsando-o do reino temporariamente para tomar seu lugar. A magia enoquiana também exige um anel especial no qual se inscreve a palavra PELE (quer dizer “milagre” em hebraico), sem o qual “nada pode ser feito”. Anéis podem ser encantados para inúmeras funções, como os anéis talismânicos construídos com os cristais das estrelas fixas de Agrippa/Hermes Trismegisto, ou os famosos sete anéis dos planetas clássicos que teriam sido dados de presente a Apolônio de Tiana, mas na magia cerimonial sua função mais comum, sendo uma versão reduzida do círculo no qual você se situa, é proteção. Cada grimório tem as suas especificações, mas um método genérico eficaz é comprar um anel com um hexagrama (a “estrela de David”), gravar um nome divino dentro e consagrá-lo.
Ferramentas para magia da Golden Dawn (de novo, não são minhas). Note as duas adagas (uma para banimento, outra sendo a adaga do ar), a Lotus Wand e a varinha de fogo.
Armas elementais: nas tradições que derivam da filosofia hermética, que aproveita o conceito de Empédocles das quatro forças básicas que constituem o universo — fogo, água, terra e ar — , essas ferramentas servem para sintonizar o magista com os elementos, para poder então manipulá-los com mais facilidade. No sistema do Bardon, manipula-se os elementos diretamente pela força de vontade e respiração… mas, né, uma ajudinha a mais não faz mal. No sistema da Golden Dawn/Thelema, que reflete as atribuições elementais dos naipes do Tarô, a varinha/cajado é a arma do fogo (a Golden Dawn, no entanto, tem um design especial para a varinha de fogo, mais curta e com uma ponta bulbosa, que é ainda mais feia, como se pode ver), a adaga a arma do ar, o pentáculo da terra e o cálice da água. Na Wicca, há uma inversão e a adaga/athame equivale ao fogo e a varinha ao ar. O cálice, em todo caso, é usado para operações de purificação e para fazer oferendas, enquanto o pentáculo serve para defesa (GD) ou consagração (Wicca). No curso de autoiniciação de Dolores Ashcroft-Nowicki, em Manual Prático de Magia Ritual (recomendo a leitura também), as ferramentas para trabalho elemental são anéis, o que é uma solução ótima e engenhosa, mas infelizmente me lembra demais o Capitão Planeta (o que eu tenho certeza que algum caoísta já tentou evocar). Em todo caso, você não precisa seguir esses padrões à risca e pode pensar em algo que faça sentido na sua prática pessoal. Christopher Penczak, em City Magick, inclusive sugere a possibilidade de você usar uma pedra decorativa, um globo natalino, uma essência aromática (tipo esses palitinhos que se vê em toda parte agora) e um isqueiro como instrumentos elementais para um altar clandestino a ser mantido no escritório sem que os outros reparem¹.
Pedras e cristais: um dos itens favoritos de todo praticante de magia e qualquer um com interesse esotérico (em parte porque são coisas bonitas), pedras e cristais são aliados mágicos poderosos, mas infelizmente nem todo mundo sabe mexer com eles. Agora virou moda esses colares de ponta de quartzo, por exemplo, e o que eu mais vejo por aí é gente usando as pedras energeticamente imundas e sem consagrá-las. Para trabalharem bem, as pedras precisam ser limpas com água e sal (ou incenso, no caso de pedras solúveis, como a selenita), “apaziguadas” e energizadas, colocando-as ao ar livre, na terra, no sol ou pelo menos ao lado de um fone de ouvido tocando mantras ou alguma outra forma de música com tons sacros, e então consagradas. E preste atenção especial com pedras escuras, como ônix e obsidiana, que precisam ser limpas com maior frequência. Cada pedra tem suas propriedades, mas é raríssimo encontrar fontes confiáveis sobre o assunto… mesmo os livros mais famosos incluem informações úteis misturadas com um grau de baboseira que é difícil filtrar, provavelmente porque a maioria das pessoas interessadas nisso são iniciantes e/ou ligadas à Wicca ou ao New Age, onde rigor é uma coisa que falta (e não sou nem eu quem está falando). A Cura Prânica utiliza cristais de vários formatos (rolado, esfera, ponta, “laser”) e tipos, especialmente ametista e quartzo branco, verde e rosa, para ampliar o poder do curador de formas claramente observáveis, mas, para outros tipos de magia, ainda não existe, que eu saiba, um bom grimório de pedras. Eu mesmo tenho um método que venho desenvolvendo, aplicando técnicas que eu aprendi com a Cura Prânica, mas é experimental e não está pronto para ser ensinado. Assim, para quem quiser trabalhar com elas, é recomendável começar ouvindo-as via técnicas meditativas (sim, eu sei que isto soa maluquice, mas não é muito mais doido do que conversar com espíritos… de certa forma, pedras são como se fossem espíritos com um corpo mineral, dotadas de fagulhas de consciência). Como em tudo na magia, respeito e colaboração são cruciais. No mais, é recomendável estudar um pouco sobre as pedras antes de se entrar numa loja esotérica e ler a bobajada que eles atribuem a elas. Tome cuidado especial ainda com as fraudes, com o que se vende como “turquesa” (na maioria das vezes, howlita tingida) e as pedras chamadas de “goldstone/pedra do sol”, “pedra da lua”, “pedra-estrela”, “obsidiana verde” e semelhantes, que são, na verdade, vidro colorido. Também é importante tomar certas precauções no plano físico mesmo, porque algumas pedras, como cianita e olho de tigre, são tóxicas (e tem gente que inventa que colocar na água para fazer “elixir”, portanto cuidado). Eu escrevi também um outro texto só dedicado a este assunto, que pode ser lido aqui.
Alguns dos cristais da Maíra, utilizados pela escola da Cura Prânica. Fonte.
Japamalas, rosários, misbahas e kombolói: instrumentos de culturas diversas que seguem uma mesma lógica, uma série de contas de vidro, metal, madeira, resina, porcelana, pedras semipreciosas ou mesmo plástico, presas a um fio, numa quantidade equivalente a um número religiosamente relevante. O japamala² é indiano, com 108 contas, ou divisões disso; o rosário é católico, com vários conjuntos de 10 contas; e o misbaha islâmico, com 33 contas divididas em 3 conjuntos de 11, com um separador entre cada conjunto. Já o kombolói é grego e representa uma exceção, pois não tem associação religiosa, nem uma regra para o número de contas, além de que deve ser um número ímpar. A lógica é que você utiliza as contas para ter uma ideia das repetições de uma prece ou mantra, sem precisar contá-las usando a mente racional — o que tende a quebrar o transe e desviar o foco. Uma versão pobre pode ser improvisada dando-se vários nós numa corda, porém um japamala ou equivalente tem o bônus de servir a propósitos talismânicos também, e um mesmo praticante pode ter vários com diferentes funções. Por exemplo, você pode ter um para práticas espirituais e purificação, um para proteção, outro para magia de materialização, etc., lembrando que, no caso dos japamalas construídos com contas de pedra, as regras para pedras e cristais se aplicam também. Em sites online você pode comprar as contas e fazer o seu japamala você mesmo, o que é sempre melhor do que comprar já pronto, tanto pela questão da personalização quanto pela da eficácia mágica.
Oráculos: para mim, a primeira coisa que um iniciante deve dominar assim que aprender técnicas básicas de limpeza, proteção e equilíbrio energético, é alguma forma de oráculo, para não seguir pelo mundo oculto sem saber por onde anda (além do quê, oráculos são em si instrumentos mágicos utilíssimos para magia prática de manifestação). Num texto anterior, eu falo sobre alguns dos vários oráculos possíveis, dentre os mais populares, e a sua adequação para cada tipo de personalidade e necessidade. Materialmente, eles podem ser as cartas de Tarô e as runas em si, mas também moedas e dados (de preferência de metal) que servem para práticas como I-Ching e geomancia. Não se esqueça de limpá-los e consagrá-los, e cuidado para não gastar a moeda depois comprando pão, nem usar os dados para jogar RPG. Outra ferramenta oracular ótima e muito popular é o pêndulo, que, apesar de simples, costuma ser confiável para aquelas perguntas de sim/não que não têm necessidade de maior aprofundamento e complementa os outros métodos lindamente se bem calibrado.
Grimório: o termo “grimório” descreve livros mágicos, como o Lemegeton ou o Livro do Mago Abramelin, mas eu entendo pela palavra também o seu próprio grimório pessoal, o que os wiccanos chamam de “Livro das Sombras”. É extremamente útil ter um pequeno caderno para transcrever orações, fórmulas, nomes de anjos e símbolos específicos para serem usados durante o ritual sem precisar ter um livro de fato — ou pior, vários livros — nas mãos. Ao se fazer trabalhos com espíritos pessoais, não registrados em livros preexistentes, um grimório serve para registrar seus nomes e sigilos. Mais do que um auxílio mnemônico ainda, o uso ritual repetido de um grimório também lhe transfere uma boa dose de poder, de modo que ele acaba acumulando uma aura forte com o tempo, o que confere uma potência adicional ao que se recita dele. Contrariando as expectativas dos bruxos jorgistas, a Bíblia, com sua variedade de salmos e outros versículos de uso mágico, também pode ser usada como um grimório, e sua função talismânica já é bem atestada no Hoodoo.
Vajra e sino tibetanos.
Sino: a função do sino é chamar atenção, como na missa cristã, com a diferença de que na magia essa atenção chamada tende a ser a dos espíritos. Nas práticas da Golden Dawn/Thelema, um sino é tocado um certo número de vezes antes de certos rituais, como o Reguli, e na magia astrológica, como ensina Frater U.D., ele pode ser tocado ao final da conjuração de um dado planeta um número de vezes equivalente ao número do planeta (3 para Saturno, 4 para Júpiter, etc). Na tradição mesopotâmica, exorcistas tinham sinos decorados com imagens específicas para ajudar a expulsar espíritos malignos, enquanto o budismo Vajrayana emprega o sino em práticas litúrgicas e meditativas em conjunto com o vajra ou dorje³, que são itens carregados de uma profunda simbologia sobre o vazio e a compaixão, conceitos cruciais da doutrina budista.
Altar: no aperto, qualquer coisa pode ser um altar, para colocar nele suas velas, incenso e ferramentas durante o ritual. Segue uma lista de coisas que eu mesmo já usei assim: uma mesinha de cabeceira, uma mesa de bar de metal (dentro de casa, não num bar de fato), uma mesa de plástico, uma máquina de costura antiga (daquelas sem motor, que a máquina dobra e entra num bloco de madeira), porém hoje subi na vida e tenho um altar de verdade. Se não tiver jeito, você pode colocar as coisas no chão (na umbanda, por exemplo, alguns trabalhos, geralmente de esquerda, devem ser feitos no chão mesmo), mas um altar na altura do seu torso facilita demais as coisas. No entanto, não é só isso: além de ser um bom lugar para colocar a sua parafernália toda, as ferramentas, as estátuas de divindades, etc., o seu altar é como se fosse uma imagem do seu microcosmo, um resumo das suas práticas e de quem você é, magicamente. É como se fosse a base do seu trabalho, mantendo um elo energético constante e palpável com você. Quem trabalha com muitas entidades pode querer ter mais de um altar, para poder colocar nele as coisas todas ligadas a uma dada entidade sem que haja interferência energética das outras, mas isso depende também das suas condições (é difícil ter vários altares morando numa quitinete, por exemplo). Via de regra, evite montar um altar no quarto se você valoriza a qualidade do seu sono.
Circulo e triângulo: em práticas de evocação, o círculo oferece proteção e identificação com o divino e pode ser impresso em tecido ou riscado no chão com giz ou na terra com uma espada ou equivalente. Já o triângulo é o espaço onde o espírito se manifesta. Tem muitos modelos, você pode escolher um, pegar um pedaço de madeira barato numa Leroy Merlin da vida, umas tintas e mandar brasa (ou usar um pirógrafo se você for chique). Você também vai querer um meio para a manifestação dos espíritos, como uma vasilha com água e óleo, uma bola de cristal ou um espelho negro — algumas lojas vendem espelhos negros de obsidiana, mas é caro, e uma alternativa barata é produzir um com um porta-retrato e tinta preta, e há quem use a tela do celular também (literalmente black mirror). Mesmo quem não mexe com magia cerimonial pode querer ter um espelho negro ou bola de cristal para práticas de scrying, um método divinatório poderoso para quem tem essa capacidade de visão astral mais desenvolvida — apesar que, para quem curte esse tipo de coisa, eu já li relatos do uso de televisores, em canais fora do ar, para isso.
Um spirit pot para o demônio Dantalion. Fonte.
Recipientes: dá para fazer muitas coisas com vidros, garrafas, frascos, potes e vasilhas. A bruxaria inglesa tem tradicionalmente as witch bottles, que são garrafas com uma série de itens nocivos dentro (como pregos e urina) enterradas em uma propriedade para proteger contra ataques psíquicos, mas há outras funções mais variadas. Uma técnica clássica da magia natural é o adoçamento, que no Hoodoo assume a forma da honey jar, em que se coloca o nome (e foto, se possível) de alguém num pote de mel para ganhar seus favores, entre outras possibilidades. A prática também é popular entre bruxas contemporâneas, que gostam de criar garrafas com ervas e cristais variados com diversas funções. No folclore árabe e judaico, djinns/demônios foram aprisionados por Salomão em vasos de bronze e garrafas, o que não deixa de ser uma possibilidade exorcística interessante, que encontra relações com as incantation bowls dos judeus babilônicos do primeiro milênio d.C. e com as práticas das bottle trees do sul dos EUA, originárias do Congo, em que garrafas são colocadas em árvores para capturarem espíritos hostis à noite e expô-los à luz do sol depois quando o dia clareia. Já Donald Tyson, em seu livro sobre espíritos familiares, ensina a usar garrafas não para aprisionar espíritos, mas para que a garrafa sirva como lar e meio de manifestação para esses aliados espirituais, preenchidas com itens que combinem com a natureza deles. Tem um post no blog do Rufus Opus sobre isso também. Vasilhas de vidro ou cerâmica são úteis não apenas para lecanomancia, mas para queimar sigilos, como focos para concentração de energia no trabalho de consagração de talismãs, como receptáculos para oferendas ou para colocar água com sal para limpezas. Só não deixe que seu roommate ou cônjuge pegue suas vasilhas para comer miojo.
O Quarto Pantáculo de Mercúrio, de Salomão, para “adquirir a compreensão e entendimento de todas as coisas criadas” e outras funçõezinhas mais.
Talismãs: um talismã é um objeto construído e/ou encantado para trazer à tona um dado resultado. Esse tipo de técnica funciona muito bem para magia de manifestação, porque o objeto material ancora as energias e assim facilita para elas agirem neste mundo sem se dissiparem. Você pode criar talismãs permanentes ou semipermanentes, com funções mais gerais como atrair prosperidade ou proteção, ou então talismãs temporários, visando a um objetivo mais imediato (arranjar um emprego, encontrar um apartamento para alugar, realizar uma cura, etc.). No primeiro caso, utilizam-se materiais duráveis, como vidro, metal, pedra, madeira e argila (evite plástico). O segundo historicamente era feito de pergaminho ou papiro, mas hoje dá para fazer de papel. Eles podem ter um design fixo, como os famosos pantáculos planetários da Clavícula de Salomão (não confundir com o pentáculo de terra das armas elementais), os quadradinhos mágicos dos planetas, os talismãs clássicos da Cabala prática ou as filaterias dos Papiros Mágicos Gregos, ou você pode construir os seus talismãs seguindo a sua inspiração, aplicando símbolos e referências que sejam relevantes para a sua prática. E, como ensinam Damien Echols e Jason Miller, o talismã não precisa ser criado do zero (apesar de que a criação do zero é poderosíssima) e mesmo objetos comuns do dia a dia podem ser talismanizados. Se você tem feito rituais repetidamente sem observar resultado, eu recomendo que experimente a abordagem talismânica.
Túnica: um item pouco popular hoje, a túnica é interessante para os adeptos de magia cerimonial. Assim como você tem roupa para dormir, para ficar em casa, para trabalhar e para sair à noite, a túnica é a indumentária para rituais (e, bem, tanto no caso de dormir, quanto no caso do ritual, há quem prefira fazer pelado). Há quem ache teatral demais e meio ridículo… e eu realmente não tenho contra-argumentos para rebater essa noção. Mas, se você vai praticar magia cerimonial e precisa de um empurrãozinho mental para entrar no clima, a túnica pode ajudar. No mais, ela também acumula uma aura de poder conforme é usada repetidamente. Só cuidado ao comprá-la pronta, porque certamente o que você mais vai achar é poliéster, e, ainda que isso não seja um problema, fibras naturais são mais indicadas e absorvem melhor as energias sutis (além do quê, elas não vão ficar furadas de cair brasa do incenso).
Bolsas mágicas: no Hoodoo, a mojo bag ou gris-gris é um pequeno saco onde se colocam vários itens para um dado propósito, que, uma vez animado ritualmente, age como um aliado mágico e deve ser cuidado e alimentado toda semana com óleo ou uísque. Na Umbanda e no Candomblé, temos o patuá, que segue uma lógica semelhante, com a distinção de que ele tem uma conexão direta com o aṣé de um Orixá específico (ele precisa ser construído no terreiro) e não exige a mesma manutenção de uma mojo bag. Na tradição de alguns povos indígenas norte-americanos, sobretudo entre xamãs, utiliza-se a chamada “bolsa de remédios” ou “bolsa de medicina” (medicine bag), que é uma pequena bolsa de couro na qual, ao longo da vida, se colocam objetos que, por qualquer motivo, tenham ganhado alguma relevância pessoal para você⁴. Brother Moloch também ensina, em seu Pragmatic Magics, a criar uma “bolsa de poder” (power bag) com cristais e ervas para aumentar a potência do conjurador. Apesar das questões complicadas em se usar artefatos pertencentes a certos grupos sociais minoritários, a técnica mais geral de ter uma bolsa para carregar consigo, dentro e fora dos rituais, e concentrar itens de poder (que, do contrário, ficariam espalhados no altar ou guardados em algum lugar) tem muito potencial. Só, por favor, tenha bom senso. “Fiz uma medicine bag, eu sou um xamã, meu animal espiritual é um pombo da Sé, olha só” é o tipo de atitude que não vai ajudar ninguém.
Itens consumíveis: nesta categoria entram todas as coisas de que você precisa fazer estoque, como velas, incenso, ervas, óleos, oferendas (farinha, pão, bebidas alcoólicas), bonecos, etc. Prefira comprar velas em casas de Umbanda, onde o preço é melhor, ou em lojas que vendem no atacado… nos supermercados eles metem a faca. E compre por quilo mesmo, você não quer ter a surpresa desagradável de descobrir que falta vela na hora que precisar (um problema sério agora durante a quarentena). Quanto ao incenso, se quiser resultados, abra um pouco a carteira, não vá nos que custam 2 reais a dúzia e, claro, ignore solenemente as atribuições feitas pelos rótulos. Você não vai quebrar feitiço nenhum com uma vareta de incenso de 10 centavos⁵. O mesmo vale para os óleos… atente para a diferença entre óleo essencial e essência (essência de mirra, por exemplo, custa 15 reais… já o óleo essencial é 150)⁶. O motivo para isso é que os trabalhos de magia que exigem esse tipo de material lidam com forças elementais, conscientes ou semiconscientes, que estão presentes no produto natural, mas não no sintético. Algumas operações exigem incensos específicos (como no caso da magia astrológica), mas alguns são meio que pau para toda obra, como olíbano, mirra e sândalo. Os incensos Ananda, que contêm uma dúzia de coisas, incluindo olíbano, mirra, sal grosso, benjoim e cânfora, também são uma ótima pedida. Ervas idealmente você deve plantar, colher da rua ou da natureza para usar para banho ou secar ou macerar. Evite comprar no mercado, com algumas exceções, como a canela em pó, que não dá para produzir em casa. Uma outra coisa legal é um preparado que Bardon ensina a fazer em seu Magia Prática, chamado de “condensador de fluidos”, composto de flores de camomila, água, álcool e ouro coloidal, cuja função é facilitar a acumulação de energias, e é um item utilíssimo para se construir talismãs. Você também vai precisar comprar porta-velas e incensários, mas, exceto em alguns casos específicos (um castiçal de estanho exclusivo para trabalhos jupiterianos, por exemplo), esses objetos não precisam ser consagrados.
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Enfim, estes são alguns dos itens do arsenal de um magista. Minha lista não se pretende exaustiva, claro… eu não falei nada dos tambores de um xamã, nem dos espelhos mágicos de Bardon, das lamparinas da magia greco-egípcia e do Hoodoo, dos bastões atlantes das práticas radiônicas, das guias da Umbanda ou dos caldeirões e vassouras de bruxa, porque são itens com os quais eu não tive contato, nem prevejo que farão parte da minha prática tão cedo, assim prefiro evitar falar sem propriedade. Porém, para o iniciante procurando dar um gás adicional à sua prática, eu acredito que esta lista possa ajudar. Se você não tem absolutamente nada ainda (como eu quando comecei), eu recomendaria, primeiro, adquirir um ou mais porta-velas decentes (que não vão te deixar correr o risco de pôr fogo na casa), um incensário que não deixe cair cinza por tudo, uma vasilha e um oráculo de sua preferência, depois encontrar uma adaga ou varinha para ser sua primeira ferramenta mágica propriamente e talvez construir um japamala ou equivalente se a suas práticas envolvem repetições de preces ou mantras. Meu único aviso é para tomar cuidado com o consumismo esotérico — o consumismo já é problemático em si e não fica menos pior porque é para propósitos supostamente espirituais. Se você encontrou um objeto que pode ter usos mágicos, mas não sabe ao certo o que fazer com ele ainda, está tudo bem, mas cuidado ao alimentar o estímulo de sair comprando coisas que não fazem parte da sua prática atual e que podem acabar só juntando pó. Geralmente quando você de fato precisar de algo, você vai saber.
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[1] Mas aí nesse contexto, e talvez para magia urbana no geral, seria necessário relaxar um pouco as regras sobre consagração e manutenção das ferramentas. Vai ser impossível manter um isqueiro no seu altar disfarçado no escritório sem que outras pessoas o toquem, o que geralmente é indesejável para ferramentas mágicas.
[2] Eu ouvi que o mais correto é apenas mala, mas eu prefiro usar japamala mesmo para evitar confusão com o homônimo em português.
[3] O vajra era originalmente um símbolo para o relâmpago, a arma do deus Indra, assim como ocorre na mitologia babilônica e grega, mas a palavra também se refere ao material indestrutível de que essa arma era feita, por vezes traduzido como “diamante”, daí que o budismo Vajrayana possa ser traduzido como “veículo do relâmpago” ou “veículo do diamante”. As pontas do vajra no budismo, porém, são curvadas e não pontudas, simbolizando a compaixão.
[4] O xamã toltec Don José Ruiz tem um livro sobre o assunto chamado The Medicine Bag. Eu fiquei com a impressão de que é um livro com muita coisa New Age misturada, mas acredito que o autor seja legítimo e o bom leitor de livro de magia sempre vai encontrar algo de útil de quase qualquer obra.
[5] Se você parte de um paradigma mais puramente psicológico, segundo o qual a função do incenso seria apenas te inserir num estado de espírito condutivo a certas práticas mágicas, as correspondências do incenso barato podem ainda servir.
[6] Na magia cerimonial, um tipo de óleo famoso, usado para proteção, consagração e o que mais for, é o chamado óleo de Abramelin, que envolve óleo de mirra, de canela e de cálamo (ou galanga, depende da tradução).
(Este texto foi publicado originalmente em meu Medium no dia 1 de junho de 2020)