A “Liturgia de Mithras” — uma cerimônia dos Papiros Mágicos Gregos
A Liturgia de Mithras é talvez um dos textos mais famosos dos PGM, os Papiros Mágicos Gregos. E é um texto tão complexo e tão cheio de detalhes que é difícil até mesmo começar a falar dele — só o mero título que lhe foi dado já é o suficiente para preencher várias páginas de discussão acadêmica. Mas bem, vamos lá, primeiramente: trata-se de um texto dos PGM. Isso é um ponto pacífico. Temos aí um bom começo. Eu já falei bastante desse material numa ocasião anterior, para quem ainda não viu, por isso não vale a pena me repetir. Para quem está com preguiça de ler este texto anterior, basta dizer que os PGM são uma coletânea de textos rituais, em grego koiné, usados e reunidos por sacerdotes egípcios e magos itinerantes desde o período helenístico até mais ou menos o século IV d.C., contendo de tudo, desde fórmulas de amarração amorosa, feitiços para colher plantas e dissipar raiva até a “alta magia” teúrgica e a consagração de talismãs, como parece ser o caso aqui.
Os PGM, pelo menos nas edições modernas, são organizados em livros, e este ritual consta no livro IV, linhas 475–829. Este papiro tem uma história curiosa, aliás, sendo um documento de 36 páginas e 3274 linhas, possivelmente de Tebas/Luxor e conhecido como o Grande Papiro Mágico de Paris (denotando onde ele foi vendido em leilão), adquirido por um colecionador de ascendência armênia de Damasco que morava em Alexandria e atendia por Giovanni Anastasi (1780–1857). O nome “Liturgia de Mithras” não aparece nos PGM, porém, sendo um título dado pelo pesquisador Albrecht Dieterich, em 1903, ao seu livro onde o texto foi publicado pela primeira vez: Eine Mithrasliturgie.
Agora Mithras, ou Mitra, é um deus persa bastante antigo, anterior ao zoroastrismo, mas incorporado à religião de Zaratustra como um ser celestial/angelical ligado à justiça e vagamente ao Sol, ainda que nada seja dito dele nos textos atribuídos ao profeta. Seu nome já era conhecido aos gregos pelo menos desde o século IV a.C., e um culto iniciático de mistérios centrado nessa divindade surge em algum momento da história romana, tornando-se popular entre os séculos I e IV d.C. — quando os cristãos, então já instaurados no poder e perseguindo os pagãos, acabam com a festa toda.
A questão é que o acesso ao material persa é bastante complicado e a impressão que os gregos e romanos tinham das religiões orientais era, famosamente, imprecisa (até hoje, por exemplo, se debate se havia qualquer pingo de verdade nas afirmações de Heródoto sobre a “prostituição sagrada” que supostamente ocorreria nos templos de Astarte, mas a postura crítica acadêmica nunca vai conseguir apagar esse “fato” da imaginação popular). Até onde se sabe, é muito possível que nada dos mistérios mitraicos romanos tivesse qualquer coisa a ver com os papéis de Mitra na sua religião nativa. Em todo caso, seu nome é invocado neste ritual, sincretizado com o deus solar Hélios, e isso bastou para que Dieterich propusesse a ideia, bastante provocativa, de que este fosse um ritual persa legítimo que de algum modo teria sido levado aos sacerdotes egípcios e preservado em grego (há um livro de Hans Dieter Betz, o responsável pela principal edição dos PGM em inglês, só sobre a Liturgia de Mithras, e quem quiser ler pode conferir a história do texto e sua divulgação na introdução deste livro, disponível aqui). É muito provável, no entanto, que isso não seja verdade, até porque é óbvio, à primeira vista, que se trata de um ritual no molde de todos os outros rituais dos PGM.
Imagem do deus Mithras e sua “tauroctonia”, o ato de matar o touro que faz parte de sua mitologia nos ritos romanos
O que isso quer dizer é que podemos esperar as técnicas de sempre: preces com teor sincrético que apelam com frequência a um deus supremo, mestre de todos os deuses, numa cosmologia hermética onde há espaço para deuses, arcanjos e demônios; um forte viés teúrgico, visando à ascensão espiritual; o uso de fórmulas sem sentido mundano, chamadas de “palavras bárbaras” ou voces magicae; e o uso de preparações mágicas com óleos e ingredientes exóticos.
Eu já fiz uma breve menção a este ritual duas vezes aqui n’O Zigurate, aliás: uma, ao tratar de fórmulas mágicas dos elementos em magia elemental; e de novo, ao falar do Sepher HaRazim, ao qual uma pesquisadora, Kimberly Stratton, o compara. Ela resume a questão da seguinte maneira:
A Liturgia de Mithras, que forma parte de um livro de receitas mágicas do Egito, combina elementos da ascensão visionária com os da práxis mágica. Como nas obras de literatura ascensionária, o mago neste texto encontra deuses que se opõem a ele numa tentativa de impedir sua ascensão. Após silenciá-los com uma prece (logos) especial, o místico conquista a sua ajuda e é capaz de avançar até seu encontro com o Grande Deus, Hélios Mithras, e seu objetivo final — a imortalização. A Liturgia de Mithras também incorpora elementos da magia, como a preparação de misturas especiais (com besouros esmagados e plantas obscuras) para uso num unguento de imortalidade, preces devocionais e linguagem típica das religiões de mistério helenística. Além do mais, o objetivo desse ritual mágico é típico de religiões de mistério e partilhado pelos antigos cristãos: a comunhão com o divino e a promessa da imortalidade. Assim como os antigos cristãos passando pela iniciação do batismo, o mago neste texto é renascido e recebe, como prova de seu novo estatuto, um novo horóscopo.
Portanto, mesmo que não seja um ritual legítimo dessa divindade persa obscura, ainda assim é um material incrível: temos o uso de fórmulas elementais, uma ascensão aos céus que é tudo menos tranquila e um objetivo que é nada menos que a conquista da imortalidade, que gera um novo horóscopo! (o que as redes sociais chamariam hoje de cirurgia de mudança de signo). Para complementar, vale enfatizar também que, dentre as instruções para a preparação do ritual, consta a criação de um filactério com versos da Ilíada de Homero, cujo poder neste contexto parece ser análogo ao dos versículos do Antigo Testamento na magia judaica. Essa imortalidade, é claro, não deve ser compreendida como uma imortalidade do corpo, mas algum tipo de vantagem após a morte — e nisso comparações com a construção do chamado “corpo solar” seriam bastante felizes, inclusive pela presença dessa temática solar. Tudo isso se combina para formar o que é, para mim, um ritual de grande fascínio.
É relevante apontar ainda para o fato de que o lugar-comum da ascensão difícil também é recorrente na literatura mística, sobretudo judaica. Em várias tradições religiosas, entende-se que todos podem desfrutar de boa saúde espiritual, mas nem todo mundo pode ser um místico — mais ou menos como, para fazer uma comparação besta com o corpo físico, todo mundo pode utilizar exercícios leves para manter a saúde e evitar o sedentarismo, mas poucos têm a capacidade para o triathlon, por exemplo. Ser místico é perigoso, como ilustra a famosa narrativa do Pardes judaico, e você pode acabar louco ou morto. Na tradição de Hekhalot, uma das mais antigas formas do misticismo judaico, os anjos ameaçavam o místico com um truque (o chamado “teste da água”), e alguns autores falam que, quando Moisés subiu o monte Sinai, os anjos se opuseram à ideia de entregar a Torá aos mortais, a ponto de ele precisar descer o cacete em geral, chegando até mesmo a matar um dos anjos! Na Liturgia de Mithras, os deuses ficam perturbados ao notarem a intrusão do iniciado, mas acalmam-se e seguem com sua rotina depois que uma breve fórmula é recitada.
Em matéria de texto, o ritual é bastante direto. Ele fornece algumas instruções, como inspirar fundo e produzir certos sons com a boca, e ensina o que deve ser recitado. Após uma longa fórmula, o praticante ascende e é confrontado pelos deuses furiosos, que devem ser pacificados, como já dito. Feito isto, ele encontra, primeiro, uma divindade do fogo, entendido como o próprio Hélios, depois uma das águas (e é só fogo e água, sem os outros elementos, talvez porque estes são os mais primordiais), sendo confrontado ainda por sete divindades femininas e sete divindades masculinas no caminho, que são as Sinas e os Senhores dos Polos. Estas últimas, aliás, são referentes às 7 estrelas da constelação da Ursa Menor e da Ursa Maior, respectivamente, e têm associações ainda com os sete planetas. O Sam Block tem um texto em que ele entra nessa questão com maiores detalhes, para quem tiver interesse.
Por fim, tendo ficado face a face com a segunda divindade, a das águas, o iniciado recebe dela um oráculo e isto conclui a parte do ritual em si. O restante do texto inclui instruções para se realizar esse ritual para outra pessoa (i.e. como um adepto que inicia um neófito) e as instruções prévias para preparação do unguento e do filactério. O final é um tanto frustrante, por dois motivos: primeiro, porque as plantas mencionadas não têm tradução (ninguém sabe que plantas seriam essas, na antiguidade) e segundo, porque reaparece, no final, o velho lugar-comum dos PGM do “acrescenta o de sempre”, que nós não sabemos o que era — talvez porque fosse conhecimento secreto dos sacerdotes, talvez porque fosse tão banal que não valesse a pena incluir as instruções, mais ou menos como você não inclui todo o passo a passo do Ritual menor do Pentagrama quando instrui alguém a terminar um ritual com um “banimento”.
Segue abaixo agora a minha tradução, para o português, do ritual, com base nas traduções de M. W. Meyer, que consta na edição de Betz dos PGM, e na de Kimberly Stratton para o inglês. Minha intenção aqui em partilhar esse material é mais “acadêmico”, por assim dizer do que qualquer coisa, porque acho que todos que partilham do meu interesse por magia hermética, teurgia e magia da antiguidade se beneficiam de observar como essas coisas eram feitas. Porém, já aviso que eu não me responsabilizo por qualquer um que tente realizá-lo, tal como escrito ou em adaptação, e acabe tendo qualquer problema depois. Também aviso que omiti alguns trechos que ficaram muito confusos, especialmente no final da receita, em que o autor fala onde encontrar a planta que não sabemos qual é, que foram omitidos na versão, mais simplificada, da Stratton.
Para quem quiser saber mais sobre o assunto, além do material já citado, eu recomendo ainda a leitura do artigo (cujo título exemplifica bem o tema da ascensão perigosa) “Welcome to Heaven, Please Watch Your Step”, de Mark Stoholski.
Arte de Johfra Bosschart
O texto em português
A Liturgia de Mithras (PGM IV. 475–829)
Sede misericordiosos para comigo, Ó Providência e Psiquê, enquanto eu registro estes mistérios entregues a mim não buscando lucro, mas instrução; e a um filho único eu peço a imortalidade, Ó iniciados deste nosso poder [além do mais, é necessário a ti, Ó filha, que tu leves os sumos das ervas e especiarias que ser-te-ão revelados ao término deste tratado sagrado], que o grande deus Hélios Mithras ordenara para que sejam revelados a mim por meio de seu arcanjo, para que eu sozinho ascenda aos céus enquanto inquisidor e contemple o universo.
Esta é a invocação deste feitiço:
Origem primeira da minha origem, AEĒIOYŌ, primeiro princípio de meu princípio, PPP SSS PHRE, espírito do espírito, o primeiro do espírito em mim, MMM, fogo dado por deus à mistura das misturas em mim, o primeiro do fogo em mim, ĒY ĒIA EĒ, água da água, o primeiro da água em mim, ŌŌŌ AAA EEE, material terroso, o primeiro do material terroso em mim, YĒ YŌĒ, meu corpo completo, eu, NN, cuja mãe é NN, formado por um braço nobre e uma destra incorruptível num mundo sem luz, porém radiante, ao mesmo tempo desalmado porém vivificado pela alma, YĒI, AYI, EYŌIE, agora se assim for tua vontade, METERTA PHŌTH [METHARTA PHĒRIĒ, em outro manuscrito] IEREZATH, entrega-me ao nascimento imortal e, depois, à minha natureza subjacente, para que, após as necessidades atuais que se impõem sobre mim com imensa urgência, eu possa contemplar o começo imortal com o espírito imortal, ANCHREPHRENESOUPHIRIGOH, com a água imortal, ERONOUI PARAKOUNĒTH, com o mais constante dos ares, EIOAĒ PSENABŌTH, que eu possa renascer em pensamento, KRAOCHRAX R OIM ENARCHOMAI, e que o alento sagrado seja soprado em mim, KYPHE, que eu possa contemplar a água insondável e formidável da aurora, NYŌ THESŌ ECHŌ OUCHIECHŌA, e que o éter vivificante e circundante possa me ouvir, ARNOMĒTHPH, pois hoje estou prestes a contemplar, com olhos imortais — eu, nascido mortal de ventre mortal, mas transformado pelo poder tremendo e uma destra incorruptível e com o espírito imortal, o imortal Aion e mestre dos diademas ígneos — eu santificado pelas santas consagrações — enquanto subsiste em mim, santo, por um breve período, o poder da minha alma humana, que eu, novamente, receberei após as necessidades atuais e implacáveis que me são urgentes — eu, NN, cuja mãe é NN, segundo o decreto imutável de Deus, EYĒ YIA EĒI AŌ EIAY IYA IEŌ. Porque é impossível para que eu, nascido mortal, erga-me com o áureo esplendor da luminosidade imortal, ŌĒY AEŌ ĒYA EŌĒ YAE ŌIAE, ergue-te, Ó natureza perecível dos mortais, e leva-me, imediatamente, seguro e intacto das necessárias inexoráveis e urgentes. Pois sou o filho PSYCHŌN DEMOU PROCHŌ PRŌA, eu sou MACHARPHN MOU PRŌPSYCHŌN PRŌE.”
Inspire os raios [do sol], inspirando 3 vezes tanto quanto conseguir, e tu te verás sendo alçado e ascendendo em altura, de modo que tu terás a impressão de estar em pleno ar. Tu nada ouvirás de homem algum ou qualquer outro ser vivente, tampouco nesta hora verás qualquer coisa dos assuntos mortais na terra, mas, em vez disso, verás todas as coisas imortais. Pois neste dia e hora, tu verás a ordem divina dos céus: os deuses planetários ascendendo ao céu, e outros se pondo. Agora o caminho dos deuses visíveis aparecerá num disco de deus, meu pai, e de forma semelhante ao chamado tubo, a origem do vento ministrador. (…). E tu verás todos os deuses direcionando seus olhares com atenção para ti, correndo para te confrontarem.
Imediatamente, leva teu dedo direito à boca e diz:
“Silêncio! Silêncio! Silêncio!
Símbolo do deus vivo, incorruptível!
Guarda-me, Silêncio, NECHTHEIR THANMELOU!”
Então tu produzirás um longo silvo, depois um estalo e dirás:
“PROPROPPHEGGĒ MORIOS PROPHYR PROPHEGGĒ NEMETHIRE ARPSENTEN PITĒTMI MEŌY ENARTH PHYRKECHŌ PSYRIDARIŌ TYRĒ PHILBA”
Então tu ouvirás os deuses olhando graciosamente para ti e não mais vindo à tua direção, mas, em vez disso, prosseguindo com seus próprios afazeres.
Pois quando tu vires, claramente, o mundo acima, em suas revoluções, e que nenhum dos deuses ou anjos te ameaça, espera ouvir um trovão, que vai te soar estarrecedor. Então, de novo, diz:
“Silêncio! Silêncio! (a prece) Eu sou uma estrela, vagando convosco e reluzindo do abismo, OXY O XERTHEUTH.”
Imediatamente depois de dizeres tais coisas, o disco do sol irá se expandir. E após dizeres a segunda prece, na qual se diz “Silêncio! Silêncio!”, e as palavras que a acompanham, tu darás dois silvos e farás dois estalos, então imediatamente verás muitas estrelas de cinco pontas irradiando do disco e preenchendo todo o ar. Então diz de novo: “Silêncio! Silêncio!” e quando o disco for aberto, tu verás um círculo sem fogo e portas de fogo bem cerradas.
E, de uma vez, fecha os olhos e recita a seguinte prece. A terceira prece:
“Dai ouvidos a mim, ouvi-me, a mim, NN, cuja mãe é NN, Ó Senhor que unistes com teu alento as barras ígneas da raiz quádrupla:
Ó, Caminhante do Fogo, PENTITEROUNI,
Criador da luz, SEMESILAM
Que Sopras Fogo, PSYRINPHEY
Que Sentes o Fogo, IAŌ
Que Sopras a Luz, ŌAI
Que Te Deleitas no Fogo, ELOURE,
Luz Belíssima, AZAI
Aion, ACHBA,
Mestre da Luz, PEPPER PREPEMPIPI,
Corpo de fogo, PHNOUĒNIOCH
Que Concedes a Luz, …
Que Semeias o Fogo, AREI EIKITA
Que Conduzes o Fogo, GALLABALBA
Que Forças a Luz, AIÓ
Que Fazes Girar o Fogo, PYRICHIBOOSĒIA
Que Fazes Mover a Luz, SANCHERŌB
Que Abalas o Trovão, IĒ ŌĒ IŌĒIŌ
Luz da Glória, BEEGENĒTE
Que Fazes Crescer a Luz, SOUSINEPHIEN
Que Manténs a Luz das Chamas, SOUSINEPHI ARENBARAZEI MARMARENTEU
Que Domas as Estrelas, …
Abre para mim, PROPROPHEGGĒ EMETHEIRE MORIOMOTYRĒPHILBA, porque, por conta da necessidade urgente e amarga e inexorável, eu invoco os nomes imortais, vivos e honrados, que jamais passaram à natureza mortal e não são declarados no discurso articulado por língua humana ou discurso mortal ou som mortal: ĒEŌ OĒEŌ IŌŌ OĒ ĒEŌ ĒEŌ OĒ EŌ OĒĒE ŌOĒ IĒ ĒŌ OŌ ŌĒ IEŌ OĒ ŌOĒ OĒ IEEŌ EĒ IŌ OĒ IOĒ ŌĒŌ EOĒ OEŌ ŌIĒ EŌ OI III ĒŌĒ ŌYĒ ĒŌOĒE EŌ ĒIA AĒA EĒA ĒEEĒ EEĒ EEĒ IEŌ ĒEŌ OĒEEOĒ ĒYŌ OĒ EIŌ ĒŌ ŌĒ ŌĒ EE OOO YIŌĒ.”
Diz todas estas coisas com fogo e espírito, até completares a primeira enunciação, então, de forma semelhante, começa a segunda, até completares os 7 deuses imortais do mundo. Tendo dito estas coisas, tu ouvirás um trovão e um abalo no reino ao teu redor, e então também tu te sentirás sendo agitado. Então diz de novo: “Silêncio” (a prece). Abre teus olhos e verás as portas abertas e o mundo dos deuses que se encontra além das portas, de modo que do prazer e do júbilo desta visão teu espírito avançará e ascenderá.
Feito isto, fica em pé e inspira o ar do divino para dentro de ti, enquanto olhas com atenção. Então, quando tua alma for restaurada, diz:
“Vem, senhor, ARCHANDARA, PHŌTAZA PYRIPHŌTA ZABYTHIX ETIMENMERO PHORATHĒN ERIĒ PROTHRI PHORATHI”.
Dito isto, os raios voltar-se-ão a ti. Olha para o centro deles. Feito isto, tu verás um deus jovem, belo em sua aparência com cabelo de fogo, uma túnica branca e uma capa escarlate, tendo sobre a cabeça uma coroa de chamas. De imediato, saúda-o com a saudação do fogo:
“Ave, senhor, Grande Potestade, Grande Poder, Rei, Maior dentre os deuses, Hélios, o Senhor do céu e da terra, Deus dos deuses; poderoso o teu alento, poderosa tua força, Ó senhor. Se tal for tua vontade, anuncia-me ao Deus supremo, o que gerara e fizera a ti: que um homem — eu, NN, cuja mãe é NN, nascido do ventre mortal de NN e do fluido seminal, que, hoje renascido de ti, tornou-se imortal de tantas miríades nesta hora segundo a vontade de Deus, o excelso — decidiu venerar-te e reza com todo seu poder humano, para que tu o leves contigo o horóscopo do dia e da hora de hoje, que tem o nome THRAPSIARI MORIROK, para que ele apareça e dê uma revelação das boas horas, EŌRŌ RŌRE ŌRRI ŌRIOR RŌR RŌI ŌR REŌRŌRI EŌR EŌR EŌRE!”
Tendo dito essas coisas, ele irá ao polo celestial e tu o verás caminhando, como se numa estrada. Olha com atenção e faz um longo urro, como uma corneta, soltando todo o ar e forçando o diafragma e beija os filactérios e diz, primeiro à direita: “Protege-me, PROSYMĒRI!”
Tendo dito isto, tu verás as portas serem abertas e sete virgens chegarão do interior, trajando vestes de linho e com os rostos de serpentes. Elas são chamadas de Sinas do céu e trazem varas de ouro. Ao vê-las, tu vais saudá-las desta forma:
“Ave, Ó sete Sinas do céu, Ó nobres e benfazejas virgens, Ó companheiras sagradas de MINIMIRROPHOR, Ó santíssimas guardiãs dos quatro pilares! Eu te saúdo, Ó primeira, CHREPSENTHAĒS! Eu te saúdo, Ó segunda, MENESCHEĒS! Eu te saúdo, Ó terceira, MECHRAN! Eu te saúdo, Ó quarta, ARARMACHĒS! Eu te saúdo, Ó quinta, ECHOMMIĒ! Eu te saúdo, Ó sexta, TICHNONDAĒS! Eu te saúdo, Ó sétima, EROU ROMBRIĒS!”
Há também outros sete deuses que virão, com o aspecto de touros negros, em tangas de linho, possuindo sete diademas de ouro. São os chamados Senhores dos Polos Celestes, a quem tu hás de saudar da mesma forma, cada um com seu próprio nome:
“Ave, Ó guardiões do pivô, Ó jovens santos e bravos, que revolveis a um só comando o eixo móvel do firmamento do céu, que enviais trovões e raios e abalos de terremotos e relâmpagos contra as nações dos ímpios, mas a mim, que sou pio e temente a Deus, vós enviais saúde e integridade de corpo, boa audição, boa visão e calma nas presentes boas horas do dia. Ó meus senhores e deuses poderosos que governais! Eu te saúdo, Ó primeiro, AIERŌNTHI! Eu te saúdo, Ó segundo, MERCHEIMEROS! Eu te saúdo, Ó terceiro, ACHRICHIOUR! Eu te saúdo, Ó quarto, MESARGILTŌ! Eu te saúdo, Ó quinto, CHICHRŌALITHŌ! Eu te saúdo, Ó sexto, ERMICHTHATHŌPS! Eu te saúdo, Ó sétimo, EORASICHĒ!”
Agora, assim que eles assumirem suas posições, aqui e ali, em ordem, olha para o ar e tu verás raios caindo e lampejos de luz, e a terra tremendo, e um deus descerá, um deus imensamente grandioso, com a aparência reluzente, jovem, de cabelos dourados, com uma túnica branca e uma coroa e calças douradas, tendo à destra o ombro dourado de um jovem touro: este é o Urso que se move e revira o céu, subindo e descendo de acordo com a hora. Então tu verás raios disparando de seus olhos e estrelas em seu corpo.
De imediato tu darás um urro, forçando a barriga, para que estimules os cinco sentidos; urra até ficares sem ar e mais uma vez beija o filactéria e diz:
“MOKRIMO PHERIMO PHERERI, minha vida, NN: fica! Habita a minha alma! Não me abandones, pois ENTHO PHENEN THROPIŌTH te comanda.”
E olha para o deus enquanto urra e o saúda deste modo:
“Ave, Senhor, Ó Mestre das águas! Ave, Fundador da terra! Ave, Governante do vento! Ó Esplendoroso Luminar, PROPROPHEGGĒ EMETHIRI ARTENTEPI THĒTH MIMEŌ YENARŌ PHYRCHECHŌ PSĒRI DARIŌ PHRĒ PHRĒLBA! Dá-me a revelação, Ó senhor, sobre a questão NN. Ó senhor, no que eu renasço, eu morro, enquanto cresço e tendo crescido, eu morro, tendo nascido de um parto que dá a vida, eu morro, sendo libertado para a morte — assim como tu fundaste, assim como tu o decretaste, eu estabeleci o mistério. Eu sou PHEROURA MIOURI.”
Após teres dito essas coisas, ele imediatamente te há de responder com uma revelação. Agora tu sentirás uma fraqueza na alma e não estarás em ti mesmo, quando ele te responder. Ele diz o oráculo em verso e, tendo-o dito, partirá. Mas tu permanecerás calado, pois poderás compreender todas estas questões tu mesmo; pois num momento posterior, tu te lembrarás infalivelmente das coisas ditas pelo grande deus, mesmo que o oráculo contenha miríades de versos.
Se também quiseres fazer uso de um amigo iniciado, para que apenas ele possa ouvir contigo as coisas ditas, que ele permaneça puro contigo durante sete dias e abstenha-se de carne e banhos. E mesmo que tu estejas só e realizes as coisas comunicadas pelo deus, fala como se profetizasses em êxtase. E se quiseres revelar a ele, então julga se ele é um homem completamente digno: trata-o assim como se, no seu lugar, tu o estivesses julgando na questão da imortalização e sussurra a ele a primeira prece, que começa com “Origem primeira de minha origem, AEĒIOUŌ”. E diz as coisas em sequência como um iniciado, sobre sua cabeça, com voz suave, para que ele não te escute, enquanto tu unges sua cabeça com o mistério. Esta imortalização ocorre três vezes por ano. E, se qualquer pessoa, Ó criança, após os ensinamentos, desobedecer, então ela perderá o efeito para ele.
Instrução para os ritos: Apanha um escaravelho do sol que tem doze raios e faz com que ele caia num cálice profundo de turquesa, numa hora em que a lua esteja invisível, junto com a semente do fruto da lótus e mel. Tendo moído os ingredientes, prepara um pequeno bolo. E tu o verás [o escaravelho] indo na direção desse bolo e comendo-o; e, tendo-o consumido, ele morrerá imediatamente. Apanha-o e o lança num frasco com excelente óleo de rosas, o quanto tu quiseres; e espalhando a areia de forma pura, deixa o frasco sobre ele e recita a fórmula sobre o frasco por sete dias, enquanto o sol está no meio do céu:
“Eu te consagrei, para que teu material me seja útil, a mim, NN só, IE IA ĒEĒ O Y EIA, para que tu me sejas útil, só a mim, pois sou PHŌR PHORA PHŌS PHOTIZAAS”.
No sétimo dia, apanha o escaravelho, enterra-o com mirra, vinho de Mendes e linho de boa qualidade e o guarda num campo de feijões. Então, tendo tido vossa diversão e vos banqueteado juntos, guarda, de forma pura, o unguento para a imortalização.
Se tu quiseres mostrar isso para qualquer outra pessoa, toma o sumo de uma erva chamada kentritis e o espalha junto com o óleo de rosas, sobre os olhos da pessoa em questão e ela verá tudo com tanta clareza que tu ficarás impressionado. Ainda não encontrei um feitiço mais poderoso que este em todo o mundo. Pede ao deus o que tu queres e ele te há de concedê-lo.
Agora o encontro com o grande deus se dá assim: Tendo obtido a erva supracitada, kentritis, na conjunção [do sol e da lua] ocorrendo sob o Leão, apanha o sumo e, tendo-o misturado com mel e mirra, escreve na folha de uma pérsea1 o nome de oito letras, como dado abaixo. E, após te teres purificado por 3 dias antes disso, vem durante a manhã e fita o nascer do sol, lambe a folha enquanto ela é revelada ao sol e então ele [o deus sol] ouvir-te-á com atenção. Começa a preparar o escaravelho na lua nova em Leão, segundo o deus.
Agora este é o nome: “I EE OO IAI.” Lamba-o, para que tu estejas protegido, e enrolando a folha, atira-a no óleo de rosas. Muitas vezes eu já usei este feitiço e fiquei maravilhado.
(…)
Agora os filactérios exigem o seguinte procedimento: copia o seguinte para o teu braço direito, inscrito no couro de uma ovelha negra, com tinta de mirra e os nervos do mesmo animal, então o veste; e copia para o braço esquerdo, no couro de uma ovelha branca, e utiliza o mesmo procedimento. O esquerdo deve estar preenchido com o nome “PROSTHYMĒRI”, com o seguinte memorando:
“E fez saltar o fossado aos corcéis velozes, unicascos”
“E vendo corpos na sangueira arfando”
“Ao mar se metem ambos, limpando-se o suor”
“Se ousares contra Zeus brandir a lança”2
Zeus subiu a montanha com um touro de ouro e uma adaga de prata. A todos ele concedeu uma partilha [do sacrifício] menos a Amara, mas disse:
“Larga o que tu tens e então tu receberás, PSINŌTHER NŌPSITHER THERNŌPSI” (acrescenta o de sempre)
* * *
[1] Betz e Stratton dizem persea tree em inglês, que por acaso é o gênero de árvores como o abacateiro, mas, ao que tudo indica, o termo num contexto egípcio se refere a outra árvore completamente, a Mimusops schimperi.
[2] Aqui temos os trechos da Ilíada, de Homero. os São versos, em ordem: X. 564; X. 521; X. 572; e VIII. 424. Para evitar a retradução do inglês, eu usei como referência a tradução de Haroldo de Campos.